Quais doenças afetam o povo brasileiro no início do século passado?

A peste bubônica ficou conhecida por devastar a Europa no final da Idade Média. Nos séculos seguintes, houve diferentes surtos da doença, que reapareceu de forma grave nos últimos anos do século XIX em países como China e Índia. De lá, chegou novamente à Europa, especialmente à cidade do Porto, em Portugal, em 1899, de onde se difundiu em seguida para o Paraguai.

A situação deixou em alerta o governo do Brasil, que decidiu isolar os navios vindos do Porto para evitar o contágio e a disseminação da doença, assim como encomendar a fabricação do soro antipestoso (que havia sido desenvolvido alguns anos antes por Alexandre Yersin, Albert Calmette, Émile Roux e Amédée Borrel), a institutos na França e Itália. Apesar da solicitação, o soro não foi fornecido em grandes quantidades, pois já havia uma demanda alta que precisava ser suprida, principalmente em Portugal.

No dia 18 de outubro de 1899, foram registrados oficialmente os primeiros casos de peste bubônica no Brasil em Santos (SP). A conclusão foi referendada pelo doutor Vital Brazil, que viria a ser o primeiro diretor do Instituto Butantan. Essa foi a primeira investigação de um surto de doença desconhecida no país que utilizou as descobertas de Louis Pasteur, as quais constituem as bases do que hoje chamamos microbiologia.

A partir da chegada da doença a Santos, o número de casos foi crescendo vertiginosamente. Para tentar conter esse aumento, a cidade foi isolada. Os navios que tinham autorização para desembarcar começaram a ser controlados e foram colocados postos de desinfecção nas estradas de ferro. Além disso, medidas de isolamento foram adotadas para os possíveis infectados.

Em 1901, a peste bubônica já havia chegado à cidade de São Paulo. Em junho, com o objetivo de controlar de forma mais eficaz o surto, o Instituto Butantan começou a produzir o soro antipestoso - considerado pelo Instituto Pasteur de Paris a grande arma para vencer a peste bubônica.

A situação só mudaria no ano seguinte, quando o Instituto Butantan começou a produzir a vacina antipestosa, seguindo a técnica criada pelo italiano Camillo Terni do Instituto de Messina, a partir da vacina desenvolvida pelo médico russo Waldemar Haffkines.

Quais doenças afetam o povo brasileiro no início do século passado?

The healthcare system for slaves in nineteenth-century Brazil: disease, institutions, and treatment practices

Ângela Pôrto Sobre o autor

    Resumos

    O século XIX é marcado por várias tentativas de coibir o tráfico de escravos e, ao mesmo tempo, é o período em que a importação foi a maior da história brasileira. As condições de transporte dos escravos, suas condições de trabalho, moradia e modo de vida são em grande parte responsáveis por suas condições de saúde. No entanto, essa questão só aparece pelas frestas da história e apresenta muitos pontos controversos a serem esclarecidos. O interesse da pesquisa é promover o cruzamento de fontes e temas, que reúnam uma variedade de informações sobre a vida higiênica dos escravos no século XIX. Nosso objetivo é reunir uma massa de dados, a partir da análise de documentos dos arquivos hospitalares, cartoriais e eclesiásticos, das fontes iconográficas e da literatura médica, que nos dêem elementos para compor uma história do sistema de saúde dos escravos.

    escravidão; história de doenças; história da medicina; história do Brasil; século XIX


    Although the nineteenth century saw numerous attempts to deter the slave trade, it was also the period when Brazil imported the greatest number of slaves in its history. The conditions under which slaves were transported, worked, and lived were largely responsible for their state of health. Yet this topic barely makes an appearance in the field of history, and many disputed points remain to be settled. My research cross-references sources and topics in order to gather data on the hygienic lives of nineteenth-century slaves. By analyzing archival documents from hospitals, notary public offices, and church bodies, iconographic sources, and the medical literature, I have retrieved information that can be used towards writing a history of the healthcare system available to slaves.

    slavery; history of diseases; history of medicine; history of Brazil; nineteenth century


    NOTA DE PESQUISA

    O sistema de saúde do escravo no Brasil do século XIX: doenças, instituições e práticas terapêuticas

    The healthcare system for slaves in nineteenth-century Brazil: disease, institutions, and treatment practices

    Ângela Pôrto

    Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz Av. Brasil, 4365 — 21040-900 Rio de Janeiro – RJ – Brasil aporto @coc.fiocruz.br

