Nós e eles nos média1Os Estudos Culturais têm se desenvolvido em torno de uma abordagem crítica do conceito de cultura, desconstruindo a sua configuração antropológica e a sua configuração enquanto produção cultural. Entendendo a cultura como transversal a todos os níveis da vida social, sendo muito mais complexa e contraditória do que teorizado inicialmente, o campo disciplinar tem contribuído enormemente para a contestação de teorias e conceitos essencialistas, tais como os de identidade, nas suas várias formas, nomeadamente a identidade nacional, enquanto “comunidade imaginada” (Anderson, 1983/2016). Interessamo-nos, particularmente, na interação discursiva entre esta identidade cultural particularmente forte e institucionalmente suportada e a comunidade imaginada supranacional europeia, que tem sido promovida, apropriada e construída juntamente com o processo de integração política e económica, uma vez que “cada vez mais, os cidadãos da União Europeia estão a ser evocados como uma comunidade imaginada diferente: como europeus, uma identidade talvez tão problemática como as identidades nacionais particularistas que pretende substituir” (Geary, 2013, p. 39). Os Estados-Nação europeus foram construídos com base em discursos contraditórios acerca das suas origens. Com o nascimento da Comunidade Europeia, a ideia da Europa como um todo coeso tornou-se uma parte importante da integração europeia, levantando a questão de “quais são os novos mitos nacionais nos quais se poderá basear uma identidade nacional europeia?” e, talvez, uma questão ainda mais importante: “quais poderão ser os perigos desta nova identidade?” (Geary, 2013, p. 45). Show
2Os riscos, poder-se-á argumentar, podem ser os mesmos que os levantados pela ideia do Estado-Nação, nomeadamente, quem tem o direito de “cantá-lo” (Butler & Spivak, 2007), a quem é permitido, ou não, ser parte de nós (Butler & Spivak, 2007; El-Tayeb, 2011), quem é outrizado, que performances são aceites, uma vez que, como explica Judith Butler, o Estado (conceito que expandimos para também se referir ao estado europeu supranacional) “pode significar a fonte de não-pertença, mesmo produzir essa não-pertença como um estado quase permanente” (Butler & Spivak, 2007, p. 4). 3Os não-europeus que chegam às fronteiras da Europa levantam a questão da construção da europeidade de uma forma particularmente forte. A produção e reafirmação de um discurso particular sobre nós, podem, como discutido, ser expandidas da comunidade imaginada do Estado-Nação para o domínio europeu supranacional, criando uma fonte europeia de não-pertença, como defende Fatima El-Tayeb:
4O contexto da chamada “crise dos refugiados” tem um forte potencial para nos permitir compreender que discursos surgem nos média relativamente a identidades coletivas enquanto ligadas à pertença política, quais são tornadas subalternas e quais são apresentadas como de senso comum (isto é, hegemónicas). Referimo-nos a este contexto como uma “chamada crise” uma vez que a utilização do conceito de “crise” representa, já por si, um determinado enquadramento da questão, é “uma escolha que está impregnada de políticas raciais, de género e colonialistas” (Nawyn, 2018, p. 1).
