A lingua errada a lingua popular-drummond

O Poema de sete faces revela uma das criações deste célebre representante de nossas letras – Carlos Drummond de Andrade. Assim, tendo-o como subsídio, procure, após uma leitura atenta, registrar algumas impressões acerca das características ideológicas e do estilo artístico que tanto demarcaram a trajetória desse alguém tão nobre, por excelência. 

Poema de sete faces


Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do -bigode,


Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

Tempo de leitura: 12 minutos

A palavra erro cobre vários sentidos. Em filosofia, dizemos que há erro quando alguém toma por verdadeiro aquilo que é falso (e vice-versa). Nesse caso, temos um juízo ou um julgamento que está em desacordo com uma dada realidade observada. Do ponto de vista linguístico, chamamos de erro um desvio da norma. Francisco da Silva Borba, em seu livro Pequeno vocabulário da linguística moderna, diz que o erro

É uma decorrência social, pois o grupo seleciona certos usos classificando-os como bons e rejeita outros como maus ou errados. Daí resultar o erro de uma valoração social dos elementos linguísticos. Será, então, considerado como errado tudo o que for contra a tradição coletiva. Por si mesma, a língua não comporta erros, pois os conceitos de certo e errado são meras convenções sociais. (BORBA, 1971, p. 63)

Reflitamos sobre as palavras de Borba. Nesse pequeno trecho, aparece três vezes o adjetivo social: “decorrência social”, “valoração social” e “convenções sociais”. A expressão tradição coletiva, embora não apresente a palavra social, insere-se no campo social. Borba deixa claro que a natureza do erro não é linguística, mas social, e é explícito nesse sentido quando afirma que, “por si mesma, a língua não comporta erros”. Isso significa que a natureza do erro não é interna, mas externa. Não há nada de errado na língua, pois. O que existe são grupos sociais que dizem que determinado uso é certo ou errado, ou seja, como já vimos neste livro, os erros são de natureza extrínseca, uma vez que parte dos falantes impõe aos demais aquilo que considera o bom uso, que passa a valer como norma. Quando houver desvio da norma que consagra o bom uso, teremos o erro.

Se o erro linguístico é de natureza social, teremos mais uma vez de buscar amparo na sociolinguística, que trata das relações entre língua e sociedade. Retomando o que já foi comentado neste blogue, vimos que a variação é uma característica das línguas. Uma língua não é nada mais nada menos do que um arco de variedades, cada uma delas com características próprias. Dentre todas as variedades da língua não se pode afirmar que uma seja melhor que a outra, ou mais correta que a outra. Todas elas servem aos propósitos comunicativos dos falantes que a utilizam. O que ocorre é que determinadas variedades adquiriram prestígio social e outras não, sendo tachadas de erradas. Considerar uma variedade “errada” costuma ser o primeiro passo para estigmatizar seus usuários. Os falantes da variedade popular do português brasileiro, muitas vezes, são vítimas de preconceito e intolerância. Cabe à escola (mas não só a ela) combater esse tipo de preconceito e isso se faz desconstruindo a ideia de homogeneidade linguística.

O trabalho com as variedades linguísticas tem o condão de desenvolver a capacidade comunicativa dos estudantes para que estes possam se comunicar com pessoas diversas, sobre assuntos diversos, em situações diversas, tanto como destinadores quanto como destinatários de textos falados ou escritos. Conhecendo a diversidade linguística, as pessoas poderão escolher a variedade adequada à situação comunicativa: se deve usar o português escrito ou falado, se usará a variedade popular ou a culta etc.

Em vez, portanto, de ficarmos na polaridade certo vs. errado, devemos pensar a língua do ponto de vista pragmático, isto é, da relação da língua com seus usuários. Isso significa pensar a língua através do prisma da adequação. Façamos uma analogia. Tomemos como parâmetro a vestimenta. Qual seria a roupa “certa”: paletó e gravata ou camiseta, sandália e bermudas? Evidentemente, a resposta só pode ser: depende. Numa solenidade de posse de novos juízes, por exemplo, os homens deverão usar paletó e gravata. Esses mesmos homens, no entanto, jogando bola na praia, provavelmente estarão usando calção e camiseta. Não existe a roupa certa: existe, isto sim, o traje adequado. Poderíamos dizer que “errado” seria comparecer a uma solenidade vestido de camiseta e calção.

