A espanha tem preconceito e rivalidades entre eles mesmos

Você já viu em vários filmes, ou talvez, infelizmente, em pessoa. No começo de uma reunião de Alcoólatras Anônimos, a pessoa diz o seu nome e admite que tem problemas com a bebida. O primeiro passo dos doze recomendados para tratar o alcoolismo é reconhecer a sua impotência perante o álcool. Enfim, reconhecer o problema. Só tendo consciência do que está errado é que se pode trabalhar no longo e difícil processo de recuperação. Esse passo, justamente o primeiro, é o que a Espanha tem tido tanta dificuldade de dar na luta contra o racismo no futebol.

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Em 2012, o presidente da Federação Espanhola, Ángel María Villar, também membro do comitê executivo da Fifa e da Uefa, disse que não existe racismo no futebol espanhol. Com essas palavras. Isso logo depois de a sua entidade ser multada em cerca de R$ 55 mil por ofensas racistas ao italiano Mario Balotelli durante uma partida entre as seleções pela Eurocopa da Polônia e da Ucrânia.

Há, no geral, uma tolerância muito grande com o racismo na Espanha. As ofensas desse tipo não são consideradas muito mais graves do que chamar alguém de careca. Duvida? O editor de Fórmula 1 do jornal Marca, Jaime Martín, disse o seguinte para a BBC depois que torcedores espanhóis pintaram-se de preto para provocar o piloto britânico Lewis Hamilton no GP da Espanha de 2008: “A cobertura foi exagerada. Foram quatro ou cinco pessoas fazendo isso no contexto da rivalidade entre (Fernando) Alonso e Lewis. Certamente os insultos foram racistas, mas, se Lewis fosse careca, os insultos seriam a respeito da sua calvície.” E, sim, Hamilton é um pouco careca.

Pouco importa o contexto e quem dera fossem “apenas quatro ou cinco pessoas.” Os casos de racismo parecem ter se multiplicado no futebol espanhol nos últimos anos.  Apenas na atual temporada de La Liga, Marcelo, Paulão e Daniel Alves, para ficar apenas entre os brasileiros, foram humilhados por torcedores que se acham engraçados. O caso mais recente foi há dois finais de semana, quando o senegalês Papakouli Diop respondeu às ofensas preconceituosas da torcida do Atlético de Madrid dançando na frente dos seus ofensores, depois da vitória do Levante.

Samuel Eto’o, em 2005, também respondeu à estupidez com dança. Primeiro, pensou em tomar uma ação mais enérgica. Ao ver aficionados do Zaragoza imitando macacos e jogando amendoins no gramado do Estádio Romareda, quis deixar o campo. Abandonar a partida. Em seu auge pelo Barcelona, isso certamente repercutiria mundialmente e mesmo a preguiçosa Federação Espanhola teria que reagir de acordo. Mas o camaronês foi convencido pelo amigo Ronaldinho Gaúcho a continuar em campo. Marcou na goleada por 4 a 1 e comemorou com uma ironia tão grande quanto a de Daniel Alves, que comeu a banana que foi lançada aos seus pés. “Eu dancei como macaco porque eles me trataram que nem macaco”, disse.

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Só que o árbitro da partida Fernando Carmona Méndez não identificou nada de estranho nas atitudes da torcida do Zaragoza e omitiu o racismo do relato oficial da partida. E sem a palavra do árbitro, a Federação não pôde agir. Eto’o parou de levar os filhos para a partida para que eles não fossem obrigados a ver o seu pai sendo xingado por ser negro.

O racismo é um problema recente no país que viveu uma ditadura ultranacionalista até 1975. O governo de Francisco Franco batia muito na tecla da cultura espanhola e reprimia manifestações regionais de bascos e catalães, por exemplo. Foi apenas com a democracia que a Espanha começou a receber mais estrangeiros, a partir dos anos 1980. Os imigrantes espanhóis estão na sua segunda geração, uma atrás de outras nações. É por isso que, em pleno 1997, o marfinense Felix Ettien tinha que dividir toalha com o outro jogador negro do elenco do Levante, o compatriota Idrissa Keita.

“O técnico do Levante achava que éramos um desastre. Porque não falávamos espanhol, éramos ignorados por todos. Sempre que eu me sentia doente, as pessoas diziam que era Aids ou malária ou alguma outra doença séria e não chegavam perto da gente. No começo, Keita e eu éramos tratados como dois leprosos. Éramos obrigados a usar a usar os mesmos pratos e talheres no restaurante do clube, usar as mesmas camisas, meias, shorts e toalhas nos vestiários. Os outros jogadores achavam que nós tínhamos algum tipo de doença contagiosa. Foi uma época horrível e só consegui superá-la porque era mentalmente muito forte”, disse em depoimento à BBC.