5E a mesma ideia é reforçada por Fatima El-Tayeb:
6Os média desempenham um papel extremamente importante neste processo de construção das barreiras entre nós e eles, principalmente, na reprodução de representações sobre outros, com quem o público não tem contacto direto. As narrativas são constantemente recontadas em cada estória noticiosa, ressoando com estórias anteriores, criando a sensação de um “drama infinitamente repetido” (Rock, 1981, citado em Bird & Dardenne, 1999, p. 268), enquanto os jornalistas operam sob a ilusão de estarem simplesmente a usar os métodos mais tecnicamente eficientes para retratar a realidade de acordo com critérios objetivos dos valores-notícia de imediatismo, do invulgar, da simplicidade. Mas a forma como estas estórias são contadas, a partir de códigos narrativos tais como os de vilões e heróis (Bird & Dardenne, 1999, pp. 269, 275), não é meramente uma técnica neutra para tornar as notícias mais envolventes, mas reflete “mapas de sentido” (Hall, 1993) culturalmente pré-estabelecidos. Os média têm um assinalável poder na definição e redefinição destas narrativas, uma vez que “o contar de uma ‘estória’ exclui, por conseguinte, todas as outras ‘estórias’ que nunca são contadas” (Bird & Dardenne, 1999, p. 277). Este poder é especialmente forte nos órgãos de comunicação social mainstream (Chomsky, 1997), uma vez que as estórias noticiosas fazem parte de um conjunto de práticas socialmente vistas como de confiança, e com o meio a atuar como uma figura de autoridade relativamente ao público (Bird & Dardenne, 1999, p. 275). Assim, a análise da forma como os média retratam aqueles que são apresentados como outsiders permite-nos explorar o discurso prevalente sobre a ideia de europeidade, enquanto uma “comunidade imaginada” (Anderson, 1983/2016) tornada coesa através de uma determinada ideia de identidade europeia. Considerações metodológicas
7A análise feita neste artigo integra um projeto de investigação mais vasto sobre ideologias acerca das identidades nacionais e europeia nos média online portugueses e alemães, de 2011 a 2017. A adequação da escolha da Alemanha e de Portugal como pontos específicos de intersecção entre duas Europas, a do Norte e a do Sul, como forma de explorar como esta ideia de identidades nacionais é construída, é extensível à exploração da construção de uma ideia de Europa, especialmente, tendo em conta o papel desempenhado pela Alemanha no contexto da chamada crise dos refugiados, face a estes “outros não-europeus”. Seguindo uma estratégia de seleção estratégica e saturação (Frow & Morris, 2006), dois órgãos de comunicação social, por país, foram selecionados, de acordo com as suas “personalidades sociais” (Hall, Critcher, Jefferson, Clarke & Roberts, 1978, p. 60), nomeadamente foram selecionados os jornais de referência e tabloide (Chomsky, 1997; Gossel, 2017) mais lidos no momento da recolha de dados (Marktest, 2018; Schröder, 2018): Diário de Notícias (DN) e Correio da Manhã (CM), em Portugal, e Spiegel e Bild, na Alemanha, usando uma metodologia de análise de conteúdo qualitativa (Bardin, 2007)1. Para esta análise qualitativa, recorremos a uma seleção estratégica de períodos temporais, em torno das eleições legislativas em cada um dos países, assim como em torno das eleições para o Parlamento Europeu. As eleições são encaradas como contextos especialmente ricos do ponto de vista discursivo, entre os quais o estudo de questões de identidade e crise, com a disputa e o discurso políticos intensificados e com a cobertura mediática sobre questões políticas mais prolífica. Para cada um destes períodos temporais, e para cada um dos órgãos de comunicação social, a recolha de dados iniciou com uma pesquisa online, através do motor de busca Google, a partir de palavras-chave selecionadas estrategicamente, filtrada por data, que foi posteriormente completada através de uma segunda pesquisa nos motores de busca internos de cada um dos órgãos, assim como nas secções de “notícias relacionadas”, dentro dos mesmos períodos eleitorais2. Os dados foram, subsequentemente, filtrados, de forma a atingir a saturação teórica dos dados. A partir da seleção final de dados, para efeitos do presente artigo, foram selecionados os artigos jornalísticos referentes à “crise dos refugiados/migratória”. 