Como se caracteriza a linguagem na poesia satírica de Gregório de Matos?

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1. O IDEAL DA SATIRA EM GREGORIO DE MATOS E NOS TRATADOS POETICOS DO BARROCO PORTUGUES

Apesar do ludismo e da obscenidade que caracterizam a sua satira, Gregorio de matos nao rejeita uma visao do devir da Historia e uma concepcao de Homem que contraria a mundividencia e a corrupcao vigentes na epoca. O poeta delimita uma imago publica de si enquanto pessoa do mundo fenomenal que substitui a Lei etico-juridica (que o sistema de justica, por inepcia, nao aplica) pela lei da satira em verso. As leis do genero satirico alimentam-se, legitimamente, segundo Gregorio de Matos, de uma lei moral justa e de leis poeticas proprias. Veremos neste artigo em que medida o poeta poe em pratica este pressuposto.

Para preservar o mais possivel a satira barroca da ma reputacao do genero satirico, associada as formas mais primitivas de invectiva nao-literaria, os teorizadores prescrevem o maximo comedimento no uso do comico e do satirico. Nao se nega a satira o direito a punicao exemplar pela via do ridiculo, mas nao se admite o recurso ao apontamento insultuoso e cru, literal. A subtileza do conceito nao e so um dos principios essenciais da poetica barroca; deve tambem ser a regra essencial do genero satirico, a que se atribui uma funcao de denuncia correctiva e moralizadora.

As leis, curtas e incisivas, divulgadas pelo espanhol Baltasar Gracian (Belmonte de Gracian, 1601--Tarazona, 1658), autor do paradigma teorico fundamental do barroco peninsular, Agudeza y Arte de Ingenio (1642), servem de medida para avaliarmos o que, antes e depois, circula sobre a satira em textos criticos e teoricos.

Gracian aconselha sempre, atraves de exemplos oportunos, com vista a uma codificacao eficaz do genero, a obediencia a criterios de sobriedade e proporcao. No "Discurso XXVI", subordinado ao tema "De la agudeza critica e maliciosa", diz, a proposito de uma decima de Manuel Salinas ("Todas tus amigas son/ Las mas viejas y mas feas,/ Con ellas vas y paseas,/ Ya se sabe tu intencion./ Estas en toda ocasion/ Contigo gustas traer,/ Para con eso poder,/ Fabula, siempre enganosa,/ Entre feas ser hermosa,/ Y entre viejas nina ser"): "De modo que todo el artificio de esta agudeza consiste en descubrirle la malicia artificiosa al que obra, y sabersela ponderar" (256). Imediatamente a seguir, no "Discurso XXVII", em que se reflecte acerca "De las crisis irrisorias", afirma que "Es tan facil esta agudeza, cuan gustosa, porque sobre la ajena necedad todos discurren y todos se adelantan antes el convicio [injuria o improperio] que al encomio, pero el ingenioso por naturaleza dobla su intencion". Esta proposicao e ilustrada com um epigrama de Bartolome Leonardo:

   El metal sacro en Julia Celsa suena,/ Emulo de profeticos
   alientos,/ Que nos previene a insignes movimientos/ Con proprio
   impulso y sin industria ajena./ Ofusca el sol su faz limpia y
   serena,/ Arrojando esplendores macilentos,/ Y sacudido el orbe de
   portentos,/ se aflige y brama en su fatal cadena,/ Y mientras que
   el horror de lo futuro/ Los animos oprime o los admira,/ Tu,
   Cremes, obstinado en tus amores,/ Remites a los cetros la gran
   ira,/ Y adulas a tu Panfila con flores,/ Deshonesto, decrepito y
   seguro. (265-266)

Um pouco mais a frente, sem nunca deixar de recorrer a exemplos, o autor acrescenta: "satirizase en general con la misma sutileza y gracia, y notanse las necedades comunes, que no es la menos principal parte de la sabiduria prudente" (272). Mais: sem cair na vulgaridade, "Ponderase con mucha sal el desacierto, cuando desciende de un extremo a otro. Fisgase [hacer mofa] Marcial de Gelia, que mientras andaba escogiendo maridos, y al principio asqueaba todo lo que no era casar con un principe, hizose vieja y caso al cabo con un esportillero". Como exemplo, cita uma traducao de Manuel Salinas: "Tu, que tu antigua nobleza/ Contabas, y dar la mano/ A un caballero romano/ Tenias por gran bajeza./ Gelia, que casar primero/ Con senador blasonaste,/ paso el tiempo, y te casaste/ Con un feo esportillero" (272).

