Quanto à regra de deliberação na AGC assembleia geral de credores está correto exceto escolha uma opção?

Artigo integrante do livro “Direito Processual Empresarial: estudos em homenagem a Manoel de Queiroz Pereira Calças”

Marcelo Gazzi Taddei

 1.      A opção legal pela Assembléia Geral de Credores na recuperação judicial

 A Assembleia Geral de Credores (AGC) constitui um dos pontos de maior relevância na recuperação judicial.  De acordo com os arts. 35 a 46 da Lei n° 11.101/2005, o êxito buscado pela sociedade empresária e pelo empresário individual em crise na recuperação judicial depende da vontade dos credores reunidos na AGC, a quem compete a análise do plano recuperatório para definir sua aprovação, modificação ou rejeição. Existindo a apresentação de objeções ao plano, é a Assembleia Geral de Credores que determinará as chances de recuperação do devedor em crise, ressaltando-se que nessa fase da recuperação judicial verifica-se relativa redução dos poderes do juiz.

Diante do poder conferido aos credores pela lei, buscou-se a dispersão dos votos por meio da divisão dos credores em classes e a previsão de um quorum específico para a aprovação do plano, além da possibilidade de o juiz conceder a recuperação judicial mesmo diante da ausência de aprovação do plano, desde que preenchidos os requisitos previstos no art. 58, §1°, da Lei n° 11.101/2005, hipótese conhecida como cram down que restabelece ao juiz o poder que lhe foi atenuado. O sistema utilizado pelo legislador para o voto dos credores na AGC, consistente na divisão das classes de credores, mediante a utilização do sistema da dupla maioria para os credores com garantia real, quirografários, privilégio especial, privilégio geral e subordinados e do voto por cabeça em relação aos credores trabalhistas e por acidentes de trabalho para a análise do plano de recuperação, teve por objetivo a dispersão de votos de forma a coibir a interferência de credores mais fortes sobre os demais. O legislador busca, por meio do sistema utilizado, estimular a participação dos credores na AGC, principalmente os credores detentores de créditos de valores menores.

Verifica-se pela importância atribuída à Assembleia Geral de Credores e pelo sistema de votos adotado, que o legislador valorizou a participação dos credores acreditando que o interesse coletivo pelo reerguimento prevaleceria sobre os interesses individuais, na expectativa de que os credores fossem os melhores juízes dos seus próprios interesses. O objetivo almejado era o voto livre de abusos e de interesses exclusivamente pessoais, de forma que o credor comparecesse na AGC para deliberar sobre o plano de recuperação judicial de acordo com os princípios orientadores da recuperação judicial expressos no art. 47 da lei. Entretanto, não se pode negar que embora os credores desejam a plena recuperação do devedor em crise, cada credor prefere atribuir aos demais a conta da recuperação, buscando afastar ao máximo o seu prejuízo.

Entretanto, os objetivos previstos pelo legislador muitas vezes deixam de ser concretizados. A necessidade da existência legal da Assembleia Geral de Credores na recuperação judicial pode ser contestada em razão de vários fatores, dentre os quais se destacam: a) as dificuldades práticas de reunir grande número de credores, principalmente quando domiciliados fora da comarca da recuperação judicial; b) a indiferença da maioria dos credores;  c) as dificuldades dos credores na identificação dos pontos de interesse em razão da complexidade do processo de recuperação judicial; d) a tendência de autotutela dos credores, que buscam atender aos próprios interesses em detrimento do interesse coletivo; e) as despesas de convocação, instalação e realização da AGC; f) as despesas e ônus impostos aos credores para participarem da AGC; g) a possibilidade sempre presente da influência dos credores mais fortes sobre os mais fracos; h) a possibilidade de manipulação de votos por meio da cessão de créditos.

As reiteradas críticas à Assembleia Geral de Credores repercutiram nas legislações de outros países, enfraquecendo a sua importância. No Brasil, a Lei n° 11.101/205 conferiu amplos poderes à Assembleia Geral de Credores, inversamente do que se verificava no âmbito do Dec-Lei n° 7.661/1945, em que a AGC embora apresentasse previsão legal (arts. 122 e 123), raramente se verificava em razão do acentuado desinteresse dos credores em sua formação. A importância atribuída pela Lei n° 11.101/2005 à Assembleia Geral dos Credores atende aos princípios que nortearam a sua aprovação no Senado Federal, constituindo um órgão da recuperação judicial que exige especial atenção dos juristas pelos inúmeros aspectos de interesse, que passam a ser tratados na sequência.

 2. O procedimento da Assembleia Geral de Credores na recuperação judicial

 O regime de recuperação judicial caracteriza-se pela natureza processual, sendo a ação de recuperação uma demanda constitutiva, já que cria uma situação jurídica nova ao devedor e aos credores abrangidos pela recuperação judicial. O processo recuperatório não se resume a um processo de execução, em que os credores buscam, por meio do Poder Judiciário, a satisfação dos seus créditos, existem interesses maiores e mais complexos relacionados à preservação da empresa e a sua função social. Nesse contexto, a Assembleia Geral de Credores encontra-se disciplinada de forma específica na Seção IV, Capítulo II – Disposições Comuns à Recuperação Judicial e à Falência, nos arts. 35 a 46, da Lei n° 11.101/2005, constituindo um órgão colegiado deliberativo do processo de recuperação judicial que apresenta existência facultativa, podendo ou não existir.

Normalmente a Assembleia Geral de Credores existirá no processo de recuperação judicial. O art. 56 da lei de regência prevê que havendo objeção de qualquer credor ao plano o juiz convocará a AGC para analisá-lo. Por outro lado, verifica-se pelo disposto nos arts. 57 e 58 da Lei n° 11.101/2005 a possibilidade da concessão da recuperação judicial sem a realização da Assembleia Geral de Credores, desde que o plano não tenha sofrido objeção de credor, podendo, nesse caso, o processo de recuperação judicial existir sem a convocação da AGC. Na criticada recuperação judicial especial prevista para a microempresa e para a empresa de pequeno porte, não há previsão de convocação da AGC para a análise do plano, conforme se verifica no art. 72 da Lei n° 11.101/2005.