8Para analisar os artigos recolhidos, desenvolvemos um modelo, baseado na análise de conteúdo de Bardin (2007) e numa combinação do modelo de Stuart Hall de “codificação descodificação” (1993) e do seu trabalho em Policing the crisis (Hall et al., 1978). O nosso modelo consiste em dois conjuntos de tabelas para cada órgão de comunicação social: as tabelas dos definidores (em que cada discurso é atribuído às fontes ou definidores citados nos artigos) e as tabelas do jornal (em que o discurso é atribuído diretamente ao jornal). Para cada definidor identificado em cada artigo, assim como para cada órgão, foi criada uma tabela, de forma a identificar o que é dito sobre nós/eles, em cada contexto e período temporal. Após esta primeira análise, foi-nos possível agrupar os discursos e identificar relações entre os mesmos, criando, assim, as categorias e as correspondentes subcategorias e enquadramentos. Quem é o outro?9Esta análise permitiu-nos identificar diferentes categorias principais de discursos sobre o outro, em relação à chamada “crise dos refugiados/migratória”. Identificámos três categorias principais de outros: o muçulmano, o refugiado e o outro político/institucional. Estes outros foram enquadrados de diferentes formas. Relativamente ao “o outro muçulmano”, o único enquadramento é “nós não somos muçulmanos”; sobre o “o outro refugiado”, os principais enquadramentos são que este “é bem-vindo”, “não é bem-vindo” e “não é problema nosso”, com algumas variações dentro destes enquadramentos principais; relativamente ao “o outro institucional/político”, os enquadramentos principais são: “Europa dos Estados-Nação”, “U.E. enquanto outro” e o “outro extrema-direita”. 10Iremos, seguidamente, expor a forma como estes outros são enquadrados nos diferentes órgãos de comunicação social, tendo em conta as fontes, ou definidores, que são citadas, quando aplicável, e ilustrado os enquadramentos com exemplos dos discursos correspondentes. Os dados incluídos nas tabelas não correspondem a uma reprodução extensiva dos dados analisados, mas servem meramente propósitos ilustrativos. O outro muçulmanoNós não somos muçulmanos11Esta categoria recorre a uma representação simbólica da identidade, nomeando ooutro, explícita ou implicitamente, com base no eixo da religião, entendida no sentido mais lato como referência cultural simbólica. A Alemanha não é muçulmana12Este discurso enquadra a Alemanha como não sendo muçulmana, ou o Islão como não sendo alemão, apesar de haver pessoas muçulmanas residentes no país. Isto não significa que o discurso rejeite explicitamente a possibilidade da presença, ou “integração”, de pessoas muçulmanas, mas, ainda assim, a ideia subjacente, é que estas não são parte da ideia de nós. Surge no Diário de Notícias (DN), Bild e Spiegel, por vezes, citando, direta ou indiretamente, definidores da CDU e AfD (ver Apêndice 1: lista de partidos políticos). Tabela 1: “A Alemanha não é muçulmana”
A Europa não é muçulmana13O mesmo tipo de enquadramento também pode ser identificado relativamente à representação simbólica da Europa como não sendo muçulmana. Neste caso, estes enquadramentos podem ser encontrados no CM, DN e Spiegel, e os definidores citados são representantes do Partido Nacional Renovador (PNR) português, uma organização não governamental (ONG), e artigos de opinião de um académico e uma jornalista. Tabela 2: “A Europa não é muçulmana”
Portugal não é muçulmano14Quase ausente do discurso relativamente a Portugal, a questão do Islão apenas é levantada por um representante do PNR, no Correio da Manhã. Tabela 3: “Portugal não é muçulmano”
O outro refugiado15Relativamente ao “refugiado” enquanto outro, identificámos dois enquadramentos principais: “é bem-vindo” e “não é bem-vindo”. Em cada um desses enquadramentos, diferentes discursos apresentam diferentes justificações para serem, ou não, bem-vindos. Também variam, até certo ponto, dependendo de quem dá, ou não, essas boas-vindas, nomeadamente, o governo ou a sociedade civil. É um enquadramento com relevância quase exclusiva face ao contexto alemão, como poderá ser observado nos exemplos ilustrativos apresentados. É bem-vindo: governo alemão16Este discurso surge em todos os meios de comunicação social analisados. Apresenta o governo alemão, ou, especificamente, Angela Merkel, como sendo acolhedores dos refugiados que chegam ao país. Esta política é apresentada maioritariamente de forma positiva, mas não exclusivamente, uma vez que, por vezes, há um posicionamento crítico. Os definidores que adotam este enquadramento, para além dos próprios órgãos de comunicação social, são um diplomata português e um representante da CDU alemã, e jornalistas em artigos de opinião, num tom positivo, e, em tom crítico, um representante da AfD, assim como os média alemães. Tabela 4: “O outro refugiado é bem-vindo – Governo alemão – tom positivo”