A satira e, pois, justificada pela sua subtileza objectiva, pela sua intencionalidade moralizadora e pela dignidade que lhe advem da sua grandeza artistica.

Sintomaticamente, Francisco de Pina e Melo (Montemor-o-Velho, 1695 1773), em 1765, na sua Arte poetica, (1) refere-se nestes termos a satira, considerada um elemento fundamental da comedia (cujas caracteristicas sao definidas na "Parte Terceira", a par das da tragedia):

   O fim da distincao que tinham ambos/ Estes dois espectaculos se
   via/ Em que aquele somente pretendia/ Instruir o auditorio, este
   alegra-lo;/ Ou por dizer melhor, para insulta-lo;/ E que a comedia
   antiga a cena expunha,/ pois da satira infame se compunha:/ Na
   Grecia, nao havia heroi insigne/ Que nao fosse oprimido, e
   profanado,/ Na publica insolencia, com as vozes/ Dos insofriveis
   comicos; na lingua/ Desse mesmo Aristofanes, que leva/ Ao ponto
   mais esplendido este drama,/ Se mortifica, e se envergonha a fama/
   De encontrar tao infame desaforo;/ Com a lei mais severa, ao seu
   decoro/ Foi, enfim, a comedia reduzida;/ E, sepultando a obscena
   impropriedade,/ Nao reteve ao depois outro exercicio/ Que encobrir
   a pessoa, e expor o vicio. (193-194)

O autor, com essas observacoes, pretende preservar a comedia do que e visto como uma marca negativa do temperamento portugues: a vocacao para a maledicencia, para a ofensa crua e gratuita que nao acusa nem prova minimamente a culpa do outro. O teorizador nota mesmo que a aplicacao desta lei poetica obriga, na antiguidade classica, a que se actue juridicamente; cria-se uma norma juridica para acabar com a satira pessoal, que faz dos poetas alvos de represalias e dos destinatarios da critica objectos faceis do riso colectivo. Subjaz a este pensamento um juizo muito horaciano: o de que do maledicum da satira podem advir as tres virtudes destacadas quer pelo Venusino quer por estudiosos, muito provavelmente influenciados por ele, como David Worcester e Northrop Frye, nos livros, respectivamente, The Art of Satire e Anatomy of Criticism: arte, moralidade e humor.

Deduz-se que tais prescricoes se aplicam necessariamente a satira na poesia em geral; satira enquanto genero ou subgenero a que Francisco de pina e Melo nao consagra qualquer comentario na sua Arte poetica (refere-se-lhe apenas, como vimos, enquanto acento negativo de espirito). Este silencio tem duas explicacoes: a concisao e um dos requisitos deste codigo poetico, que por isso se circunscreve aos universos literarios mais nobres; a lei do decoro acaba por determinar que nao se aborde uma area tao sensivel e propensa a exageros na pratica poetica como e a do satirico.

A sistematizacao dos preceptores do Barroco literario nao e adoptada linearmente na satira portuguesa em verso. O poema satirico, ao assumir com frequencia a forma de uma maldicao ritual, coloca-nos perante a evidencia das raizes primitivas do genero e perante a sua disposicao marcadamente antropologica: a preservacao do eu determina a anulacao impetuosa do outro.