As atribuições da Assembleia Geral de Credores na recuperação judicial estão previstas no art. 35, I, da Lei n° 11.101/2005, abrangendo: a) aprovação, rejeição ou modificação do plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor; b) a constituição do Comitê de Credores, a escolha de seus membros e sua substituição; c) o pedido de desistência do devedor, nos termos do art. 52, §4°; d) o nome do gestor judicial, na hipótese de destituição dos administradores do devedor nos termos do art. 64 ; e) qualquer outra matéria que possa afetar os interesses dos credores. O projeto de lei previa  (art. 35, I, “c”) a possibilidade da AGC determinar a substituição do administrador judicial e indicar substituto para a função, sendo referida deliberação afastada por meio de veto presidencial, cabendo exclusivamente ao juiz o poder de determinar o afastamento do administrador judicial. Dentre as hipóteses previstas, na maioria das vezes a AGC é convocada para a análise do plano de recuperação judicial.

Compete ao juiz do processo de recuperação judicial a convocação da Assembleia Geral de Credores nos casos previstos em lei: a) análise do plano de recuperação judicial (art. 56, caput); b) a pedido do administrador judicial (art. 22, I, g); c) a pedido dos credores que representem no mínimo 25% do valor total dos créditos de uma determinada classe (art. 35, §2º); d) a pedido do Comitê de Credores (art. 27, I, g). Considerando os poderes conferidos ao juiz na condução processual, sempre que entender necessário, de ofício ou diante de fatos apresentados pelos interessados e pelo próprio representante do Ministério Público, o juiz deve convocar a Assembleia Geral de Credores em razão da importância e da gravidade do motivo.

Nos termos do art. 36, §3°, da Lei n° 11.101/2005, as despesas com a convocação e a realização da AGC correm por conta do devedor, salvo se convocada em virtude de requerimento do Comitê de Credores ou na hipótese de convocação a pedido dos credores. A convocação deve ser realizada por edital publicado no órgão oficial e em jornais de grande circulação nas localidades da sede e das filiais da recuperanda, com antecedência mínima de 15 dias da data da sua realização (prazo de direito material), indicando: a) ordem do dia, local, data e hora da assembléia em primeira e segunda convocação, devendo existir o intervalo mínimo de 5 dias entre elas; b) local em que os interessados poderão obter a cópia do plano a ser votado, se for o caso. O edital deve ser afixado de forma ostensiva na sede e nas filiais da recuperanda, não existindo impedimentos para a realização da Assembleia Geral de Credores em dias não úteis, como domingos ou feriados.

De acordo com as normas previstas, a Lei n° 11.101/2005 não prevê a intimação pessoal de qualquer  credor para participar da Assembleia Geral, a convocação é regular desde que atendidas as formalidades previstas no art. 36. Nesse sentido, ressalta-se o seguinte trecho do acórdão referente ao Agravo de Instrumento 99010098904-9, relatado pelo eminente Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças:

 

“Ademais, a Lei n° 11.101/2005 não prevê intimação pessoal de qualquer credor para a participação na assembleia-geral de credores. O art. 36 da LRF estabelece que a assembleia-geral de credores será convocada pelo juiz por edital publicado no órgão oficial e em jornais de grande circulação nas localidades da sede e filiais, com antecedência mínima de 15 dias. Em suma: nenhum credor, nem mesmo a União Federal tem o direito de

exigir intimação pessoal para a assembleia-geral a ser realizada em processo de recuperação judicial. Ressalte-se que o art. 52, inciso V, da Lei n° 11.101/2005, determina que o juiz, ao deferir o processamento da recuperação judicial, determinará a comunicação por carta às Fazendas Públicas Federal e de todos os Estados e Municípios em que o devedor tiver estabelecimento, inexistindo, como se vê, previsão da intimação pessoal disciplinada no art. 38 da LC 73/93 e art. 6° da Lei n° 9.028/95.”

(TJSP. AgI 99010098904-9. Câm. Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 19.10.2010)

 

Cabe ao administrador judicial, nos termos do art. 37 da Lei n° 11.101/2005, presidir a Assembleia Geral de Credores, sendo o responsável pela adoção das medidas necessárias para a sua realização, que abrangem a definição e preparação do local, lista de presença dos credores, levantamento de todos os credores que manifestaram o desejo de participar do conclave, assim como de seus respectivos créditos e classificação, a fim de estabelecer o percentual correspondente em cada uma das classes de credores para efeito de quorum e da aferição de votos para as votações a serem realizadas, além de outras medidas necessárias para permitir o regular desenvolvimento da Assembleia Geral de Credores de acordo com as exigências legais.

Os credores que não cumprirem essas exigências de ordem legal não terão o direito de participar e votar na Assembleia Geral de Credores, mostrando-se prudente a vedação do acesso desses credores ao recinto onde será desenvolvida a Assembleia para evitar tumultos desnecessários, requisitando-se, se necessário, força policial para evitar problemas. Em relação ao desenvolvimento, em alguns casos a AGC é filmada e gravada para assegurar-lhe ampla transparência e afastar questionamentos, devendo ocorrer a entrega do material de áudio e vídeo ao juiz, juntamente com a ata da Assembleia e a lista de presença dos credores.

O quorum de instalação em primeira convocação da Assembleia é de credores titulares de mais da metade dos créditos de cada classe, computados pelo valor, e em segunda convocação com qualquer número (art. 37, §2°). De acordo com os arts. 43 e 39, §1°, não são considerados para fins de verificação do quorum de instalação os credores elencados no art. 43 e no art. 49, §§ 3° e 4°. A Lei n° 11.101/2005 não estabelece a mesma restrição aos credores excluídos do direito de voto previstos no art. 10, §1° (retardatários) e 45, §3° (não sujeitos ao plano, para votarem no plano), que embora não tenham direito de voto, são considerados para a definição do quorum de instalação da Assembleia.

O desenvolvimento da Assembleia Geral de Credores ocorre de acordo com as formalidades legais, que compreendem: a)  a assinatura pelos credores da lista de presença; b) composição da mesa; c) leitura do edital de convocação; d) debates e votação dos pontos indicados no edital; e) lavratura da ata e assinatura de acordo com as exigências legais; f) encerramento da AGC; g) encaminhamento da ata e da lista de presença ao juiz.

 A primeira formalidade a ser atendida antes da abertura dos trabalhos é a assinatura pelos credores da lista de presença, na medida em que chegam ao local e exibem os documentos necessários à sua legitimação, devendo a assinatura ser encerrada no exato momento em que for dado início aos trabalhos, não sendo permitido o ingresso retardatário de nenhum credor para que seja preservada a base de cálculo e o resultado das votações não sofra alteração.