    RESUMO

    O século XIX é marcado por várias tentativas de coibir o tráfico de escravos e, ao mesmo tempo, é o período em que a importação foi a maior da história brasileira. As condições de transporte dos escravos, suas condições de trabalho, moradia e modo de vida são em grande parte responsáveis por suas condições de saúde. No entanto, essa questão só aparece pelas frestas da história e apresenta muitos pontos controversos a serem esclarecidos. O interesse da pesquisa é promover o cruzamento de fontes e temas, que reúnam uma variedade de informações sobre a vida higiênica dos escravos no século XIX. Nosso objetivo é reunir uma massa de dados, a partir da análise de documentos dos arquivos hospitalares, cartoriais e eclesiásticos, das fontes iconográficas e da literatura médica, que nos dêem elementos para compor uma história do sistema de saúde dos escravos.

    Palavras-chave: escravidão; história de doenças; história da medicina; história do Brasil; século XIX.

    ABSTRACT

    Although the nineteenth century saw numerous attempts to deter the slave trade, it was also the period when Brazil imported the greatest number of slaves in its history. The conditions under which slaves were transported, worked, and lived were largely responsible for their state of health. Yet this topic barely makes an appearance in the field of history, and many disputed points remain to be settled. My research cross-references sources and topics in order to gather data on the hygienic lives of nineteenth-century slaves. By analyzing archival documents from hospitals, notary public offices, and church bodies, iconographic sources, and the medical literature, I have retrieved information that can be used towards writing a history of the healthcare system available to slaves.

    Keywords: slavery; history of diseases; history of medicine; history of Brazil; nineteenth century.

    O tráfico de escravos africanos é um aspecto da história que marcou em profundidade nossa experiência. Esse comércio deslocou seres humanos de seus lugares de origem para viverem em cativeiro e sob condições absolutamente adversas. Como observou Luiz Felipe de Alencastro (2000, p. 127), o processo de expansão ultramarina, iniciado nos séculos XV e XVI, além de ampliar o trânsito de mercadorias e os contatos entre os povos, representou a "união microbiana do mundo", por incrementar o trânsito de doenças. O século XIX, período ao qual vamos nos ater, marca, no Brasil, a ocorrência da maior importação de escravos e de mudanças institucionais decisivas que levaram à abolição do tráfico e da escravidão. Foi também o momento da estruturação do ensino médico no Brasil, com a criação das Faculdades de Medicina de Salvador e do Rio de Janeiro, cidades cujos portos receberam, no período, o maior número de escravos. As condições de transporte dos escravos, suas condições de trabalho, moradia e modo de vida são em grande parte responsáveis por suas condições de saúde. No entanto, a questão da saúde do escravo só aparece pelas frestas da história e apresenta muitos pontos controversos a serem esclarecidos.

    Há muito que o mito do senhor benevolente, a partir de interpretações da obra de Gilberto Freyre (1933), caiu por terra. Outros mitos, no entanto, ainda persistem e confundem a compreensão da história da escravidão no Brasil, tais como ter havido uma negligência absoluta dos senhores para com a saúde dos seus cativos ou de os escravos terem sido totalmente dependentes, incapazes de agir sobre sua própria saúde. A partir dos anos 70, ocorre uma mudança de paradigmas na história social do Brasil, com o aparecimento de trabalhos, como o de Kátia Mattoso em Ser escravo no Brasil. A partir daí, o escravo é cada vez mais compreendido como capaz de construir redes de solidariedades, de possuir sistemas de valores próprios e capacidade de preservar e transmitir sua herança cultural. O sincretismo é a marca da cultura no Brasil, forjado por contribuições das mais diversas etnias e patente em várias manifestações. A contribuição da cultura africana também se faz presente em nossas práticas de saúde, mas tal presença não está ainda bem identificada e carece de estudo mais detalhado.