Apesar disso, os efeitos imediatos da mordacidade sao quase sempre atenuados por um humor solto e mais ou menos inventivo e por uma arte poetica perfeita; como acontece neste soneto de Joao Sucarelo, publicado por Vitor Manuel de Aguiar e Silva, que o apresenta dizendo que, nele, "compendia-se brutalmente a essencia do antipetrarquismo barroco, desde a denuncia da pureza e da formosura da amada ate ao libertino conselho final":

   Aonio, que de Celia namorado/ Doce vitima sois de amor tirano,/ E
   com veres a cara ao desengano/ Ainda nao estais desenganado://
   Celia nao presta ja para cuidado,/ Ja nao e Serafim, nem Anjo
   humano,/ E Cancer que dormiu qualquer magano/ Que teve uma moeda de
   cruzado.// E escabeche o ouro do cabelo,/ Almagre, e gesso a
   purpurea rosa/ Do rosto que parece alegre terso:// O mais, como
   sabeis, tudo e farelo,/ Fornicai como nos, Aonio, em prosa/
   Durma-se Celia, muito embora em verso. (432)

Numa poesia em que o comico representa carnavalescamente um referente preciso mas tambem vale, em grande parte, como fim em si mesmo, nem sempre e facil saber se estamos perante ludismo com ou sem satira.

Isso nao ocorre necessariamente porque se perdeu o contexto que enquadrava a composicao. A vitalidade do texto pode advir, desde o primeiro momento, da exibicao dessa infixidez de sentidos, que a cada passo apresenta novos desafios ao leitor. Maria Lucilia Goncalves Pires afirma que poemas como a "Jornada que Diogo Camacho fez as cortes do Parnaso em que Apolo o laureou" (1-38)

   sao significativos na medida em que destronam uma mitologia
   poetica. Constituem uma especie de inversao do mito de narciso:
   aqui a literatura contempla-se e ri do seu reflexo. A figura do
   poeta inspirado e apresentada como personagem ignorante e ensonada
   que so consegue produzir poemas ridiculos. Esta desmistificacao da
   inspiracao poetica decorre, creio, de um dos aspectos mais
   relevantes da poetica barroca: a concepcao da poesia como trabalho,
   tecnica, e a valorizacao dessa tecnica. (82)

A poesia mais original de Gregorio de Matos, como veremos a seguir, inscreve-se nessa tradicao de satira instavel. Nesta passagem do poema de Diogo Camacho percebe-se bem como "o texto se transforma em objecto de troca, expondo, nao o esplendor, mas a miseria do trabalho da sua producao" (Pires 81), e como e inteligente o seu humor, ao transformar o ironico em satirico (e reciprocamente):

   Apolo, que em fazer merces excede/ Aos Reis do mundo, disse aos do
   conselho:/ Deste memorial os pontos vede./ Este Poeta e tronchudo,
   e velho,/ E assim lhe quero dar a minha filha,/ Pois tem bom
   cabedal, bebe vermelho./ E porque o mundo de insensato, e tolo/ Nao
   cuidasse que era eu poeta falso,/ Por ter siso, e saber, casco, e
   miolo,/ Mandou fazer um alto cadafalso,/ E assentado num tanho que
   era o trono,/ A rabeca nas maos, e os pes descalco,/ Adelgacando a
   voz em grave tono,/ [...]/ E disse: Ja que tens tao duro casco,/ E
   teu miolo e de tanta prova,/ [...]/ Podes compor qualquer modo de
   trova/ Em toda aquela lingua, que quiseres,/ Ate te sepultarem numa
   cova./ [...]/ Aqui te entrego a esta filha minha,/ Bem sei que vai
   mui pobre,/ Pois nao leva/ Manto, manteu, gibao, saia, vasquinha./
   Mas porque nenhum rustico se atreva/ A motejar de ti que e triste
   peca,/ Procura ter de teu, que te releva. (AA. VV. 36-37)

Essa instabilidade ecoa no modo diverso como os teoricos abordam o comico (e os elementos afins que com ele interagem): as mais importantes poeticas do Barroco ou aconselham "os poetas a evitar os perigos do seu excesso, como faz Matteo Pelegrin (Delle Accuteze)", ou expoem, "de maneira entusiasta, os meios de o obter, como faz E. Tesauro (Il Cannochiale Aristotelico)" (Pires 82).