A mesa da AGC é integrada pelo presidente e pelo secretário. O administrador judicial, salvo no caso de incompatibilidade (art. 37, §1°), será o presidente. Na sua ausência, o presidente será o credor presente titular do crédito de maior valor, nada impedindo que outro credor assuma se este declinar ou não se sentir preparado para a função. Cabe ao presidente a indicação do secretário, que será um dos credores presentes. Após a constituição da mesa é feita a leitura do edital de convocação, que contém a ordem do dia, seguindo-se a apreciação de cada ponto da pauta, mediante a realização dos debates, momento em que os credores podem exercer o direito de voz. Nessa fase é comum a realização de esclarecimentos pelos administradores da Recuperanda, profissionais que auxiliam o administrador judicial e pelo próprio administrador judicial. Concluídos os debates, segue a votação dos pontos na forma prevista pelo administrador judicial.

Encerrada a fase de votação e apresentados os resultados dos pontos votados, ocorre a lavratura da ata e respectiva leitura para a aprovação dos presentes, encerrando-se a Assembleia Geral de Credores.  Nos termos do art. 37, §7°, da Lei n° 11.101/2005, a ata deve descrever o ocorrido na AGC, o nome dos presentes e as assinaturas do presidente, do devedor e de dois membros de cada uma das classes votantes, devendo ser entregue ao juiz, juntamente com a lista de presença, no prazo de 48 horas da realização da AGC.  

O juiz e o representante do Ministério Público possuem a prerrogativa de comparecer e assistir aos trabalhos da Assembleia Geral de Credores, sem, entretanto, interferir ou influenciar nos debates e na votação. A recuperanda e os seus administradores, se convidados pelos credores ou convocados pelo juiz, devem estar presentes para prestar esclarecimentos, mostrando-se imprescindível a presença do devedor na AGC que deliberar sobre o plano, já que para a modificação do plano recuperatório é indispensável a concordância do devedor.

As formalidades legais para a convocação, instalação e desenvolvimento da Assembleia Geral de Credores devem ser observadas em razão das consequências decorrentes dos vícios da Assembleia no processo de recuperação judicial. É certo que o descumprimento de qualquer formalidade legal acarreta a invalidação da Assembleia, entretanto, o vício será nulo ou anulável? Embora a Lei n° 11.101/2005 estabeleça de forma pormenorizada as formalidades, nada prevê sobre as consequências decorrentes do seu descumprimento. Erasmo Valladão França, em excelente artigo sobre o tema, ressalta o problema:

 

“A assembléia é convocada, por exemplo, com prazo inferior ao da Lei n° 11.101 (art. 36). Qual o vício que a afetará: nulidade ou anulabilidade? Veja-se, aí, novamente a imprevidência e insensibilidade do legislador falimentar. O Código Civil, lei supletiva, não contém, inexplicavelmente, uma regra como a do artigo 186 da Lei de S/A, que prevê, às expressas, para a hipótese de convocação ou instalação irregular, a anulabilidade. E o artigo 166, V, do Código Civil, diz ser nulo o negócio jurídico, quando ‘for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade’. Talvez se possa argumentar que a solenidade se deu, embora de forma irregular, e que, tal como no regime das deliberações, a violação da lei não acarreta a nulidade, mas somente a anulabilidade, como o está a demonstrar o artigo 286 da Lei de S/A. Pois, do contrário, sendo certo que nulidade não convalesce (art. 169 do Código Civil), corre-se o risco de a recuperação judicial ou a falência serem encerradas por sentença (arts. 63  156 da Lei n° 11.101) e, anos após, instaurar-se uma pendência sobre a convocação ou instalação de uma assembléia de credores…”

 

As deliberações da Assembleia Geral de Credores, nos termos do art. 39, §2°, da Lei n° 11.101/2005, serão válidas e produzirão os efeitos previstos ainda que exista decisão judicial posterior declarando a inexistência de crédito, a alteração de seu valor ou de sua classificação. De acordo com o critério legal adotado, as deliberações serão tomadas e validadas considerando a situação dos credores e respectivos créditos no dia da realização da Assembleia, de forma que qualquer alteração futura referente à existência, valor e classificação dos créditos, não afetará os resultados obtidos no conclave.

O critério legal adotado objetiva, ao que tudo indica, atribuir celeridade ao processo de recuperação judicial, evitando a ocorrência de anulações das decisões assembleares que conduziriam a realização de sucessivas Assembleias em razão de futuras alterações nos créditos dos credores que participaram das votações. A possibilidade de alteração nos créditos, quanto à existência, valor e classificação, decorre do procedimento legal previsto para as impugnações de crédito (arts. 8, 11 a 18, da Lei n° 11.101/205) e da hipótese de alteração do quadro geral de credores prevista no art. 19, caput,  da Lei n° 11.101/2005:

 

“Art. 19. O administrador judicial, o Comitê, qualquer credor ou o representante do Ministério Público poderá, até o encerramento da recuperação judicial ou da falência, observado, no que couber, o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil, pedir a exclusão, outra classificação ou a retificação de qualquer crédito, nos casos de descoberta de falsidade, dolo, simulação, fraude, erro essencial ou, ainda, documentos ignorados na época do julgamento do crédito ou da inclusão no quadro-geral de credores”.

 

Diante da possibilidade de alteração do quadro geral de credores até o encerramento do processo de recuperação judicial, o legislador buscou atribuir efetividade e segurança às decisões assembleares, entretanto, o critério legal adotado exige atenção. A celeridade processual buscada por meio da validade assegurada às deliberações da Assembleia Geral de Credores na forma prevista no art. 39, §2° motivou críticas doutrinárias, ao comentar referido dispositivo legal, Manoel Justino Bezerra Filho ressalta:

 

“A Lei, de forma condenável, ao invés de solucionar esta questão, preferiu estabelecer uma fórmula que, se aplicada, convalidará qualquer fraude.

Evidentemente, à luz dos princípios gerais de direito, principalmente ante o princípio da boa-fé, a este artigo será dada a correta aplicação pela jurisprudência, pois nem a própria lei positiva tem poderes para convalidar o ato fraudulento e prejudicial à comunidade dos credores”.

 

Ao se referir ao art. 39, §2°, Fábio Ulhoa Coelho conclui que:

 

“Essa determinação da lei visa conferir segurança às deliberações assembleares. Se tais decisões pudessem interferir no resultado de assembléias passadas, o processo de recuperação judicial estaria exposto a significativos entraves. Claro está, por outro lado, que nada impede seja revista qualquer deliberação da Assembléia em novo conclave quando se alterar, por decisão judicial, o perfil do quadro de credores.”