Numa situação de caráter informal, como num bate-papo descontraído entre amigos, é “certo”, isto é, é adequado que se utilize a língua de maneira espontânea; na variedade informal, portanto. Numa situação formal, como num discurso de formatura, por exemplo, não seria “certo”, isto é, não seria adequado utilizar-se a língua em sua variedade informal. Tal situação exige não somente uma vestimenta, mas também uma linguagem adequada.

Será, porém, que é essa a visão que a escola nos passa acerca do que é “certo” ou “errado” em matéria de língua? Tradicionalmente, não era o que acontecia até algum tempo atrás. O grande problema é que a norma-padrão, como vimos, não é algo que tenha existência empírica. Ela é posta como um imperativo categórico, isto é, não diz o que você deve fazer nesta ou naquela situação: ela diz como você deve se portar em todas as situações. Nesse sentido, os PCN assinalam que

A questão não é falar certo ou errado, mas saber qual forma de fala utilizar, considerando as características do contexto de comunicação, ou seja, saber adequar o registro às diferentes situações comunicativas. É saber coordenar satisfatoriamente o que falar e como fazê-lo, considerando a quem e por que se diz determinada coisa. É saber, portanto, quais variedades e registros da língua oral são pertinentes em função da intenção comunicativa, do contexto e dos interlocutores a quem o texto se dirige. A questão não é de correção da forma, mas de sua adequação às circunstâncias de uso, ou seja, de utilização eficaz da linguagem: falar bem é falar adequadamente, é produzir o efeito pretendido. (BRASIL, 1998)

A escola, por privilegiar o ensino da norma-padrão, encara como “erro” tudo aquilo que se desvia da norma. Se esta estabelece que “não se deve usar o verbo ter impessoalmente”, isto é, substituindo o verbo haver no sentido de existir, construções como “Tem dois alunos jogando bola” e “Tinha uma mulher na biblioteca” são consideradas “erradas” pela maioria dos professores de língua portuguesa, independentemente do contexto em que são utilizadas. É praxe pedir que sejam corrigidas para “Há dois alunos jogando bola” e “Havia uma mulher na biblioteca”. Tal correção muitas vezes soa estranha, porque o falante baseia o julgamento daquilo que é certo ou errado no que comumente ouve. E, como ouve constantemente o verbo ter ser empregado daquela forma, tende a julgar corretas construções em que ele aparece impessoalmente. Além disso, como, mesmo em bons autores, encontra aquele tipo de construção, é difícil para ele admiti-las como incorretas. As construções a seguir foram utilizadas por dois grandes autores de língua portuguesa.

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

(ANDRADE , 1978, p. 61-2)

Tem dias que a gente se sente

Como quem partiu ou morreu

A gente estancou de repente

Ou foi o mundo então que cresceu

(BUARQUE, Chico. “Roda viva”)

A pergunta é inevitável: se Carlos Drummond de Andrade e Chico Buarque podem usar o verbo ter no lugar de haver, por que nós também não podemos?

Nem sempre essa pergunta é respondida com exatidão pelos professores. Respostas evasivas como “Trata-se de uma licença poética” ou “Ele pode porque é um poeta” são comumente usadas. A questão deve ser explicada mostrando-se que se trata de um uso típico da variedade popular já incorporado tanto à variedade culta quanto à linguagem literária. Aliás, há muito tempo!

É preciso atentarmos, também, para o fato de que nem todo desvio da norma-padrão é considerado erro pela gramática normativa. Só devemos considerar erro o desvio da norma quando ele se dá por desconhecimento do falante da norma-padrão. Nem sempre, no entanto, os desvios são decorrentes da ignorância do falante. Há desvios intencionais, ou seja, o falante o comete com a intenção deliberada de reforçar sua mensagem. Não cremos que alguém venha a pensar que Drummond e Chico Buarque usaram o verbo ter no lugar de haver por não conhecerem a variedade culta de nossa língua.