2. GREGORIO DE MATOS

Apesar da relevancia, na lirica barroca portuguesa, de poetas satiricos como D. Tomas de Noronha, Joao Sucarelo ou Antonio Barbosa Bacelar (Lisboa, 1610-1663), ha um nome que se destaca como nenhum outro: o de Gregorio de Matos (Salvador, Baia, 1636-Recife, Pernambuco, 1696), que, na epoca luso-brasileira em que vive, e a personalidade mais representativa do genero satirico.

Poeta, de certo modo, mais portugues do que brasileiro (nasce e morre no Brasil mas vive cerca de trinta anos em Portugal, onde adquire a formacao cultural, literaria e politico-social que lhe permite a construcao de uma obra impar), passou, contudo, a integrar mais o canone da literatura brasileira. Por isso mesmo, e tambem porque ha estudos bem conseguidos sobre a poesia satirica que lhe e atribuida, (2) abordaremos apenas alguns aspectos pouco ou nada tratados, quer de natureza formal e tematica, quer, sobretudo, de teoria (implicita e explicita) e de pragmatica da satira.

Na obra poetica multifacetada de Gregorio de Matos, a satira e o genero quantitativamente mais saliente; encontra-se em praticamente todas as formas cultivadas pelo autor, desde as mais breves como o soneto ate as mais extensas, nalguns casos com mais de cem versos, como a cancao alirada, a silva, a copla, a letrilha, o romance e o poema em decimas ou em tercetos. Na edicao critica dos sonetos gregorianos, Francisco Topa arrola, no ciclo "Satiricos e burlescos", 68 textos, numero que ultrapassa o de todos os outros grupos abertos pelo mesmo investigador (e todos muito importantes na lirica barroca), incluindo o dos "Amorosos" (com 56 entradas): "Sacros e morais", "Encomiasticos" e "Funebres".

Os temas da satira de Gregorio de Matos decorrem de uma observacao profunda que se alia a uma pericia e a uma criatividade estilisticas em que cabem todos os procedimentos tipicos da poetica satirica do lirismo barroco portugues (e outros mais especificos, como o uso de certas onomatopeias, de tupismos e de africanismos); procedimentos, como a metafora, a hiperbole, a antitese, a adjectivacao abundante e disforica, que fazem da linguagem satirica uma especie de praga. A ironia e o humor transformam esta acerbidade em depredacao mais lenta; mas nem assim ela se revela inferior em efeitos sobre o enunciador e os receptores (o prazer) e o objecto (a dor, a raiva). o prazer que vem de uma satira apoiada na ironia e no humor pode, alias, ser maior do que o que resulta de uma satira sem ironia e sem humor. Gregorio de Matos, ao utilizar perspectivas e recursos muito variados, consegue, de poema para poema ou na mesma composicao, articular os prazeres mais intelectuais com os mais sensoriais, as respostas da mente com as do corpo.

A satira vive das contingencias e conflitualidades que fazem a vida de todos os dias. Na obra deste autor biografica e literariamente poliedrico e enigmatico, em relacao ao qual nao custa conceber a imagem de quem se alimenta como poucos da satira literaria, isso significa mesmo que praticamente toda a sociedade e representada; provam-no estudos como os de Angela Maria Dias (1981), Joao Adolfo Hansen (1989) ou Adriano Espinola (2000), que, dinamizando analises as vezes de grande pormenor, assinalam a focalizacao que recai sobre o clero vicioso, o fidalgo oportunista, o letrado presuncoso, o homossexual, o burgues bocal, a mulher ardilosa, o politico corrupto e prepotente, o homem do povo bruto e ignorante, etc.

Especie de sintese da respiracao satirica que os poetas barrocos peninsulares dao abundantemente a conhecer sem inibicoes, por assumirem o satirico como elemento intrinseco ao ritmo natural do humano, a satira gregoriana mantem a actualidade de temas e de linguagens. A composicao barroca do Boca de Inferno nao impede a limpidez e fluencia versificatoria nem a clareza semantica, e isso nao acarreta qualquer perda para a convocacao do espirito critico de quem le. Esta satira, um caso de maturidade do genero na poesia portuguesa, prende o receptor a cada novo verso, sempre versatil na identificacao e na sufocacao do outro.