 

Ao analisar referido dispositivo legal, Erasmo Valladão  França assevera:

 

“O que se deve entender com isso é que as deliberações da assembléia-geral não serão invalidadas pelo só fato de ocorrer uma decisão judicial posterior acerca da existência, quantificação ou classificação de créditos. O que não quer dizer que, verificada posteriormente, por decisão judicial, a existência, por exemplo, de um crédito forjado, que tenha sido determinante para a deliberação de aprovação de uma recuperação judicial absolutamente inviável, com a nomeação de um gestor judicial conluiado com o devedor, etc., não possam os interessados requerer a anulação da deliberação.”

 

Diante da aparente incompatibilidade do art. 39, §2°, da Lei n° 11.101/2005, com o ordenamento jurídico vigente, prevalece o entendimento que a interpretação do referido dispositivo não pode ocorrer de forma absoluta, de forma a impedir a possibilidade de alteração de deliberação assemblear. O próprio legislador reconhece essa possibilidade, dispondo no art. 39, §3°, da Lei n° 11.101/2005 que:

 

“Art. 39.

§3°. No caso de posterior invalidação de deliberação da assembléia, ficam resguardados os direitos de terceiros de boa-fé, respondendo os credores que aprovarem a deliberação pelos prejuízos comprovados causados por dolo ou culpa.”

 

A possibilidade da existência de fraude, simulação, abuso de poder, abuso de direito, compra de votos, falsidade, erro essencial, dentre outras práticas ilícitas capazes de alterar indevidamente os resultados obtidos nas deliberações da Assembleia Geral de Credores impôs ao legislador a previsão de meios destinados a coibi-las, preservando-se, assim, a finalidade desse importante órgão da recuperação judicial. No caso de invalidação da decisão assemblear decorrente de vício de convocação, instalação ou deliberação ou, ainda, decorrente da prática de ato ilícito, o art. 39, §3°, da Lei n° 11.101/2005 assegura a preservação dos direitos de terceiros de boa-fé, respondendo os credores que aprovarem a deliberação pelos prejuízos comprovados causados por dolo ou culpa. Assim, se o plano de recuperação judicial prevê a venda de estabelecimento empresarial do devedor, a invalidação da deliberação que aprovou o plano não gera a ineficácia da compra e venda realizada pelo terceiro de boa-fé.

Conforme se verifica, o sistema legal previsto visa à assegurar a manutenção das decisões assembleares, entretanto, diante da constatação de irregularidades e de fatos prejudiciais aos credores, reconhece a necessidade da invalidação de deliberação ou, se for ocaso, da própria Assembleia. A Câmara Reservada à Falência e Recuperação de Empresas do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo confirmou decisão judicial que determinou a nulidade da Assembleia Geral de Credores em que foi aprovado plano de recuperação com expressivas alterações introduzidas pelo devedor em evidente prejuízo aos participantes, sem que os credores tivessem tomado conhecimento dos novos termos com a antecedência necessária para a prudente análise. No respectivo acórdão, que teve como relator o eminente Desembargador Elliot Akel, destaca-se o seguinte trecho:

 

“Razão não assiste à agravante. Houve substancial alteração do plano de recuperação, com mudança do prazo de pagamento e previsão de deságio de 70% (setenta por cento) sobre os valores referidos no rol de credores com garantia geral e quirografários. Não bastasse, foi a própria recuperanda quem introduziu as alterações, sem que os credores houvessem tomado

conhecimento de seus termos com antecedência. Bem se observou, no parecer da douta Procuradoria de Justiça, que o Juízo de primeiro grau declarou a nulidade da assembléia ‘por entrever notório prejuízo aos seus participantes, que foram surpreendidos com a apresentação de novo plano de recuperação judicial, pelo devedor, somente naquele ato, em

detrimento do exercício pleno de seu direito de discutir e propor sugestões com base no plano original, conforme lhes faculta o artigo 56, parágrafo 3°, da Lei n° 11.101/2005’.

Necessária, pois, nova assembléia para permitir aos credores interessados à análise em prazo razoável das modificações do plano propostas pela recuperanda.”

(TJSP. AgI 99009364235-2. Câm. Reservada à Falência e Recuperação. Rel Des. Elliot Akel. DJ 04.05.2010)

 

Possuem legitimidade para requerer judicialmente a invalidação de deliberação assemblear ou da própria Assembleia Geral de Credores, considerando o disposto no art. 19 da Lei n° 11.101/2005, o administrador judicial, o Comitê de Credores, qualquer credor ou o representante do Ministério Público. Diante da possibilidade da irregularidade constatada prejudicar o devedor, não se verifica impedimento para que a invalidação da Assembleia ou de suas deliberações também seja por ele requerida.  

Em relação à garantia de realização da Assembleia Geral de Credores, o art. 40 da Lei n° 11.101/2005 afasta a possibilidade do pedido de suspensão ou adiamento da AGC, por meio de provimento liminar, de caráter cautelar ou antecipatório de tutela em razão de conflitos de interesses relativos à existência, quantificação ou classificação de crédito. O legislador objetiva impedir que divergências referentes aos créditos crie obstáculos à realização da Assembleia e retarde de forma injustificada o andamento processual. Nesse contexto, a existência de divergências referentes à existência, quantificação e classificação de crédito não impede que o credor titular do crédito sob discussão judicial participe da Assembleia, a Lei n° 11.101/2005 lhe assegura esse direito, conforme se verifica em seu art. 17, parágrafo único:

 

“Art. 17.

Parágrafo único. Recebido o agravo, o relator poderá conceder efeito suspensivo à decisão que reconhece o crédito ou determinar a inscrição ou modificação do seu valor ou classificação no quadro-geral de credores, para fins de exercício de direito de voto em assembleia-geral.”

 

 Conforme se verifica, a previsão constante no art. 40 objetiva garantir a celeridade processual, impedindo que eventuais divergências referentes à existência, quantificação e classificação de crédito determinem a suspensão ou o adiamento da Assembleia Geral de Credores, o que causaria grandes transtornos, considerando as medidas preparatórias tomadas pelo administrador judicial para a organização da AGC, os deslocamentos dos credores e o descrédito decorrente das incertezas que sempre estariam presentes sobre a realização ou não da Assembleia.

