A aplicação da equidade é vedada no ordenamento jurídico brasileiro

A equidade não é instrumento de surgimento de novas leis, mas, em linhas gerais, o princípio da equidade é um critério hermenêutico para interpretação das leis. 

Confira a seguir:

  1. O que é o princípio da equidade?
  2. Aplicação do princípio da equidade no Direito

A existência de fontes normativas é a base do exercício do Direito. 

A formação da sociedade consiste no surgimento da vida humana e, junto a isso, a criação de normas se tornou imprescindível para a vivência dos cidadãos. 

A primeira lei criada na humanidade foi um Código, na Mesopotâmia, chamada Lei de Talião, a qual estabelecia punição ao causador de um dano a alguém na exata proporção do dano sofrido. O Código também conhecido como de “Hamurabi”, previa artigos sobre as sanções destinadas aos causadores dos danos. 

Daí surge a expressão “olho por olho, dente por dente”, que significa nada mais do que gerar a dor suportada por alguém a quem causou, exatamente na mesma intensidade. 

Certo é que com o avanço da sociedade, as leis e demais fontes normativas foram alteradas, de modo que acompanhassem as mudanças sociais. 

A partir dessa premissa, torna-se relevante colocar em pauta o princípio da equidade, fundamental para o Direito. Falaremos mais sobre o tema a seguir. 

O princípio da equidade não tem apenas um significado.

Podemos destacar que o princípio é como se fosse um leque, com diversas abordagens trazidas por estudiosos filósofos e juristas, não somente brasileiros como também estrangeiros. 

Pois bem. A equidade, em linhas gerais, é um critério hermenêutico para interpretação das leis. 

Como mencionamos no início, a sociedade sofreu diversas alterações e continuará avançando, motivo pelo qual as leis e fontes normativas devem acompanhar tais modificações sociais para adaptação das regras, que devem ser compatíveis com a realidade da convivência entre os cidadãos. 

Entra como uma forma de adaptação da lei ao caso em concreto ou quando houver omissão ou lacuna legislativa, a equidade é essencial para resolução do problema de acordo com o caso. 

A equidade não é instrumento de surgimento de novas leis, muito pelo contrário, não há papel semelhante ou idêntico ao legislador, mas tão somente a adaptação do fato à norma existente. 

O próprio Código de Processo Civil de 2015, no art. 140, caput e parágrafo único, dispõe que:

Art. 140. O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.

Parágrafo único. O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei.

Por sua vez, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto Lei 4657/1942) prevê que:

Art. 4o  Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Art. 5o  Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Ou seja, o princípio da equidade somente será aplicável em situações excepcionais, permitidas por lei, pois se trata de um critério de interpretação das leis existentes quando estas forem omissas a respeito de um caso concreto. 

História do princípio da equidade

Conforme brevemente destacamos, o princípio da equidade compreende na interpretação das fontes normativas de acordo com cada caso em concreto.

Mas isso surgiu há muitos anos em um contexto histórico social, que trouxe a necessidade de serem regulamentadas normas com base nos fatos, além da teoria. 

O filósofo Aristóteles, por exemplo, adaptou os conceitos trazidos por Platão sobre a equidade, no sentido de que corresponde a “uma mitigação da lei escrita por circunstâncias que ocorrem em relação às pessoas, coisas, lugares e tempos” (ARISTÓTELES apud CARVALHO FILHO, Milton Paulo de.Indenização por Equidade no Código Civil. 2ªed.São Paulo:ed.Atlas.2003.p.27).

Ou seja, desde o surgimento da civilização, a equidade foi conceituada por diversos filósofos, com distintas abordagens, a fim de que a solução do conflito oriundo de um fato pudesse ocorrer de forma irrestrita, considerando as leis, mas também aos costumes e as peculiaridades do caso em concreto. 

Certo é que, na contemporaneidade, tal interpretação do direito não pode ser irrestrita, haja vista que existem inúmeras normas a serem seguidas e a relativização das mesmas, de acordo com cada caso em concreto, traria insegurança jurídica. 

É com base nisso que há previsão expressa no Código de Processo Civil, no art. 140, sobre a aplicação da equidade conforme previsão em lei.

Aplicação do princípio da equidade no Direito

A aplicação do princípio da equidade no Direito é relevante e considera a individualidade de cada situação, mesmo que semelhante a outras existentes. 