Isso, em parte, explica-se pela opcao ora por uma linguagem que nao prescinde de apontamentos realistas e crus mas nao abusa da poetica do obsceno. Gregorio de Matos e um mestre tanto da inversao de significados que pede uma descodificacao mais cerebral como da ridicularizacao imediata que apela mais aos sentidos. Estes efeitos sao proporcionados pela ironia e pelo cinismo, na tematica mais social, politica e religiosa; (3) nos textos mais pessoalizados, a asfixia do outro baseia-se sobretudo no recurso a apontamentos sexuais e pornograficos.

Estes textos, livres de quaisquer preocupacoes com moralismos jesuiticos, sao exemplares no modo como se servem de topicos como a sofreguidao erotico-carnal, as perversoes, os casos de impotencia e de falta de higiene genital. O poeta compraz-se na construcao de cenas anedoticas de um mundo de pulsoes e negocios sexuais em que todos participam, mas onde ninguem quer ser surpreendido pelo olhar e pelo riso alheios:

Chegando a Cajaiba vi Antonica,/ Indo-lhe apolegar, disse-me "Caca":/ Gritou Tomas em tono de matraca/ "Hu, hu" pela mulher que foge a pica.// "Eu (disse ela) nao sou mulher de crica/ Que assoma como rato na buraca;/ Quem me lograr ha-de ter boa ataca,/ Que corresponda ao vaso que fornica.// "Nunca me foi mister dizer 'Quem merca?',/ porque a minha beleza e mar que surca/ Alto baixel que traz cutelo e forca".// E pois voce tem feito com que perca,/ Diga essas confiancas a sua urca,/ Que eu sei que em cima de urca e puta porca. (Topa 401)

Aquele texto serve bem para observarmos as duas tendencias retorico-estilisticas tipicas das satiras de Gregorio de Matos: a que se apoia mais na ironia e a que se constitui mais no obsceno. As duas surgem articuladas tanto pela alternancia entre registos de linguagem erudita (parodica) e popular ou prosaica como pela sua fusao numa estrutura de superficie em que o elemento carnavalesco multiplica criativamente os significados. O poeta, cinico e meticuloso, mostra as realidades que a poesia amorosa ignora: aqueles que ostentam a sua beleza e a sua elevacao moral tambem cedem a natureza carnal e instintiva do corpo. O poema, exibindo a ligacao dessas pessoas as funcoes organicas primarias, degrada-lhes a imagem e poe um fim, burlesco e risivel, as suas pretensoes de nobreza social e espiritual.

A satira em verso de Gregorio de Matos e um jogo astucioso de disfarces, que nao passa despercebido a quem conhecer as varias linhas da poetica satirica do autor. Consciente da complexidade e importancia desta atitude de espirito e deste modo de expressao, o poeta reflecte com alguma frequencia sobre o genero ou sobre a pulsao e a tonalidade satiricas.

Gregorio de Matos constroi uma imagem e uma reputacao de persona satirica: um genio satirico que, face a uma constante exigencia de actuacao, nao pode desviar-se do imperativo de proclamar a autonomia da sua vontade e razao. Nao falta quem, a proposito, por exemplo, da chegada a Bahia de "Pedralves", lhe peca "alguma satira honrada", ou lhe rogue uma "satira em louvor" (144 e 177).

A satira inscreve-se irredutivelmente na dimensao vital desta persona, que, atraves dela, age eticamente. por serem negativas as imagens do emissor e da sua "lira maldizente", a defesa, no poema "Eu sou aquele, que os passados anos" (293), constitui-se em tratado: assume-se quer o imperativo da satira enquanto expressao de pensamentos e de accoes, quer a transformacao da diccao satirica em objecto dignificadamente poetico. Para isso, o poeta habilita artisticamente a linguagem falada e o calao dentro de um ludico total.