Considerando que o credor que discute a existência, valor ou classificação do seu crédito tem assegurado legalmente o direito de participar da Assembleia Geral de Credores, não parece que o art. 40 da Lei n° 11.101/2005 colide com o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário previsto no art. 5°, XXXV, da Constituição Federal. A AGC pode ser suspensa ou adiada por provimento liminar quando o fundamento for diverso das razões indicadas no art. 40, para as quais a lei de regência já prevê outros meios do credor assegurar seus interesses sem impedir a realização da AGC. Na hipótese de descumprimento de formalidade legal imprescindível exigida para a convocação da Assembléia, a AGC pode ser suspensa ou adiada. Nesse caso, Fábio Ulhoa Coelho entende que o adiamento ou a suspensão da Assembleia somente será possível “se não houver outros meios de se preservarem os interesses gerais da comunhão e os direitos individuais de quem pleiteia o provimento”.

Portanto, de acordo com a sistemática legal adotada, busca-se sempre a garantia da realização da Assembleia Geral de Credores, priorizando a celeridade processual e os interesses gerais dos credores em detrimento de interesse individual. A suspensão ou o adiamento da AGC colidem com os exíguos prazos legais e a demora na realização da Assembleia, além dos prejuízos impostos aos credores, também é prejudicial aos interesses do devedor, que estará, nos termos do art. 6°, §4°, da Lei n° 11.101/2005, desprotegido se a Assembleia não ocorrer no prazo de 180 dias contados do deferimento do processamento da recuperação judicial, diante da necessidade da aprovação do plano de recuperação judicial pela AGC. 

 

3. O voto do credor na Assembleia Geral de Credores

 

Nos termos do art. 38 da Lei n° 11.101/2005 o voto do credor será proporcional ao valor do seu crédito, ressalvado, nas deliberações sobre o plano de recuperação judicial, o disposto no art. 45, §2°, em que o voto do credor trabalhista e por acidente de trabalho não está vinculado ao valor do  crédito. De acordo com o parágrafo único do art. 38, na recuperação judicial, para fins exclusivos de votação em AGC, o crédito em moeda estrangeira será convertido para moeda nacional pelo câmbio da véspera da data da realização da Assembleia, considerando-se, a princípio, o valor de venda da moeda.

Os credores com direito de voto, em regra, serão os arrolados no Quadro Geral de Credores ou, se ainda não formado, na relação de credores apresentada pelo administrador judicial na forma do art. 7°, §2°, ou, ainda, na falta desta, na relação apresentada pelo próprio devedor (art. 51, III e IV, Lei n° 11.101/2005). De acordo com o art. 39, caput, terá o direito de voto, em qualquer caso, o credor que se encontre habilitado na data da realização da AGC ou que tenha crédito admitido ou alterado por decisão judicial, inclusive os credores que obtiveram reserva de importância.

Na fase de verificação e habilitação de créditos (arts. 7 a 20, Lei n° 11.101/2005), diante do inconformismo em relação à decisão judicial referente à impugnação de crédito, o credor pode interpor Agravo de Instrumento, mostrando-se oportuna a elaboração de pedido liminar para assegurar-lhe o direito de voto na AGC. Nesse caso, nos termos do art. 17, parágrafo único, recebido o agravo, o relator pode determinar a inscrição ou modificação do valor do crédito no Quadro Geral de Credores para permitir ao credor exercer o direito de voto na Assembleia Geral.

Cumpre ressaltar que podem participar da AGC todos os credores do devedor, conforme se verifica pela análise dos artigos 39, §1° e 43, caput, da Lei n° 11.101/2005. Entretanto, o direito que os credores da recuperanda possuem de participar da AGC não significa que eles também terão o direito de voto, mas, apenas o de voz. A lei exclui o direito de voto aos credores em determinadas hipóteses: a) credores retardatários, exceto os trabalhistas (art. 10, §1°); b) sócios do devedor, sociedades coligadas, controladoras ou as que tenham sócio ou acionista com a participação superior a 10% do capital social do devedor ou em que o devedor ou algum de seus sócios detenham participação superior a 10% do capital social (art. 43);  c) credores titulares de créditos excluídos da recuperação judicial pelo art. 49, §§ 3° e 4° – credor fiduciário, arrendador mercantil, negociante de imóvel como vendedor, compromitente vendedor ou titular de reserva de domínio se houver cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade contratual, instituições financeiras credoras por adiantamento aos exportadores (art. 39, §1°).

Além dessas hipóteses de vedação absoluta, destaca-se que os credores não abrangidos pelo plano de recuperação judicial não terão direito de voto nas deliberações referentes ao plano, conforme disposto no art. 45, §3°, da Lei n° 11.101/2005:

 

“§3°. O credor não terá direito de voto e não será considerado para fins de verificação de quorum de deliberação se o plano de recuperação judicial não alterar o valor ou as condições originais de pagamento de seu crédito.”  

 

Referida disposição legal encontra críticas na doutrina. De acordo com o prestigiado doutrinador Fábio Ulhoa Coelho, a exclusão legal é justificada pelo fato de que o credor não atingido pelo plano não teria nenhum interesse no resultado da votação, concluindo que:

 

“Tal pressuposto é questionável porque, mesmo não sendo atingido diretamente pela proposta em votação, é claro que o credor pode ter o seu direito ameaçado na hipótese de aprovação de um plano inconsistente, que não leve à efetiva recuperação do devedor.”

 

A exclusão legal do direito de voto ao credor não abrangido pelo plano, conforme identificado pelo ilustre jurista, justifica-se pela presumida ausência de interesse do credor não atingido pelo plano, entretanto, em determinadas hipóteses, ainda que o plano não altere o valor ou as condições originais de pagamento do crédito de determinado credor, é possível que o plano coloque em risco seus  direitos e interesses. A previsão de trespasse ou a venda parcial de bens no plano recuperatório, que constituem meios legais de recuperação previstos no art. 50, VII e XI, da Lei n° 11.101/2005, resultam na redução do patrimônio do devedor, afetando diretamente os direitos e interesses de todos os credores, sujeitos ou não ao plano recuperatório.

Nesses casos e em hipóteses similares em que o plano recuperatório prevê meio de recuperação que atinge diretamente o patrimônio do devedor, a regra prevista no art. 45, §3°, da Lei n° 11.101/2005 poderia ser excepcionada para assegurar ao credor que não teve alterado pelo plano o valor ou as condições originais de pagamento do seu crédito o direito de voto, afinal, esse ponto do plano atinge diretamente o direito e os interesses do credor, em razão da redução das garantias do recebimento do seu crédito. Entretanto, a adoção de referido entendimento, além de proporcionar maior complexidade na votação do plano na Assembleia Geral de Credores, poderia motivar a ampliação de casos justificadores para a exclusão da regra do art. 45, §3°, trazendo insegurança jurídica.