    O discurso médico do século XIX vê no negro escravo a causa de muitos males, sua presença no seio da família é corruptora, representando perigo físico e moral. Muito embora, para o pensamento médico higienista do Século XIX, não prevalecessem assertivas de origem racial, pesam mais os fatores sociais, os associados às condições de vida (Maio, 2004). Poucas foram as propostas oficiais de atenção à saúde dos escravos, e menos ainda as que foram acompanhadas por medidas que nem sequer eram cumpridas, como observou Mercês Somarriba, em estudo pioneiro sobre a medicina no escravismo colonial (Somarriba, 1984). Apenas três livros que trataram da questão foram publicados com o apoio do Estado, sendo, portanto, revestidos de caráter oficial. São eles os manuais de Jean-Baptiste Imbert (1834), Carlos Augusto Taunay (1839) e Antônio Caetano da Fonseca (1863), obras carregadas de conselhos higiênicos dirigidas aos proprietários rurais. Tratam de aspectos gerais da saúde dos cativos, que possam interessar aos senhores proprietários. Observam como escolher no mercado uma peça saudável, como deve ser a constituição física do escravo, suas condições de habitação, vestuário, alimentação, jornada de trabalho, repouso, castigos etc. A instrução religiosa é aconselhada como "higiene moral", necessária para a submissão do escravo, sua adaptação à sociedade e o bom andamento do trabalho. Esses manuais dirigidos aos fazendeiros trazem a relação das principais enfermidades que acometem os negros e o tratamento caseiro que pode ser facilmente administrado pelos senhores. Assemelham-se aos manuais médicos mais utilizados à época tais como o de Chernoviz (1841) e Langaard (1873).

    Não obstante o caráter oficial dessas obras, nenhuma delas sugere a criação de um serviço destinado ao tratamento médico de escravos. Assim, observa-se, na literatura coeva à escravidão, a inexistência de uma preocupação com a prática médica voltada para a força de trabalho escrava. Em "O Negro no pensamento médico", os autores de Danação da norma (Machado, 1976) concluem ser o escravo uma reflexão secundária para a medicina oficial. Fundamentam-se na constatação da insignificância do número de teses sobre o assunto nas academias. Na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, apenas três teses elegendo essa temática foram defendidas (Duarte, 1849; Jardim, 1847; Souza, 1851) e o tema está praticamente ausente nas publicações da Sociedade de Medicina, entre 1831 e 1890. A saúde do escravo não é diretamente tematizada, o assunto só surge em relação a outrem, como por exemplo a saúde da escrava ama-de-leite que exerce a chamada "amamentação mercenária" com a criança do senhor, e o perigo que o escravo representa para a saúde no meio doméstico ou para toda a sociedade, como responsável pela transmissão de diversas moléstias.

    Sem tirar o mérito desses trabalhos é necessário retomar a questão. Esses estudos imprimiram, de uma certa forma, a idéia geral de que o escravo — mal alimentado, mal vestido e maltratado — tanto no campo como na cidade, era explorado ao máximo de suas forças, obrigado a cumprir uma longa jornada de trabalho. Os proprietários só se tornavam mais cuidadosos com seus escravos quando suas reservas diminuíam por efeito de uma epidemia, e freqüentemente os sintomas de doenças eram desprezados como "fingimento" para faltar ao trabalho. Os maus tratos dos senhores encontravam limites mais no medo de perder o escravo pela morte ou pela fuga, e no respeito à opinião pública, que nas leis que o protegiam, pois estas raramente se cumpriam. Normalmente praticava-se o que parecia dar bons resultados para prolongar a vida dos escravos para o trabalho.

    Estudos recentes acrescentam novas idéias à análise da questão da saúde do escravo. O tratamento dispensado ao cativo pode variar de acordo com sua situação: nas fazendas pequenas ou nas pertencentes ao clero (Assunção, 2002), por exemplo, podem ser mais bem tratados que nas grandes fazendas monocultoras (Stein, 1961 e 1990; Falci, 2004). Tudo pode depender, portanto, das relações estabelecidas com seu dono. O escravo urbano é com freqüência mais independente diante de seu senhor que o rural; goza de maior liberdade de ação e conta com os laços de solidariedade de outros escravos ou de forros que abundam nas cidades, organizados em confrarias e irmandades (Carvalho Soares, 2000; Mattoso, 1982; Algranti, 1988; Chalhoub, 1996; Dias, 1985). Também podemos observar a partir da leitura de memórias e relatos de viajantes estrangeiros (Binzer, 1998; Marques, 1922; Werneck, 1986) que os senhores, isolados nas fazendas, lançavam mão freqüentemente dos recursos locais para os casos mais graves de doença. Curandeiros, quimbandeiros, feiticeiros eram chamados na ausência dos médicos itinerantes, que só percorriam de tempos em tempos as fazendas. A ausência dos médicos, no entanto, não parece ser determinante no recurso que se fazia aos curandeiros, feiticeiros ou rezadores. A concepção de que a origem das doenças tinha uma natureza sobre-humana explica melhor tal atitude e justifica também o uso de amuletos para se proteger não apenas de doenças, mas de toda sorte de infortúnios (Soares, 2001, p. 407-38).