Por tal razão, o princípio da equidade é utilizado quando há omissão ou lacuna na lei sobre determinado conflito. 

A equidade consiste em mitigar o fato concreto para adaptá-lo à previsão legal, mas de acordo com a individualidade da situação. 

No Brasil, a equidade é excepcional, haja vista que o sistema do ordenamento jurídico brasileiro compreende no “Civil Law”. Ou seja, as leis têm força que prevalece sobre outras fontes normativas, como jurisprudência, costumes e outras.

Já na Inglaterra e nos Estados Unidos, por exemplo, o sistema é o “Common Law”, cuja aplicação da equidade é a regra, ou seja, a jurisprudência (conjunto de decisões judiciais) prevalece sobre a lei. 

No sistema Common Law, a jurisprudência tem força de lei e se torna “precedente” para futuros julgados.  

Dessa maneira, a aplicação do princípio da equidade no Brasil é restrita aos casos previstos em lei. 

Não podemos deixar de mencionar que a equidade subdivide-se em dois conceitos teóricos, de relevante distinção. Explicamos a seguir.

Equidade de valor X Equidade integrativa 

Não há um único conceito de equidade. 

São diversas abordagens e explicações sobre a aplicação da equidade no ordenamento jurídico brasileiro desde o surgimento da civilização. 

Com o decorrer dos anos, os meios de interpretação das normas e aplicação no direito são mais abrangentes. Significa que a lei tem força maior sobre as demais fontes normativas, que também são levadas em consideração para a resolução de conflitos, como os costumes e a jurisprudência.

Assim, considerando que o ordenamento jurídico brasileiro é restrito no que diz respeito à aplicação do princípio da equidade, o estudo das vertentes da equidade tornou-se fundamental, já que a incerteza e amplitude do conceito é abrangente. 

A partir disso surgem duas formas de aplicação da equidade: a valorativa (ou de valor) e a integrativa.

O brilhante doutrinador Sílvio Venosa leciona sobre a equidade de valor:

“Tratamos aqui da equidade na aplicação do Direito e em sua interpretação, se bem que o legislador não pode olvidar seus princípios, em que a equidade necessariamente deve ser utilizada para que a lei surja no sentido da justiça.  A equidade não é só o abrandamento da norma em um caso concreto, como também sentimento que brota no âmago do julgador. Como seu conceito é filosófico, dá margem a várias concepções(…). Entendamos, porém, que a equidade é antes de mais nada uma posição filosófica; que cada aplicador do direito dará uma valoração própria, mas com a mesma finalidade de abrandamento da norma. Indubitavelmente, há muito de subjetivismo do intérprete em sua utilização”  (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil-parte geral. São Paulo: ed.Atlas. 2001. p.47, grifamos). 

A partir dessa premissa, pode-se notar que a equidade valorativa é aquela ampla e incerta, mas aplicada como medida de justiça ao analisar um caso em concreto. 

Não é gerar um precedente ou motivar uma nova lei, mas considerar critérios valorativos para julgamento de um fato que está em conflito. É algo tão abrangente que naturalmente se aplica em quaisquer casos levados ao poder judiciário. O valor da individualidade do caso aplicando-se a equidade valorativa é presente. 

Luiz Fux brilhantemente ensina que:

“Substancialmente, o juiz ao decidir o mérito, deve adotar a “solução que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum.” Nesse particular, a lei, utilizando-se de conceitos juridicamente indeterminados, autoriza o juiz a inverter o velho silogismo e adotar a solução justa para depois vesti-la com a regra legal aplicável à luz da equidade e das exigências do bem comum. Assim, o juiz deve levar em consideração não apenas a letra da lei, senão ambiente em que ela vai ser aplicada, amoldando-a às novas realidades, sem contudo estar autorizado a decidir contra legem, Essa regra in procedendo funciona com plenitude quando há lacunas na lei” (FUX, Luiz. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: ed.Forense. 2001. pp.479-480, grifamos).