Diante das dificuldades existentes, parece que a solução trazida pelo respeitado jurista Jorge Lobo mostra-se mais adequada ao caso. Referido jurista, ao identificar os problemas decorrentes da exclusão do direito de voto aos credores não atingidos pelo plano, assevera:

 

“Estão impedidos de votar os credores não atingidos diretamente pelo plano de recuperação, o que pode  abarcar classes inteiras, não obstante o plano, embora sem ‘alterar o valor ou as condições originais de pagamento’ de seus créditos, conforme dispõe o art. 45, §3°, possa afetar ou pôr em risco os direitos e interesses do credor, quando, por exemplo, estabelecer a alienação de estabelecimento e a venda parcial de bens (art. 50, VII e XI).

O credor, que se sentir prejudicado, por considerar que a diminuição de bens do ativo do devedor desfalca as garantias gerais, embora não possa votar na assembléia geral, está legitimado a ‘manifestar ao juiz sua objeção ao plano’ (art. 55, caput).”

 

Vale lembrar que a exclusão do direito ao voto não exclui o direito de voz do credor e também não significa que o seu crédito não será, de forma absoluta, considerado para a definição do quorum de instalação da AGC. Apenas não são considerados para o quorum de instalação da AGC os credores excluídos do direito de voto previstos nos art. 39, §1° (credores excluídos da recuperação judicial pelo art. 49, §§3º e 4°) e as pessoas indicadas no art. 43 da Lei n° 11.101/2005. Os credores não abrangidos pelo plano (art. 45, §3°) e os credores retardatários (art. 10, §1°), por ausência de restrição legal, terão os seus créditos considerados para a definição do quorum de instalação da AGC.

Em relação aos credores retardatários, com a ressalva prevista aos titulares de créditos trabalhistas (art. 10, §1°), na falência os retardatários não votam na AGC enquanto o Quadro Geral de Credores contendo o crédito retardatário não for homologado. Atendida referida condição legal, eles adquirem o direito de voto no processo falimentar, conforme prevê o art. 10, §2°, da Lei n° 11.101/2005. Diferente é a solução para os credores retardatários na recuperação judicial, que não adquirem o direito de voto na AGC mesmo que seja reconhecida a  existência do seu crédito, afinal, o referido §2° refere-se exclusivamente ao processo de falência.

Questão que desperta interesse refere-se ao direito de voto dos credores não originários, ou seja, dos cessionários ou endossatários de créditos sujeitos à recuperação judicial. O direito de voto não é negociável, entretanto, o crédito pode ser objeto de negociação e, sendo o direito de voto indissociável do crédito, a possibilidade de negociação não poderia ser afastada.  Portanto, como o direito de voto encontra-se associado ao crédito, havendo a cessão de crédito, o novo titular passa a ter direito ao voto correspondente.

Alexandre Alves Lazzarini identifica graves problemas na recuperação judicial em razão de condutas decorrentes da negociabilidade dos créditos. De acordo com o ilustre Desembargador,  o próprio devedor pode comprar por interposta pessoa os créditos de seus credores para assegurar a aprovação do plano, sendo também possível aos concorrentes comprar os créditos dos credores da devedora para determinar a rejeição do plano e excluir o agente econômico do mercado, afastando a recuperação judicial da finalidade legal. Diante das possibilidades apresentadas, Lazzarini entende que o direito de voto não é negociável, dissociando-se do crédito, sendo esta a hipótese que melhor atende a finalidade do instituto da recuperação, de forma que o direito de voto, por conseqüência, deve ser entendido como um atributo destinado ao credor original, um direito personalíssimo e, portanto, inalienável.

Em que pesem os argumentos apresentados, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por meio da Câmara Reservada à Falência e Recuperação, reconhece o direito de voto aos cessionários de créditos sujeitos à recuperação judicial, desde que o direito de voto esteja associado ao crédito transferido e não se configure nenhuma hipótese legal restritiva ao voto em razão da cessão. Nesse sentido, as seguintes decisões:

 

“Agravo de Instrumento. Recuperação Judicial. Endossatário de títulos de créditos (notas promissórias). O endosso transmite todos os direitos emergentes da cambial. Impugnação judicial para ser admitido o endossatário no Quadro-Geral de Credores, excluindo-se o credor original que endossou a cambial. Reconhecimento de que o endossatário pode exercer todos os direitos decorrentes das cambiais, inclusive votar na proporção de seu crédito nas Assembléias-Gerais de Credores. Impugnação acolhida, para incluir o crédito do agravante no Quadro-Geral pelo valor atualizado.”

(TJSP. AgI 99406014897-2. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 22.01.2007)

 

“Agravo de Instrumento. Recuperação Judicial. Cessionário de crédito. Direito de participar da Assembléia Geral de Credores com voz e voto, este na proporção do valor do crédito que lhe foi cedido, bastando para tanto, que tenha pedido sua habilitação, formulado divergência ou deduzido impugnação judicial, até que esta seja definitivamente julgada. Agravo provido.”

(TJSP. AgI 99405122054-0. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 10.04.2006)

 

Em relação à apuração do voto do cessionário do crédito para a aprovação do plano, destaca-se a seguinte decisão da Câmra Reservada à Falência e Recuperação do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: 

 

“Recuperação judicial – Assembléia Geral de Credores – Anulação determinada – Introdução de profundas alterações no plano em evidente prejuízo aos participantes – Necessidade de nova assembléia para suficiente análise das modificações – Voto de cessionário de diversos créditos que deve ser considerado como único por cabeça – Interpretação do art. 45, § 1°, da Lei n° 11.101/2005 – Recurso Improvido.”

(TJSP. AgI 99009364235-2. Câm. Reservada à Falência e Recuperação. Rel Des. Elliot Akel. DJ 04.05.2010)

 

Do referido acórdão, extrai-se o seguinte trecho:

 

“Por outro lado, correto o critério de apuração de votos estabelecido pelo Juízo, acolhendo manifestação do administrador judicial, segundo a qual o cessionário de diversos créditos pode votar pelo somatório dos créditos, mas deve ser considerado como única cabeça. Conforme prevê o art. 45, § 1°, da Lei n° 11.101/2005 (a que se reporta o art. 58, § 1°, III), nas classes referidas nos incisos II e III do art. 41 da mesma lei, a aprovação do plano depende do voto favorável não só da metade da totalidade dos créditos correspondentes, mas também da maioria dos credores presentes ao evento. Assim, o critério há de ser observado, sob pena de se permitir um quadro de desequilíbrio no domínio das votações, algo que o legislador explicitamente pretendeu evitar, evidentemente para dar alguma proteção aos credores de menor valor, conferindo- lhes certo poder de negociação, sem o qual podem restar seriamente prejudicados no plano de pagamentos. Observe-se que o cessionário de múltiplos créditos já se vê em vantagem na votação ao ver agregado maior peso a seu voto em relação ao valor total dos créditos.”