    Apesar do investimento representado por cada escravo, nem todos os proprietários cuidaram adequadamente da escravaria. Essa é uma questão que merece atenção: a contradição de se cuidar de uma 'coisa' que não é 'sujeito', pois o escravo é visto como mercadoria. Mas mercadoria tem valor. A partir da segunda metade do século XIX, com o maior controle sobre o tráfico de escravos, nota-se uma preocupação mais consistente dos senhores com a preservação da mão-de-obra escrava, já que a oferta se tornara mais escassa, mas não sua demanda, o que provoca a valorização do preço das 'peças'. Os proprietários procuram então dar melhor tratamento aos escravos, sem lhes reduzir a jornada de trabalho, numa tentativa de prolongar-lhes a vida útil. Essa é, no entanto, uma questão relativa que pode variar de acordo com a região, pois, apesar de constituir-se como mercadoria investida de valor, nem sempre a situação do escravo era percebida como tal. Apesar de a saúde dos escravos ser precondição na fixação do seu valor, soluções baratas adotadas pelos proprietários de escravos, no fornecimento de moradia, alimentos, roupas ou remédios, fizeram proliferar doenças entre eles. As mais comuns eram as doenças decorrentes dos maus-tratos físicos ou do trabalho fatigante. Como a alta incidência de doenças pulmonares demonstrada por Mary Karasch (2000), com base na estatística da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro.

    Mas as doenças dos escravos e as doenças dadas como de origem africana são um tema que deve ser retomado. Não podemos afirmar, como o fizeram os historiadores da medicina do passado, que determinadas doenças foram introduzidas pelos negros africanos, ou mesmo que eram exclusivas deles. Quanto às doenças adquiridas pelos negros aos brancos, sobretudo os escravos domésticos, situação apontada por Freyre em Casa grande e senzala (1933), a preocupação de médicos e historiadores parece ter sido menor. Algumas análises como as de Rodrigues (2004 e 1935) e Freitas (1935) têm uma visão determinista biológica, e refletem, portanto, a concepção da influência racial das doenças, e outros como Santos Filho (1991) e Parahym (1978) contribuíram para reforçar estereótipos sobre a população negra, na medida em que não retomam à luz de novos conhecimentos essa questão e reafirmam a existência de doenças de origem africana, sem ressalvas. Xavier Sigaud (1844) creditou aos negros a prevalência de patologias específicas, mas não como resultado de sua composição racial, e sim da influência exercida pelo clima (Ferreira, 1996).

    Estudos recentes de paleopatologia têm esclarecido um pouco mais essa questão, mostrando que o achado de parasitas ou de lesões em fósseis indicam a presença de algumas dessas doenças antes da chegada do homem branco à América. Portanto, a ausência de uma doença não significa que ela não possa ocorrer, tudo pode depender das condições propícias para seu aparecimento, como por exemplo, contatos recentes entre populações provocando mudanças no modo de vida, alimentação etc. (McNeil, 1989). Sobre a questão da saúde e da doença do escravo no Brasil (Silva, 2004), resultados preliminares começam a surgir nos estudos desenvolvidos em paleopatologia por Luiz Fernando Ferreira, Sheila Mendonça e Diana Maul, que dão nova feição à questão da origem das doenças. Quanto às investigações recentes em demografia histórica que nos fornecem novos dados sobre a população de ascendência africana, vejam-se os estudos de Manolo Florentino e Roberto Góes e as pesquisas sobre a história da família escrava no Brasil desenvolvidos por Robert Slenes e Sheila Faria. O crescente intercâmbio entre disciplinas nos permite hoje um melhor entendimento da questão da escravidão e do papel do negro na sociedade brasileira.