Tabela 5: “O outro refugiado é bem-vindo – Governo alemão – tom crítico”
É bem-vindo: como recurso económico17Este tipo de discurso enquadra o acolhimento de refugiados como sendo potencialmente útil do ponto de vista económico, isto, é, instrumentalizando-os como sendo bem-vindos, porque poderão ser um recurso económico, como mão de obra. Surge nos órgãos de comunicação social alemães, tendo como definidores representantes dos Die Grünen, do SPD e da CDU/CSU, assim como no DN, através de um artigo de opinião de um académico português. Por vezes, migrantes e refugiados são referidos de forma não diferenciada. Tabela 6: “O outro refugiado é bem-vindo como recurso económico”
É bem-vindo: desde que a nossa “cultura” seja respeitada18Este tipo de discurso representa uma visão condicional das políticas de acolhimento: os refugiados são vistos como bem-vindos, mas, sendo um outro, a sua presença está condicionada pela sua “aceitação” dos “nossos valores” ou da “nossa cultura”. Em vez de utilizar uma outrização baseada numa representação simbólica essencialista, utiliza um tipo de linguagem cívica para traçar a linha de outrização. Surge nos média portugueses, tendo como definidores representantes dos partidos alemães CDU, SPD e AfD. Tabela 7: “O outro refugiado é bem-vindo desde que a “nossa” cultura seja respeitada”
Sociedade de imigração19Este tipo de discurso, inserido na categoria “é bem-vindo”, enquadra a sociedade alemã, e europeia, como sendo, ou exortando-a a ser, solidária, e acolhedora de migrantes e/ou refugiados, como sendo uma característica da própria sociedade. Surge no Bild e no Diário de Notícias, e tem como definidores representantes dos partidos alemães Die Linke e Die Grünen, assim como de uma cadeia de supermercados alemã. Tabela 8: “O outro refugiado: sociedade de imigração”
O “bom” migrante20Inserido na mesma categoria, este enquadramento utiliza uma estória anedótica no Diário de Notícias, sobre um refugiado, apresentando uma visão positiva através da exemplificação. É interessante observar o contraste com a estória que referimos infra, na categoria “não é bem-vindo”, do Correio da Manhã (CM, 2017), em sentido oposto. Tabela 9: “O outro refugiado: o ‘bom’ migrante”
É trágico: crise21Este enquadramento, que, em certa medida, subjaz à cobertura geral da “crise”, apresenta a situação dos refugiados, principalmente vindos da Síria, como uma tragédia, e coloca o enfoque nos horrores experienciados pelos mesmos, quer no seu país de proveniência, ou durante o processo de migração para a Europa. Surge no Bild, Diário de Notícias e Spiegel, e os seus definidores são académicos e jornalistas em artigos de opinião, e os próprios média alemães. Tabela 10: “O outro refugiado é tráfico: crise”
É trágico: responsabilidade europeia22A ideia de tragédia e crise é, tal como mencionado na introdução, quase universalmente transversal aos discursos sobre refugiados e migrantes. Contudo, existe um artigo que parece indicar uma brecha na ideia hegemónica de que a crise não é causada pela própria Europa. Mesmo que ainda seja dentro do enquadramento de tragédia, e apresentado como um mero “erro”, ou má tática política da Europa. Trata-se de um artigo de opinião de um académico português, no DN. Tabela 11: “O outro refugiado é trágico: responsabilidade europeia”
Não é bem-vindo23Esta categoria abrange os discursos que enquadram os refugiados como não sendo bem-vindos, na Alemanha ou Portugal, tanto os que contradizem o discurso dominante de que os mesmos são acolhidos pelo governo (enfatizando, assim, que não são tão bem acolhidos como é retratado), e os que declaram diretamente que eles não deveriam ser acolhidos, por diversas razões. Na Alemanha: governo24Este enquadramento, como explicado, desafia o enquadramento delineado previamente que representa o governo alemão como sendo particularmente acolhedor face à chamada crise dos refugiados. Surge em ambos os órgãos de comunicação social de referência, Spiegel e Diário de Notícias, tendo como definidores a Spiegel e académicos. Tabela 12: “O outro refugiado não é bem-vindo na Alemanha: governo”
Na Alemanha: sociedade civil25Este enquadramento centra-se nas formas em que a sociedade civil, na Alemanha, não está a ser recetiva aos refugiados, nomeadamente através da expressão eleitoral, entre outras demonstrações. É um enquadramento que critica esta postura, e surge, uma vez mais, nos órgãos de referência, Spiegel e Diário de Notícias, inclusivamente numa reportagem, com os mesmos definidores, adicionando a imprensa estrangeira, numa revista de imprensa publicada pela Spiegel. Tabela 13: “O outro refugiado não é bem-vindo na Alemanha: sociedade civil”