(TJSP. AgI 99009364235-2. Câm. Reservada à Falência e Recuperação. Rel Des. Elliot Akel. DJ 04.05.2010)

 

No âmbito da cessão de créditos sujeitos à recuperação judicial, conforme já exposto, a Lei n° 11.101/2005 exclui o direito de voto em determinados casos. Na hipótese da cessão de crédito abranger crédito que não atribui ao seu titular o direito de voto, o cessionário não adquire esse direito pela cessão, não podendo exercer o direito de voto na Assembleia Geral de Credores, conforme se verifica nas seguintes decisões da Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

 

“Agravo de Instrumento Recuperação Judicial – Direito de voto em assembleia-geral de credores afastado. Razoável interpretarem-se os artigos 43, caput, e 83, caput, VIII, “b”, ambos da NLF de tal modo que a restrição e a qualidade de subordinados de tais créditos os acompanhem, se transferidos a terceiros, ainda que estes não tenham nenhum vínculo com a recuperanda, ao menos nos casos em que a cessão tenha ocorrido depois de protocolado o pedido de recuperação judicial (artigo 49, caput, da NLF). Agravo desprovido.”

(TJSP. AgI 99409287683-7. Câm. Reservada à Falência e Recuperação. Rel Des. Lino Machado. DJ 01.06.2010)

 

“Recuperação judicial – Assembléia-geral – Direito de voto – Cessão de créditos – Cedente impedido de votar – Art. 43 e par. único da Lei n° 11.101/2005 – Impossibilidade de o cedente transmitir mais direitos do que possui – Recurso improvido”

(TJSP. AgI 99010021655-4. Câm. Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Elliot Akel. DJ 01.06.2010)

 

Considerando os desdobramentos decorrentes do direito de voto dos credores nos resultados da Assembleia Geral de Credores que refletem diretamente no processo de recuperação judicial, existindo conflitos referentes ao direito de voto dos credores, mostra-se oportuna, muitas vezes, a realização de simulações para as deliberações da Assembleia Geral de Credores. Dependendo da natureza e importância do conflito verificado em relação ao direito do voto do credor, o administrador judicial pode proceder a realização da votação de determinadas deliberações com a participação do credor que tem o direito de voto em conflito e sem a sua participação, sendo os resultados obtidos discriminados na ata da AGC, que será juntada ao processo. No caso, as simulações de votação constituirão provas importantes que poderão contribuir para a solução de várias questões do processo de recuperação judicial.

Em relação ao exercício do direito, o voto do credor na AGC pode ser exercido de forma direta, que será pessoalmente no caso de empresário individual ou, no caso de credor pessoa jurídica, por meio do seu administrador (presentante legal) na forma prevista no contrato social ou estatuto social. A Lei n° 11.101/2005, no art. 37, §4º, também permite o voto do credor mediante a constituição de procurador, desde que entregue ao administrador judicial, com a antecedência de 24 horas da data prevista para a realização da AGC constante no aviso de convocação, documento hábil que comprove seus poderes para participar e votar na Assembleia ou indique as folhas dos autos do processo em que referido documento se encontre. O mandato conferido para a participação na AGC deve ter firma reconhecida e encontrar-se acompanhada da cópia dos atos constitutivos.

De acordo com Fábio Ulhoa Coelho, se não for realizada a comunicação ao administrador judicial no prazo legal, o credor não poderá ser representado por procurador na AGC, devendo comparecer pessoalmente para assegurar seus direitos na Assembleia. A exigência prevista no art. 37, §4°, vigora mesmo para os procuradores já constituídos e com mandatos juntados nos autos do processo de recuperação judicial, que não estão dispensados de atender às exigências legais no prazo indicado, sob pena de serem impedidos de representar o credor na Assembleia Geral.

Referido entendimento objetiva atribuir maior segurança e tranquilidade ao desenvolvimento da Assembleia Geral de Credores, além de agilizar o controle de entrada dos credores e seus respectivos representantes, apuração do quorum de instalação e de deliberação, em razão dos procedimentos adotados pelo administrador judicial na organização da AGC. Considerando o número de credores e os inúmeros volumes que rapidamente se formam nos autos do processo de recuperação judicial, a exigência legal deve ser prestigiada para assegurar o êxito na instalação e no desenvolvimento da AGC. Entretanto, é possível encontrar posicionamento diverso na doutrina. Adalberto Simão Filho entende que o fato de não ter sido indicado no prazo de 24 horas ao administrador judicial as folhas do processo onde consta o documento que legitima a representação constitui questão facilmente suprível, não devendo este fato representar óbice de qualquer natureza à legítima participação de credor por representação em AGC, inclusive com direito a voto.

Em relação ao titular de crédito trabalhista ou derivado de acidente de trabalho, além da possibilidade dele se fazer representar por procurador nas mesmas condições estabelecidas para a generalidade dos credores, o art. 37, §5°, da Lei n° 11.101/2005 permite sua representação pelo sindicato a que se encontra associado. Para tanto, nos termos do art. 37, §6°, o sindicato deve apresentar ao administrador judicial, até 10 dias antes da assembléia, a relação dos associados que pretende representar na AGC. Se o mesmo credor constar de mais de uma lista e não tomar a iniciativa de esclarecer ao administrador judicial qual dos sindicatos o representa, até 24 horas antes do início da AGC, não poderá ser representado por nenhum deles. A representação pelo sindicato somente existirá na hipótese de o credor não se encontrar presente na AGC, já que nessa hipótese, somente o credor que compareceu pessoalmente na Assembleia é que terá direito a voz e voto. Jorge Lobo ressalta que o sindicato que não exercer, no prazo legal, a prerrogativa na primeira convocação, não poderá fazê-lo na segunda, caso esta se realize em prazo inferior a dez dias, devido à impossibilidade absoluta de preencher os requisitos do art. 37, §6°, da Lei n° 11.101/2005.