    Finalmente, não podemos nos esquecer do importante papel desempenhado pelos negros em relação a seu próprio tratamento médico. Esse campo de estudo se alargou nos últimos anos e revela farta documentação para a elaboração de uma análise mais aprofundada sobre a medicina entre os escravos (Chalhoub, 2003; Figueiredo, 2002; Pimenta, 1998 e 2003; Sampaio, 2000 e 2001; Witter, 2001). A medicina africana em diversas situações mostrou-se mais eficaz aos olhos da população negra da Corte e, embora os considerassem charlatães, muitos brancos também arriscavam usar os serviços oferecidos pelos negros. O convívio próximo no cotidiano da cidade facilitou muito o intercâmbio cultural entre senhores e escravos (Soares, 2001). As lojas de barbeiro abundam nas cidades e, em geral, seus proprietários são negros ou mulatos, hábeis cirurgiões na arte de sangrar e aplicar sanguessugas. Também a presença de sangradores e curandeiros nos quadros da Santa Casa de Misericórdia já foi atestada (Pimenta, 2003) e não se limitava apenas à aplicação de sanguessugas ou à sangria: "O sangrador, de certa forma, ilustra a permeabilidade entre dois pólos de medicina – a acadêmica e a popular". A prática médica no Brasil resulta de trocas e apropriações de experiências entre europeus, índios e africanos. Esse amálgama de saberes enriquece, desde os tempos da Colônia, o receituário de mezinhas domésticas que constitui prática bastante comum no Brasil no século XIX, tanto na zona rural como nas cidades.

    Os estrangeiros que por aqui estiveram constataram a estreita relação entre as condições de vida e trabalho dos escravos e as doenças que mais comumente os acometiam. É na crônica de viajantes que encontramos observações associando a grande incidência de moléstias e disfunções à má alimentação e aos maus-tratos. Sendo, portanto, importante fonte para se traçar a história doenças dos escravos. Podemos também apreciar nos relatos dos viajantes observações espantadas quanto ao uso e o efeito de ervas e feitiços, pelos negros, no tratamento de enfermidades. "Os negros servem-se, em geral, de remédios baseados nas crendices que trouxeram da pátria, atravessando o mar, e que conservam zelosamente", escreve o médico Johann Emmanuel Pohl, em 1818. As relações dos escravos com a saúde estão associadas a outra lógica de explicação da doença. Um estudo mais amplo do legado do negro à prática médica ainda está por fazer.

    A questão da saúde e da doença do escravo tem sido analisada apenas indiretamente nos trabalhos acadêmicos sobre a escravidão em geral. Neste aspecto, a historiografia nacional carece de estudos específicos, se comparada à produção internacional (Ver Curtin, 1968; Fett, 2002; Kiple, 1984 e 1988 e Kiple & King, 1981; Mcbride, 2005; Morais, 1967; Numbers & Savitt, 1989; Savitt, 1978 e 2005; Sheridan, 1985). As obras analisam a história da saúde e das doenças dos escravos em perspectiva abrangente. Abordam temas tais como a relação entre medicina e escravidão e a história biológica da raça negra.

    A ausência de estudos mais alentados sobre a saúde do escravo na historiografia brasileira talvez seja decorrência da desatenção que a questão da assistência médica à força de trabalho escrava teve ao longo do período da escravidão, como apontamos no início deste ensaio. Com exceção do estudo de Mary Karasch (2000, 1. ed. 1987) que dedicou um largo espaço à questão, e mais recentemente o de Jaime Rodrigues (2005), os tratados sobre a escravidão no Brasil passam ao largo dessa questão. Mas da sólida documentação sobre a escravidão que podemos encontrar nos arquivos brasileiros, associada à atual multiplicidade de trabalhos acadêmicos sobre o tema da saúde e da doença – consubstanciados em uma série de publicações sobre a história da medicina e as artes de curar no Brasil –, do cruzamento das fontes e dos temas, podemos traçar a história da vida higiênica dos escravos no Brasil do século XIX. Este é o objetivo do projeto ora iniciado na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz: "O sistema de saúde do escravo no Brasil do século XIX: instituições e práticas terapêuticas".

    Recebido para publicação em julho de 2006.

    Aprovado para publicação em outubro de 2006.

    • Alencastro, Luiz Felipe 2000 O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XV e XVI. de São Paulo: Companhia das Letras.

    • Algranti, Leila Mezan 1988 O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Vozes.

    • Araújo, Achilles Ribeiro de 1982 Assistência médica hospitalar no Rio de Janeiro no século XIX Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura/MEC.

    • Assunção, Paulo de 2002 A escravidão nas propriedades jesuíticas: entre a caridade cristã e a violência. Acervo Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, v. 15, n. 1.