A teoria da satira de Gregorio de Matos, defendida na sua poesia, e dialectica e programatica. O poeta elogia a arte da satira enquanto arte da palavra ao servico da etica e insurge-se contra aqueles que nao se indignam contra a mentira e a hipocrisia:

   O nescio, o ignorante, o inexperto,/ Que nao elege o bom, nem mau
   reprova,/ Por tudo passa deslumbrado, e incerto.// [...]// Diz logo
   prudentaco, e repousado,/ Fulano e um satirico, e um louco,/ De
   lingua ma, de coracao danado.// Nescio: se disso entendes nada, ou
   pouco,/ Como mofas com riso, e algazarras/ Musas, que estimo ter,
   quando as invoco?// Se souberas falar, tambem falaras,/ Tambem
   satirizaras, se souberas,/ E se foras Poeta, poetizaras. (294)

A satira, na sua constituicao ao mesmo tempo antropologica e axiologica, obriga a reflectir sobre os erros, as perversidades e as injusticas; por isso, num tempo de crise de valores, gera verdades para a vida:

   A ignorancia dos homens destas eras/ Sisudos faz ser uns, outros
   prudentes,/ Que a mudez canoniza bestas feras.// Ha bons, por nao
   poder ser insolentes,/ Outros ha comedidos de medrosos,/ Nao mordem
   outros nao, por nao ter dentes.// [...]// Todos somos ruins, todos
   perversos,/ So nos distingue o vicio, e a virtude,/ De que uns sao
   comensais, outros adversos. (294)

O terceto seguinte, o ultimo do poema, reune o serio e o burlesco. Estas duas tonalidades atravessam todo o texto e constroem a aura do eu satirico; um eu irrequieto, cruel, perigoso, autoritario, mas capaz de reconhecer os seus excessos: "Quem maior a tiver, do que eu ter pude,/ Esse so me censure, esse me note,/ Calem-se os mais, chitom, e haja saude" (295). A indignacao e uma emocao nobre que deve ser combinada com o comico; a seriedade traz elevacao ao poema e o ridiculum castiga o objecto.

A figuracao biografica do eu da enunciacao e a definicao do genero ocorrem ao mesmo tempo: aquele da-se a conhecer como um agente paradigmatico da satira. E ainda o que sucede no poema "Que nao vos enganais, digo", em que se figura um caso emblematico: o poeta problematiza ironicamente a sua imagem, alimentando-se de um prazer muito intimo que vem dos jogos de corpo a corpo com a linguagem e com o interlocutor, e dos movimentos de descoberta e de tensao que conduzem a revelacao dos valores semanticos, sensorios e pragmaticos da satira. A didascalia--"Passou o poeta pela porta desta dama, arribando de fora por causa da chuva, com um casacao e uma carapuca, e ela lhe disse que se fora poeta, como ele, o havia de satirizar pelo descoco: ao que ele fez estas"--coloca o texto num ambiente de fluidez e ilusao, o que nao e contrario a concepcao barroca (e nao so) de satira.

Nao podemos por em causa nem confirmar a veracidade da correspondencia entre o caso narrado no poema e um momento da biografia de Gregorio de Matos. Ha apenas a certeza de que a satira e uma agressao ambigua e complexa e o poeta satirico um eximio fingidor que poe e tira mascaras: o enunciador critica-se a si mesmo, mas, atraves de um continuado jogo de antifrases, visa o objecto. Importara ler todo o poema sem cortes, de modo a que esta nossa breve analise possa fazer sentido:

   Que nao vos enganais, digo,/ Betica, e antes cuidai,/ que uma
   satira a meu pai/ farei, se bulir comigo:/ Fa-la-ei ao mor amigo,/
   quando aleivoso me toe,/ e porque melhor vos soe,/ se vos pus em
   tanta calma,/ sendo o meu idolo d'alma,/ a quem quereis, que
   perdoe?// E se mal vos pareceu,/ que eu fosse por esse posto/ tao
   despido, e descomposto,/ sem ter respeito a esse ceu,/ bem sabeis
   vos, que choveu,/ e eu vinha de me embarcar: porem entoldou-se o
   ar,/ e para casa arribei,/ com que se desagradei,/ quero-me
   satirizar.// Betica, eu sou um magano,/ um patife, um mariola,/ um
   satiro, um salvajola,/ e mais doudo que um galhano:/ depois de ser
   vosso mano,/ em tempo, que eu era honrado,/ fui muito desaforado/
   em ir pela vossa rua/ com barrete de falua,/ e o pa de gato,
   pingado.// Sou um sujo, e um patola,/ de mau ser, ma propensao,/
   porque se gasto o tostao/ e so com negras de Angola:/ um satiro
   salvajola,/ a quem a universidade/ nao melhorou qualidade,/ nem
   juizo melhorou,/ e se acaso la estudou,/ foi loucura, e asnidade.//
   [...]// Se da satira entenderes,/ que pouco pesada vai,/ vos,
   Betica, a acrescentai,/ chamando-me o que quiseres:/ quantos nomes
   me puseres,/ todos me viram frisando,/ e se enfim acrescentando/
   nao vos parecer bastante,/ mudai-os de instante a instante,/
   pondo-me uns, e outros tirando. (102-104)

O aparato adjectival, condensado no sintagma "satiro salvajola", e a eufonia dos versos materializam o orgulho do sujeito da enunciacao (e do enunciado), que canta subversivamente a sua vida de marginalidade e a sua eloquencia como poeta e como satirico; e expressam ainda o poder total da satira, que, segundo o enunciador, existe tambem para o eu se punir a si proprio. Simulando ser o unico objecto da sua satira, o sujeito investe carnavalescamente sobre o destinatario, que se ve numa especie de ritual satanico presidido por um justiceiro impiedoso. Progressivamente, o leitor entra no jogo satirico e no circulo dos eleitos que compreendem a mensagem e se deliciam com ela.

O leitor, atraido pelo poema enquanto arte verbal e pelo que ele representa de poder e dominacao, tende a adoptar o ponto de vista do eu satirico. Todavia, a fronteira entre a adesao total ao texto e a repulsa e sempre muito sensivel, seja porque nao se concorda com o alinhamento ou com o conteudo dos argumentos que deveriam garantir a etica da satira, seja porque se considera o tom desajustado, por defeito ou por excesso.

O poeta espera que o leitor reaja emocionalmente a seu favor, mas tambem lhe pede uma accao racional contra o vicio e o moralismo. Estamos no ambito dos prazeres da satira, que se relacionam directamente com o que nela e da ordem da purificacao dos impulsos de vindicta e de punicao do eu; e estamos tambem, ao mesmo tempo, no ambito da pragmatica da satira, ja que dela pode resultar quer a pacificacao dos excessos vingativos do sujeito, quer, cumulativamente, a libertacao de energias negativas ou incorrectamente dirigidas do objecto satirizado.

Nenhuma teorizacao propriamente dita preceitua o uso de uma linguagem satirica crua e obscena; contudo, o sentido da indignacao exige por vezes esse registo, tal e a amplitude dos erros ou males a castigar. Gregorio de Matos entende que, em certas circunstancias, so atraves de um processo estrategico de saturacao extrema e possivel cumprir o fim moralizador atribuido a satira por todas as teorias canonicas.

Para responder convenientemente aqueles que o acusam de reagir com ressentimento e negativismo a quem se lhe opoe, o poeta necessita de provar que ha um ideal humano na sua satira. Gregorio de Matos cultiva uma satira muitas vezes violentamente pessoal, mas preocupa-se em legitimar essa opcao de fundo e de forma afirmando que o Bem e a Justica sao valores absolutos e objectivos a que deve corresponder uma punicao severa e inesquecivel.

REFERENCIAS

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Dias, Angela Maria. O resgate da Dissonancia: satira e projeto Literario Brasileiro. Rio de Janeiro: Antares/Inelivro, 1981.

Espinola, A. As Artes de enganar: um estudo das mascaras poeticas e biograficas de Gregorio de Mattos. Apresentacao de Ronaldes de Melo e Souza. Topbooks Editora: Rio de Janeiro, 2000.

Frye, Northrop. Anatomy of Criticism: four essays. Princeton/New Jersey, Princeton UP, 1957.

Gracian, Baltasar. agudeza y Arte de Ingenio. Tomo I. Edicion, introduccion y notas de Evaristo Correa Calderon. Madrid: Editorial Castalia, 1969.