A Inglaterra não pode se gabar de muita coisa, e mesmo o racismo continua presente nas arquibancadas da Premier League, mas diminuiu bastante em relação aos anos 1980. Isso foi alcançado com políticas rígidas contra o preconceito, organizações não governamentais ativas e principalmente pela intolerância com os intolerantes, mesmo que hipócrita. O racismo de John Terry contra o zagueiro Anton Ferdinand, do Queens Park Rangers, em 2012, rendeu ao jogador do Chelsea uma suspensão de quatro partidas e uma multa relativamente pesada de aproximadamente R$ 800 mil, embora ainda leve para um milionário. O caso terminou com Terry perdendo a braçadeira de capitão da seleção inglesa e o então técnico Fabio Capello pedindo demissão porque não concordou com a decisão da Federação de Futebol.

A espanha tem preconceito e rivalidades entre eles mesmos
Aragonés foi flagrado sendo racista contra Thierry Henry em conversa com Reyes (Foto: AP)

Em 2004, o treinador da seleção espanhola era Luis Aragonés. Para “motivar” José Antonio Reyes disse para ele “mostrar que era melhor que aquele negro de merda”, referindo-se a Thierry Henry que, na época, era seu companheiro de equipe no Arsenal. Enquanto a imprensa britânica fez um grande alarde, a espanhola não achou tão grave, e a federação do país foi lenta para tomar alguma atitude. Acabou multando o técnico em € 3 mil, cerca de R$ 8 mil, que mal serve para comprar um carro usado. Henry ficou possesso. “As autoridades espanholas precisam olhar para o próprio umbigo. Elas obviamente não ligam para o racismo. É risível. Multaram-no por multar, não porque acharam que ele fez algo errado”, disse.

Aragonés recebeu muito apoio de outros jogadores espanhóis, inclusive do negro e brasileiro naturalizado Marcos Senna. Conseguiu reverter a punição nos tribunais e morreu herói por ter levado a seleção ao título da Eurocopa de 2008. Evidente que um episódio lamentável não pode apagar uma história inteira, e também vale explicar a importância da figura do capitão da seleção inglesa, um exemplo de bom mocismo, mas há uma diferença clara de tratamento. Para os espanhóis, Aragonés não foi racista. Fez apenas um comentário infeliz, foi mal interpretado ou usou a palavra errada.

“A imigração faz parte da sociedade britânica há muito mais tempo, aqui é um fenômeno novo, embora isso não seja uma desculpa”, disse à BBC a porta-voz da organização SOS Racism, de Barcelona, Isabel Martínez. “As coisas que acontecem no futebol são reflexo da realidade da vida cotidiana da Espanha.”

Punições inócuas contra o racismo são uma constante na Espanha. O rapaz que jogou uma banana em Daniel Alves foi preso e banido do estádio pelo Villarreal pelo resto da vida. O clube teve uma rara atitude dura dentro de seu escopo de atuação, mas ainda é uma ação isolada. A própria Federação Espanhola aplicou uma multa ao clube de apenas € 12 mil euros, cerca de R$ 38 mil, dinheiro de troco para um clube que faz as contas de suas perdas e ganhos na casa de milhões. Dias depois, houve uma manifestação nas ruas de Vila-Real em apoio ao responsável por atirar a banana, dizendo que tudo seria manipulação da TV e que o rapaz seria uma boa pessoa.

O pior é que as entidades superiores à Federação Espanhola não parecem muito propensas a intervir. A Uefa, longe de ser um exemplo na luta contra o racismo, emitiu um comunicado, depois do caso de Diop, encorajando as entidades nacionais a combaterem o problema. E só. “A Uefa opera com zero tolerância em relação ao racismo e apoia os seus membros a combatê-lo no futebol europeu. Oferecemos subsídios para as associações nacionais para encorajá-las a estabelecer programas anti-racismo e também pedimos que elas tomem medidas necessárias para erradicar esse problema”, escreveu.

A Federação Espanhola vai investigar o caso de Diop, e a Liga de Clubes Profissionais prometeu promover “cursos” para ensinar os seus membros a lidarem com o racismo. Nada mais emblemático para uma sociedade que ainda está aprendendo que o preconceito é coisa séria, é crime e precisa ser combatido com todas as forças. Como disse Daniel Alves, depois de ficar sabendo do banimento do torcedor do Villarreal, a única solução para a estupidez é a educação.

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