    • Binzer, Ina von 1998 Aos meus romanos Rio de Janeiro: Paz e Terra.

    • Chalhoub, Sidney 1996 Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras.

    • Chernoviz, P. L. N. 1890 Dicionário de medicina popular Paris: s.n. (A primeira edição é de 1842.)

    • Debret, Jean Baptiste 1954 Viagem pitoresca e histórica ao Brasil São Paulo: Martins.

    • Dias, Maria Odila da Silva 1985 Nas fímbrias da escravidão urbana: negras de tabuleiro e de ganho. Estudos Econômicos São Paulo: IPE, v. 15, número especial, p. 89-109.

    • Duarte, José Rodrigues de Lima 1849 Ensaio sobre a higiene da escravatura no Brasil Rio de Janeiro: Typ. Universal de Laemmert (Tese Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro).

    • Falci, Miridan Britto 2004 História e cultura médica: uma abordagem para o estudo de escravos. In: Santos, Cláudia A. dos et. al. (org.) Espacialidades: espaço e cultura na história. Vassouras: Universidade Severino Sombra.

    • Ferreira, Luiz Otávio 1996 O nascimento de uma instituição científica: o periódico médico brasileiro da primeira metade do século XIX. Tese de doutorado. Dep. de História, FFLCH/USP, São Paulo.

    • Figueiredo, Betânia Gonçalves 2002 A arte de curar: cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século XIX em Minas Gerais Rio de Janeiro: Vício de Leitura.

    • Fonseca, Antônio Caetano da 1863 Manual do agricultor dos gêneros alimentícios ou método da cultura mixta destes gêneros nas terras causadas pelo sistema vegeto-animal; modo de criar e tratar o gado, e um pequeno tratado de medicina doméstica para fazendeiros. Rio de Janeiro: Ed. Eduardo & Henrique Laemmert.

    • Freitas, Octavio de 1935 Doenças africanas no Brasil São Paulo: Cia Ed. Nacional.

    • Freyre, Gilberto 1933 Casa grande & senzala Rio de Janeiro: Maia & Schmidt Ltda.

    • Imbert, J. B. A. 1834 Manual do fazendeiro ou tratado doméstico sobre as enfermidades dos negros. Rio de Janeiro: Typ. Nacional e Const. De Seignot-Plancher e Cia.

    • Jardim, David Gomes 1847 A higiene dos escravos Rio de Janeiro, Tese Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

    • Karasch, Mary 2000 A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850) São Paulo: Companhia das Letras.

    • Kiple, Kenneth F. 1988 The African exchange: toward a biological history of black people. Durham: Duke University Press.

    • Kiple, Kenneth F. 1984 The Caribbean slave: a biological history. Cambridge: Cambridge University Press.

    • Kiple, Kenneth F. & King, Virginia Himmelsteib 1981 Another dimension to the black diaspora: diet, disease, and racism. Cambridge: Cambridge University Press.

    • Langgard, T. J. H. 1873 Dicionário de medicina doméstica e popular Rio de Janeiro: s.n.

    • Machado Roberto et al. 1976 Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal. Parte II, cap. 2.

    • Maio, Marcos Chor 2004 Raça, doença e saúde pública no Brasil: um debate sobre o pensamento higienista do século XIX. In: Monteiro, Simone (org.) Etnicidade na América Latina: um debate sobre raça, saúde e direitos reprodutivos. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz. p. 15-45.

    • Marques, Xavier 1922 O feiticeiro Rio de Janeiro: Liv. Leste Ribeiro.

    • Mattoso, Kátia M. . de Queirós 1982 Ser escravo no Brasil São Paulo: Brasiliense.

    • Montero, Paula 1983 Da doença à desordem: as práticas mágico-terapêuticas na umbanda. São Paulo: Edusp.

    • Parahym, Orlando 1978 Doenças dos escravos em Pemambuco Recife: Caxangá.

    • Pimenta, T. S. 2003 Terapeutas populares e instituições médicas na primeira metade do século XIX. In: Chalhoub, Sidney et al. (org.). Artes e ofícios de curar no Brasil Campinas: Ed. Campinas. p. 307-30.

    • Pimenta, T. S. 1998 Barbeiros-sangradores e curandeiros no Brasil (1808-1828). História, Ciências, Saúde Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2.

    • Pôrto, Ângela 1988 A assistência médica aos escravos no Rio de Janeiro: o tratamento homeopático. Rio de Janeiro; Fundação Casa de Rui Barbosa (Papéis Avulsos, 7).