Hansen, J. A. A Satira e o Engenho: Gregorio de Matos e a Bahia do seculo XVII. Sao Paulo: Companhia das Letras/Secretaria de Estado da Cultura, 1989.

Matos, Gregorio de. Se Souberas Falar, Tambem Falaras: antologia poetica. Organizacao, seleccao, estudo e notas de Gilberto Mendonca Teles. Lisboa: Imprensa Nacional --Casa da Moeda, 1989.

Melo, Francisco de Pina e. Arte Poetica. Apresentacao de Anibal Pinto de Castro. Estudo introdutorio, edicao e notas de Antonio Manuel Esteves Joaquim. Lisboa: Imprensa Nacional--Casa da Moeda, 2003.

Silva, Vitor Manuel de Aguiar e. Maneirismo e Barroco na Poesia lirica Portuguesa. Coimbra: Centro de Estudos Romanicos, 1971.

Topa, Francisco. Edicao Critica da Obra Poetica de Gregorio de Matos--vol. I, tomo 1: Introducao; 'Recensio' (1.a parte); vol. I, tomo 2: 'Recensio' (2.a parte); vol. II: Edicao dos Sonetos; vol. II: Edicao dos Sonetos; Anexo--Sonetos Excluidos. Dissertacao de Doutoramento em Literatura Brasileira apresentada a Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Porto: Faculdade de Letras, Edicao do Autor, 1999.

Worcester, David. The Art of Satire. Cambridge: Harvard UP, 1940.

Carlos Nogueira

IELT, Universidade Nova de Lisboa

NOTAS

(1) Obra em decassilabos emparelhados, ao jeito de Boileau, em que Francisco de Pina e Melo cruza postulados barrocos e neoclassicos, sem incorrer nos dogmatismos de muitos dos adeptos das duas doutrinas entao em conflito.

(2) Convem lembrar que estas abordagens sao anteriores aos trabalhos de recensio dos testemunhos da obra do autor, bem como de edicao critica dos sonetos, realizados por Francisco Topa (1999).

(3) Como no soneto em que se "Descreve o que era naquele tempo a Cidade da Baia": "A cada canto um grande conselheiro,/ Que nos quer governar cabana e vinha;/ Nao sabem governar sua cozinha,/ E podem governar o mundo inteiro.// Em cada porta um frequentado olheiro,/ Que a vida do vizinho e da vizinha/ Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,/ Para o levar a Praca e ao Terreiro.// Muitos mulatos desavergonhados,/ Trazidos pelos pes os homens nobres,/ Posta nas palmas toda a picardia.// Estupendas usuras nos mercados,/ Todos os que nao furtam muito pobres:/ Eis aqui a Cidade da Baia" (Topa 317).

Copyright: COPYRIGHT 2013 University of North Carolina at Chapel Hill, Department of Romance Languages

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Gale Document Number: GALE|A377409465

Quais as características da poesia satírica de Gregório de Matos?

CARACTERÍSTICAS LITERÁRIAS É mais conhecido por sua sátira ferina, azeda e mordaz, usando, às vezes, palavras de baixo calão, daí seu epíteto Boca do Inferno. Critica todos os aspectos da sociedade baiana, particularmente o clero e o português.

Como é classificada a poesia de Gregório de Matos?

A obra de Gregório de Matos divide-se em três vertentes temáticas: poesia satírica, religiosa e lírica.

Quais características do Barroco podemos encontrar no poema de Gregório de Matos?

A heterogeneidade radical do poeta se manifesta nas múltiplas vozes ( religiosa , erótica , lírica , jocosa , satírica , encomiástica), que presidem à gênese e ao desenvolvimento de sua obra essencialmente dialógica e polifônica.

Quais as características da lírica amorosa de Gregório de Matos?

Na poesia lírico-amorosa, o poeta revela sua amada, uma mulher bela que é constantemente comparada aos elementos da natureza. Além disso, ao mesmo tempo que o amor desperta os desejos corporais, o poeta é assaltado pela culpa e pela angústia do pecado.