É uma ameaça: segurança, economia, representação simbólica26Diferentemente dos dois enquadramentos anteriores, que retratam a atitude negativa face aos refugiados de forma crítica, os três próximos enquadramentos representam as visões dos que rejeitam a presença de refugiados, usando uma série de justificações, frequentemente em conjunto: segurança, economia e representação simbólica da identidade ou cultura. 27A defesa com base na segurança, alegando que a chegada de refugiados é uma ameaça de segurança, surge no Correio da Manhã, Bild e Diário de Notícias, tendo como definidores, para além dos dois órgãos tabloide, um diplomata português (antigo embaixador) num artigo de opinião, um representante da CSU, um representante da AfD e um jornalista, numa entrevista. Tabela 14: “O outro refugiado é uma ameaça para a Alemanha: segurança”
28Nestes discursos, intimamente ligados com os restantes dois neste enquadramento, a ameaça económica é sublinhada. Surge no Correio da Manhã, Bild e Diário de Notícias, tendo como definidores o Bild, o mesmo diplomata português mencionado supra e representantes do AfD. Tabela 15: “O outro refugiado é uma ameaça para a Alemanha: economia”
29Este tipo de discurso recorre a representações simbólicas da identidade, ou cultura, para apresentar os refugiados como uma ameaça, especialmente refugiados muçulmanos (juntando à outrização do “muçulmano” em geral, mencionado supra). Surge no Correio da Manhã, Bild e Diário de Notícias, no mesmo discurso do diplomata português e representantes da AfD. Tabela 16: “O outro refugiado é uma ameaça para a Alemanha: representação simbólica”
Em Portugal: ameaça30Relativamente a Portugal, esta é a única categoria em que a “questão” dos refugiados surge, enquadrando o outro exclusivamente como uma ameaça, ao utilizar o enquadramento triplo de ameaça simbólica, económica e de segurança. Surge no Correio da Manhã, tendo um representante do PNR como definidor. Tabela 17: “O outro refugiado não é bem-vindo em Portugal: ameaça”
Na Europa31Aqui encontramos os discursos que apresentam a União Europeia, e os seus principais decisores, como um outro institucional, relativamente à resposta à “crise”, criticando a forma como a UE lidou com a situação. É um discurso crítico que aponta as hipocrisias nesta “crise”. São veiculados pelo Bild e Diário de Notícias, tendo como definidores o Bild, jornalistas, académicos em artigos de opinião e um antigo deputado britânico trabalhista. Tabela 18: “O outro refugiado não é bem-vindo na Europa”
Não é problema nosso32A única outra ocasião em que Portugal surge em relação à “crise dos refugiados”, nos dados analisados, é, na verdade, para enquadrar a questão como sendo praticamente inexistente em Portugal, devido à ausência de migrantes ou refugiados. Surge no Correio da Manhã, tendo como definidor um representante do PSD. Tabela 19: “O outro refugiado não é problema nosso”
Desoutrização: representação33Relativamente os primeiros dois outros, o Muçulmano e o Refugiado, os outros não-Europeus ou externos, há apenas duas ocasiões em que estes outros são os definidores do discurso. Trata-se, em ambos os casos, de reportagens do Diário de Notícias, realizadas na Alemanha, em que o outro é ouvido no processo de escrita sobre a questão dos refugiados e da migração, nomeadamente um representante de uma associação comunitária turca, e um refugiado sírio que trabalha como guia turístico em Berlim. Tabela 20: “Desoutrização”
O outro político/institucional34Nesta categoria, incluímos os discursos que outrizam instituições ou ideologias políticas, em relação à “crise dos refugiados/migratória”. Existe uma outrização de outros países/governos europeus e das instituições europeias, em relação à resposta a esta “crise”, assim como uma outrização da extrema direita. Europa dos Estados-Nação35Este enquadramento retrata uma divisão dentro da União Europeia, entre países que são acolhedores em contraste com os que não o são, ou critica uma alegada distribuição desigual de esforços de reinstalação. Surge nos média alemães, Bild e Spiegel, tendo como definidores os próprios órgãos de comunicação social, assim como um representante do SPD e um jornalista alemão, num artigo de opinião Tabela 21: “O outro político/institucional: Europa dos Estados-Nação”