Já no que diz respeito à equidade integrativa, Sérgio Cavalieri, doutrinador civilista, explica utilizando ensinamentos de Aristóteles:

“Segundo Aristóteles, a equidade tem uma função integradora e outra corretiva. A primeira tem lugar quando há vazio ou lacuna na lei, caso em que o juiz pode usar a equidade para resolver o caso, sem chegar ao ponto de criar uma norma, como se fosse o legislador. Essa equidade integradora ou supridora de lacuna permite ao juiz, partindo das circunstâncias do caso específico que está enfrentando, chegar a uma conclusão, independentemente da necessidade de criar uma norma. Deve o juiz procurar expressar, na solução do caso, aquilo que corresponda a uma idéia de justiça da consciência média, que está presente na comunidade. Será, em suma, a justiça do caso concreto, um julgamento justo, temperado, fundado no sentimento comum de justiça. Aquilo que o próprio legislador diria se tivesse presente; o que teria incluído na lei se tivesse conhecimento do caso” 

A equidade corretiva, segundo Cavalieri, citando lição do Ministro Ruy Rosado compreende:

“(…) Mas essa equidade, a que se refere Aristóteles na Ética a Nicômaco, é a equidade corretiva, aquela que o juiz vai aplicar quando tiver a necessidade de afastar uma injustiça que resultaria da aplicação estrita da lei. E é essa equidade, penso eu, que se refere o legislador quando, nesse artigo 944, parágrafo único, diz que o juiz poderá, quando o grau de culpa for pequeno e a extensão do dano for muito grande, fazer uma correção para não aplicar a regra que diz que a indenização há de corresponder à extensão do dano (artigo 944, caput); pode o juiz afastar essa disposição para adequar uma indenização que seja mais justa em razão do grau da culpa do agente- é uma equidade corretiva.” (Ruy Rosado apud DIREITO, Carlos Alberto Menezes e CAVALIERI FILHO, Sérgio. Comentários ao Novo Código Civil. vol. XIII.Rio de Janeiro:ed.Forense.2004.pp.334/335, grifamos).

Nota-se a divisão de abordagem e aplicação da equidade no ordenamento jurídico brasileiro, de modo que a equidade valorativa pode ser irrestritamente aplicada, enquanto a integrativa é restrita. 

Equidade substitutiva, integrativa e interpretativa 

Com base nas contribuições do doutrinador civilista Paulo de Tarso Severino, a equidade na contemporaneidade pode dividir-se em três aspectos:

“Assim, a equidade, no direito atual, aparece com três funções básicas: a) substitutiva; b) integrativa; c) interpretativa. Na sua função substitutiva, atribui excepcionalmente poderes ao juiz para decidir com liberdade, afastando-se das normas legais e declarando a solução justa para o caso (CPC/39, art.114). Na sua função integrativa, a equidade constitui um instrumento posto caso a caso pela lei à disposição do juiz para especificação em concreto dos elementos que a norma de direito não pode resolver em abstrato. Finalmente, em sua função interpretativa, busca estabelecer um sentido adequado para regras ou cláusulas contratuais em conformidade com os critérios de igualdade e proporcionalidade” (SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral. São Paulo: ed.Saraiva:São   Paulo. p.91, grifamos).

Analisando tais conceitos, é notório que a equidade substitutiva, com respaldo no art. 140, do Código de Processo Civil, não existe em nosso ordenamento jurídico, tendo em vista que o juiz possui restrições inerentes ao poder de decidir, sendo que não há permissão legal para o afastamento das normas legais de acordo com cada caso em concreto, sob pena de configurar a insegurança jurídica. 

Por sua vez, a equidade integrativa, seja corretiva ou integradora, é passível de aplicação, desde que de acordo com as permissões legalmente previstas. 

Ou seja, quando houver omissão ou lacuna em lei, a equidade integrativa poderá ser aplicada para solução do caso em concreto adaptado às normas existentes.

Por fim, a equidade interpretativa (ou valorativa) é aquela que não tem como se ter certeza de que está sendo aplicada, haja vista que trata-se de um critério de avaliação do caso em concreto pelo julgador, através dos valores e peculiaridades individuais.

De todo modo, é permitida no ordenamento jurídico, pois não é uma norma concreta, mas um meio de interpretação e valoração do caso em concreto para adequação do que é justo.

Concluindo, o princípio da equidade traz uma série de conceitos, mas a prática forense demonstra cautela e restrição quanto à aplicação principiológica, principalmente porque gera confusão e interpretações equivocadas quando se está à frente de uma análise de fato que vai muito além da aplicação legal. 

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