Os desvios da norma decorrentes da ignorância do falante em relação à norma-padrão constituem, segundo a gramática normativa, vícios de linguagem, e por ela são condenados. Os desvios da norma-padrão, como reforço da mensagem, não representarão erros; em muitos casos, vão constituir as figuras de linguagem. O que, portanto, confere ao desvio da norma-padrão a qualidade de figura e não de vício (leia-se erro) será necessariamente a originalidade e a eficácia da mensagem. O pleonasmo, por exemplo, ora será considerado vício, ora figura de linguagem. Isso vai depender, sobretudo, da eficácia e originalidade da mensagem. A silepse é um desvio das regras de concordância prescritas pela gramática normativa. A mesma coisa ocorre com anacoluto, que consiste na quebra da estrutura sintática da frase, deixando um termo “solto”. Silepse e anacoluto não são considerados erros gramaticais, mas figuras de linguagem. Em que critérios devemos nos basear para dizer se um desvio da norma de concordância prescrita pela gramática normativa é erro ou figura? Como vemos, a questão do certo e do errado não é tão simples assim.

Em “hemorragia de sangue”, “brisa matinal da manhã” e “superávit positivo”, temos um vício de linguagem denominado pleonasmo, já que a redundância nada trouxe de original ou eficaz à mensagem. Porém, em “A mim ensinou-me tudo” (Fernando Pessoa) e “E rir meu riso e derramar meu pranto” (Vinícius de Moraes), a repetição intencional constitui uma figura de linguagem denominada pleonasmo, já que foi feita com a intenção deliberada de reforçar a mensagem para torná-la mais original, criativa.

As gramáticas tradicionais costumam classificar as ambiguidades como um vício de linguagem, por considerarem que a duplicidade de sentido impediria uma comunicação precisa, atentando contra o princípio de que enunciados devem ser claros. Há casos, sim, em que as ambiguidades são responsáveis por ruídos na comunicação. Mas, em diversas situações, o uso de ambiguidades tem por função criar textos plussignificativos, abertos. É o que ocorre, por exemplo, em textos poéticos, humorísticos e publicitários.

A língua evolui por meio da fala, e muitos desvios com relação à norma-padrão são incorporados pela variedade culta e mesmo pela língua literária. Fica então uma pergunta: quando o desvio deixa de ser considerado erro? O filósofo russo Mikhail Bakthin dá a resposta a essa questão em sua obra Marxismo e filosofia da linguagem, quando afirma que,

Se a transgressão não é percebida como tal e, por isso mesmo, não é corrigida, e se existe um terreno favorável para a generalização do erro (no caso considerado, este terreno favorável é a analogia), então este desvio torna-se a nova norma linguística. (BAKHTIN, 2002)

Em outras palavras, o erro deixa de ser erro quando todos os membros da comunidade, por meio de um acordo tácito, estão também dispostos a cometer o desvio e aceitá-lo como regra. Em consequência, o desvio deixa de ser infração à norma para se tornar regra. Vejamos exemplos concretos. Os membros da comunidade linguística aceitam sem qualquer problema desvios da norma-padrão como: Que filme você pretende assistir? Custei para entender a explicação, Li e gostei muito do livro, embora a norma-padrão estipule como corretas as construções: A que filme você pretende assistir?, Custou-me entender a explicação e Li o livro e gostei muito dele.

Por outro lado, um desvio da norma-padrão como Nóis fumo correno sarvá os meninu, não é aceito por parte dos falantes do português, que consideram essa construção errada, e aquele que a utiliza é estigmatizado, recebendo a pecha de analfabeto, ignorante, atrasado, inclusive por aqueles que falam Custei para entender em vez de Custou-me entender. Como podemos observar, há desvios aceitos e que acabam se incorporando à variedade culta e desvios não aceitos que são representativos da variedade popular. Se levarmos a ferro e fogo, veremos que nenhum falante, mesmo aqueles considerados cultos, falam de acordo com o que é previsto pela norma-padrão, simplesmente porque, como temos insistido, essa norma não representa a fala de ninguém, trata-se de um modelo de língua muito distante da língua real.

Este assunto é discutido em meu livro Linguagem, língua e fala, 3a. ed., publicado pela Editora Saraiva. Para adquiri-lo, clique aqui.