    • Rodrigues, Nina 2004 Os africanos no Brasil Brasília: Ed. UnB.

    • Rodrigues, Nina 1935 O animismo fetichista dos negros baianos Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

    • Sampaio, Gabriela dos Reis 2001 Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Campinas: Ed. Unicamp, Cecult, IFCH.

    • Sampaio, Gabriela dos Reis 2000 A história do feiticeiro Juca Rosa: cultura e relações sociais no Rio de Janeiro imperial. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas, Unicamp. São Paulo.

    • Santos Filho, Licurgo de Castro 1991 História geral da medicina brasileira São Paulo: Hucitec.

    • Sigaud, J. F. Xavier 1844 Du climats et des maladies au Brèsil Paris: Fortin et Masson Libraires.

    • Silva, Andersen Líryo, Carvalho, Diana Maul e Souza, Sheila Mendonça de 2004 Saúde dentária dos escravos em Salvador, Bahia. In: Nascimento, Dilene Raimundo; Carvalho, Diana Maul (org.) Uma história brasileira das doenças Brasília: Paralelo 15. p. 266-76.

    • Soares, Márcio de Sousa 2001 Médicos e mezinheiros na corte imperial: uma herança colonial. História, Ciências, Saúde Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 2.

    • Soares, Mariza de Carvalho 2000 Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro (século XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

    • Somarriba, Maria das Mercês O. 1984 Medicina no escravismo colonial. Textos de Sociologia e Antropologia,n. 1. Belo Horizonte: Departamento de Sociologia da Fafich/UFMG.

    • Souza, Antônio José de 1851 Do regimen das classes pobres e dos escravos na cidade do Rio de Janeiro em seus alimentos e bebidas: qual a influência sobre a saúde. Rio de Janeiro: Typ. J. Villeneuve.

    • Stein, Stanley J. 1990 Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1890. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

    • Stein, Stanley J. 1961 [1851] Grandeza e decadência do café no Vale do Paraíba; com referência especial ao município de Vassouras Trad. Edgard Magalhães. São Paulo: Brasiliense, cap. VII.

    • Taunay, Carlos Augusto 1839 Manual do agricultor brasileiro, obra indispensável a todo senhor de engenho Rio de Janeiro: Typ. J. Villeneuve & Comp., 2. ed.

    • Warren Jr., Donald. 1986 A medicina espiritualizada: a homeopatia no Brasil no século XIX. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, p. 88-107.

    • Werneck, Francisco Peixoto de Lacerda (Barão do Paty do Alferes) 1986 Memória sobre a fundação de uma fazenda na província do Rio de Janeiro Ed. Eduardo Silva. Brasília: Senado Federal; Rio de Janeiro: FCRB.

    • Witter, Nikelen Acosta 2001 Dizem que foi feitiço: as práticas da cura no sul do Brasil (1845-1880). Porto Alegre: Ed. PUCRS.

    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006

    Histórico

    • Recebido
      Jul 2006
    • Aceito
      Out 2006

    Quais doenças afetam o povo brasileiro no início do século passado?

    Quais eram as doenças que mais acometem a população brasileira no passado?

    A seguir, apresentamos três das principais epidemias que atingiram o Brasil ao longo da história..
    Febre amarela (a partir de 1850).
    Gripe espanhola (1918).
    Varíola (início do século 20).

    Como as doenças eram tratadas antigamente século XVI e XVII?

    Até então, os tratamentos eram quase sessões de exorcismo”, diz ele. De fato, os médicos jogavam baforadas de fumaça, produzida pela queima de tabaco, para expulsar a peste de seus pacientes. E, se o doente morria, os coveiros fumavam cachimbo, na hora de enterrar o corpo.

    Quais foram as principais doenças que existiam na Idade Média?

    A peste bubônica, a varíola e o tifo exantemático apareceram em várias regiões, da Síria ao Ocidente, do Império Oriental à África do Norte. Também ocorreram surtos graves de difteria, malária, febre tifóide, disenteria, influenza e tuberculose.

    Como ocorreram as primeiras epidemias no Brasil?

    O histórico de epidemias do Brasil surge com a vinda dos portugueses, tendo como a primeira epidemia relatada a varíola em 1563, afetando principalmente os indígenas por nunca terem tido contato com a doença e usarem pertences pessoais e roupas dos europeus contaminados.