O outro xenófoboEles da extrema direita36Esta categoria outriza a extrema direita, como não sendo parte da ideia de nós, como um “choque” e algo que tem de ser combatido. É utilizada pelo Correio da Manhã, Diário de Notícias e Spiegel, tendo como definidores o DN e Spiegel, representantes da CSU e da Comissão Europeia, académicos, intelectuais e jornalistas em artigos de opinião. É um discurso muito recorrente, pelo que apenas iremos indicar alguns exemplos ilustrativos. Tabela 22: “O outro político/institucional: o outro xenófobo – eles da extrema direita”
A extrema direita deles37Relativamente ao contexto alemão, existem ocasiões em que a extrema direita é apresentada como sendo, na verdade, parte da identidade e não um choque ou algo de estranho. Contudo, isto acontece apenas nos média portugueses, e é ainda um exemplo de outrização, uma vez que se trata de uma descrição de um intelectual português sobre a sociedade alemã, num artigo de opinião no DN, e, no caso de duas reportagens em Berlim, do mesmo órgão, as pessoas entrevistadas estão ou a outrizar alemães de extrema direita ou de Leste, ou o exemplo do refugiado sírio residente em Berlim mencionado supra. No caso da Spiegel, este discurso surge numa revista de imprensa estrangeira. Tabela 23: “O outro político institucional: o outro xenófobo – a extrema-direita deles”
Quem somos nós?38Apesar de existirem diferentes discursos sobre migrantes e refugiados nos média, o processo de outrização, em si mesmo, é hegemónico. Existem apenas duas ocasiões em que o migrante ou o refugiado não é objeto do discurso mas interlocutor, como definidor em artigos jornalísticos. Isto é particularmente impactante no caso da reportagem em que um refugiado sírio estabelece, através da referência a uma herança material com peso histórico, uma aproximação entre nós e eles (Viegas, 2017). Este paradoxo de uma ideia da Europa como internamente diversificada, mas com claras fronteiras a esta diversidade, baseadas numa certa mesmidade simbólica europeia, torna-se evidente nestes discursos. 39Parece existir uma maior possibilidade de empatia, para estreitar o fosso nós/eles, em reportagens, em que o jornalista tem contacto direito com definidores não hegemónicos. Esta ideia de que as reportagens abrem as portas a discursos contra-hegemónicos, contudo, não elimina, necessariamente, o quadro ideológico por detrás do “senso comum jornalístico” teorizado pelo modelo das dimensões de valores-notícia das reportagens, de Hall et al. (1978). Como sublinham os autores, a “passagem para a reportagem”, a “[a]nálise dos eventos como tendo um pano de fundo não coberto pela estória noticiosa hard”, com a função ideológica de colocar “os eventos e os atores num ‘mapa’ da sociedade”, pode, na cobertura em geral pelo órgão de comunicação social, acabar por desempenhar o papel de “reintegração da reportagem no discurso dominante do jornal”, no qual os média tornam “o evento e as suas implicações ‘gerenciáveis’, isto é, como algo que não destrói ou exige mudanças na estrutura básica da sociedade” (Hall et al.,1978, p. 99). Esta análise dinâmica que depende dos dados divididos de acordo com a cobertura por jornal está fora do escopo deste artigo, mas é necessário, ainda assim, tê-lo em conta nestas conclusões preliminares. 40Outro discurso que parece ser hegemónico, e em linha com a base teórica deste estudo (El-Tayev, 2011; Nawyn, 2018), é o que enquadra a migração e a “crise dos refugiados” enquanto tal, como uma crise, e uma crise que é independente de histórias e políticas europeias. As suas causas e consequências apenas são vistas como uma responsabilidade europeia, no melhor dos casos, num quadro de direitos humanos ou solidariedade, nunca como uma verdadeira responsabilidade ou ligação política e histórica. Quanto muito, a situação nos países de origem dos refugiados é vista como “demasiado complexa, demasiado difícil” (Câncio, 2015), e, no único caso em que a responsabilidade europeia é mencionada (Moreira, 2015), é ainda no quadro de um excecionalismo europeu. Como nota Fatima El-Tayeb, na sua análise crítica dos discursos usados pelo Museu da Europa para representar a europeidade:
41Quanto ao processo de outrização política, o discurso hegemónico baseia-se na ideia de que a extrema direita é intrinsecamente não-europeia ou anti-europeia, um outro diametralmente oposto, que tem de ser eliminado porque, do ponto de vista lógico, não pertence. Para a Europa como um todo, a presença da extrema direita é vista como um outlier, um “choque”, uma falha lógica no sistema do europeísmo. Isto contrasta com os posicionamentos, por vezes, críticos, em relação à outrização de não-europeus como parte da falta de políticas apropriadas, que, ainda assim, é um discurso que não vê ideias de extrema direita como parte de nós, ainda que a história da extrema direita, principalmente a história nazi na Alemanha, seja referida e mencionada. A Europa é apresentada como tendo um conjunto de valores comuns, e movimentos e ideias que vão contra estes valores, tais como a extrema direita, são vistos como um “choque”, uma “anormalidade”, como se, intrinsecamente, não fossem possíveis na Europa. Os apoiantes da extrema direita são a Europa de Leste, pessoas mal-informadas, criadores de medo – não “verdadeiros europeus”. Mesmo quando há uma crítica à xenofobia ou islamofobia, é sob o pressuposto de que estas são anti-europeias, que já foram ultrapassadas, da “ideologia europeia de neutralidade racial” (El-Tayev, 2011, p. 177). Uma pequena brecha nesta abordagem de senso comum parece ser um artigo de opinião de um jornalista alemão, no qual é dito explicitamente que este consenso “tem perdido cada vez mais a naturalidade, nos últimos anos” (Diez, 2017), mas, uma vez mais, isto é apresentado como um choque, e a ideia de consenso é o ponto de partida. 42Como realçam os dados recolhidos, não existe apenas a construção de uma ideia da Europa na qual os migrantes e refugiados são o outro, mesmo quando se fala da sua “integração”, mas também uma ideia da Europa que é intrinsecamente incompatível com ideias e movimentos de extrema direita ou xenófobos. 43Para além das conclusões iniciais gerais que delineámos neste estudo exploratório, análises adicionais beneficiaram de investigar mais profundamente a interação dinâmica entre variáveis, tais como os definidores e os enquadramentos identificados, que apenas foi mencionada aqui, e que está a ser desenvolvida no projeto de investigação doutoral que este artigo integra. Uma exploração adicional dos dados deverá ter em conta a cobertura discriminada por órgão de comunicação social, assim como por definidor, tipo de artigo, e outras variáveis eventualmente relevantes, assim como as relações dinâmicas entre elas. 44Consideramos que o contexto de “crise” acabou por ser, como esperado, um contexto particularmente rico para a exploração de processos de outrização, que, apesar de, neste caso, apenas serem explorados na arena discursiva, têm consequências práticas, políticas, sociais e económicas muito reais. A outrização do refugiado “trágico”, cuja “vida descartada está, assim, saturada em poder, mas não com modos de titularidade de direitos ou obrigações” (Butler & Spivak, 2007, p. 32), é precisamente um dos modos em que a comunidade imaginada do Estado, ou a supranacional União Europeia, são produzidos discursivamente como um todo homogéneo, deparando quem pertence e quem não, e definindo graus de aceitabilidade de diferentes vidas. Rita Himmel é bolseira de doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) (ref. SFRH/BD/123609/2016). Apoio financeiro da FCT no âmbito dos Fundos Nacionais do MCTES e FSE. Porque os europeus têm medo de refugiados?Isso decorre do fato que há fusão dos temas “imigração” e “criminalidade” no debate político e jurídico sobre o tema, uma vez que os migrantes tornam-se idôneos para que o imaginário coletivo projete sobre eles todo tipo de ansiedades e temores, atribuindo-lhes a responsabilidade por qualquer problema ou mal-estar ...
Como a Europa lida com refugiados?A grande maioria desses refugiados estão alocados em países europeus, principalmente aqueles que fazem fronteira com a Ucrânia. A recepção acolhedora dessa população contrasta com a forma como os países europeus lidaram com a última grande crise de refugiados, entre 2015 e 2016.
Porque os europeus não gostam de imigrantes?Esses refugiados estão fugindo de seus países devido a diversos fatores como guerra e violência, fome, todos os tipos de intolerância. Com esse fluxo de pessoas tentando chegar na Europa de maneira irregular e não convencional, desencadeou uma crise.
Por que o mundo teme os refugiados?Na animação, narrada pelo próprio filósofo polonês, Bauman defende a hipótese de que os refugiados simbolizam nossos piores medos: a perda de tudo conquistado ao longo da vida, a pobreza inesperada, o fim da segurança. É impossível fingir que nada está acontecendo, diz o filósofo.
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