O advogado, além de poder participar da Assembleia Geral de Credores como procurador de credor, exercendo o direito de voz e voto no lugar do credor e no interesse deste, atendidas as exigências legais para a representação na AGC, também pode participar acompanhando o credor para assessorá-lo, diante da prerrogativa profissional constante no art. 7°, VI, d, da Lei n° 8.906/1994, que assegura ao advogado ingressar livremente em qualquer assembleia ou reunião que participe ou possa participar o seu cliente. Quando participar como assessor do credor, ressalta Fábio Ulhoa Coelho que o advogado não tem direito à voz e voto, não podendo dirigir-se à mesa e ao plenário sem prévia autorização para tanto, podendo apenas recomendar ao seu cliente a fala ou declaração a fazer, além do assessoramento em geral.

 

4. A composição da Assembleia Geral de Credores e os quoruns legais de votação

 

De acordo com o art. 41 da Lei n° 11.101/2005, a Assembleia Geral de Credores será composta pelas seguintes classes de credores: I) titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidente de trabalho; II) titulares de créditos com garantia real; III) titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados. A divisão dos credores em classes na Assembleia do processo de recuperação judicial, na forma prevista, foi estabelecida para a votação das deliberações referentes à análise do plano de recuperação. Para a composição do Comitê de Credores a divisão dos credores em classes ocorre na forma prevista no art. 26, que apresenta distinções nas composições das classes II e III, sendo a classe II composta pelos credores com garantia real e com privilégio especial. Para as demais deliberações, como por exemplo, a nomeação de gestor judicial e a análise do pedido de desistência do devedor, os credores não são divididos em classes, votam em plenário.

No art. 41, §1°, o legislador ressalta que os titulares de créditos derivados da legislação do trabalho votam com a classe de titulares de créditos trabalhistas ou decorrentes de acidente de trabalho com o  total de seu crédito, independentemente do valor. Referida previsão legal mostra-se relevante para a constituição do Comitê de Credores, na forma do art. 26, e objetiva afastar qualquer confusão que possa resultar do disposto no art. 83, I, da lei de regência, que estabelece a ordem de pagamento dos credores na falência limitando o pagamento privilegiado dos créditos trabalhistas a 150 salários mínimos por credor, sendo o saldo remanescente, nos termos do art. 83,VI, c, pago juntamente com os credores  quirografários. O credor trabalhista, independentemente do valor do crédito titularizado, vota na classe I com a totalidade do seu crédito, da mesma forma que os credores da classe III.

Diferente é o tratamento previsto pelo art. 41, §2°, para os titulares de créditos com garantia real, que votam na classe II até o limite do valor do bem gravado e com os credores da classe III pelo restante do valor do seu crédito. No caso do credor titular do valor de R$500.000,00 que possui crédito com garantia hipotecária no valor de R$300.000,00, este credor vota com R$300.000,00 na classe II (credores com garantia real, até o limite do valor do bem gravado) e com o valor restante, R$200.000,00, na classe III (credores quirografários, privilégio especial, privilégio geral, subordinados, credores com garantia real pelo valor que excedeu a garantia).

O quorum geral para as deliberações da Assembleia Geral de Credores é o da maioria simples, considerando o valor do crédito titularizado pelo credor, conforme disposto no art. 42 da Lei n° 11.101/2005:

 

“Art. 42. Considerar-se-á aprovada a proposta que obtiver votos favoráveis de credores que representem mais da metade do valor total dos créditos presentes à assembléia-geral, exceto nas deliberações sobre o plano de recuperação judicial nos termos da alínea a do inciso I do caput  do art. 35 desta Lei, a composição do Comitê de Credores ou forma alternativa de realização do ativo nos termos do art. 145 desta Lei.”

 

O sistema utilizado pelo legislador prevê que o quorum geral de deliberação é definido pelo valor dos créditos dos credores presentes na Assembleia Geral de Credores, de forma que a maioria dos presentes no plenário ou nas classes definidas em lei, de acordo com o valor do crédito titularizado, determina o quorum geral de deliberação. Ressalta-se que a maioria é  determinada pelos créditos dos credores presentes na AGC, não se considerando o valor total dos créditos do processo de recuperação judicial. Na forma prevista, a votação definida pela maioria dos credores presentes na AGC, para as deliberações em que a lei não estabeleceu quorum diverso, será suficiente para a aprovação ou rejeição da deliberação envolvendo, por exemplo, a destituição de administrador judicial, o pedido de desistência do devedor e a nomeação do gestor judicial.

Conforme previsto no art. 42, apenas em três hipóteses existem exceções ao quorum geral: a) aprovação, rejeição ou modificação do plano de recuperação (art. 45 c.c. art. 41): existem meticulosas regras, que serão apresentadas na sequência; b) aprovação de forma alternativa para a realização do ativo na falência (art. 46): o quorum é de credores representantes de 2/3 dos créditos presentes na AGC; c) composição do Comitê de Credores (art. 26): depende da deliberação de qualquer das classes de credores na AGC, divididos na forma prevista no art. 26, não sendo necessária a aprovação da constituição pela maioria simples em todas as classes, basta a vontade da maioria simples dos credores de uma única classe, calculada pelo valor dos créditos.

 

5. A análise do plano de recuperação judicial na Assembleia Geral de Credores

 

A aprovação do plano de recuperação judicial  exige o atendimento a uma combinação de fatores, previstos no art. 45 da Lei n° 11.101/2005. Conforme exposto, objetivando estimular a participação dos credores na Assembleia, o legislador adotou para a deliberação referente à aprovação do plano o sistema da dupla maioria e estabeleceu um critério especial para os titulares de créditos trabalhistas e decorrentes de acidente  de trabalho. De acordo com esse sistema, o plano de recuperação judicial deve ser analisado e votado com os credores divididos nas classes definidas no art. 41. Em cada uma das classes dos incisos II (credores com garantia real) e III (credores quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral, subordinados e credores com garantia real pelo valor que excedeu a garantia), o plano deve ser aprovado por credores representantes de mais da metade do valor total dos créditos presentes à Assembléia e, de forma cumulativa, pela maioria simples dos credores presentes. Na classe prevista no inciso I (credores trabalhistas ou decorrentes de acidente do trabalho), o plano deve ser aprovado apenas pela maioria simples dos credores presentes, independentemente do valor de seu crédito. O quadro abaixo permite a visualização do sistema legal adotado para a aprovação do plano de recuperação judicial.

 

QUORUM DE APROVAÇÃO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL – Art. 45

 

Classe de Credores

(art. 41)

 

 

Natureza do crédito

 

Voto

Quantitativo

(n° de credores)

 

Voto

Qualitativo

(valor crédito)

 

Quorum de deliberação

 

 

 

Classe I

 

Trabalhistas

 (sem limite)        e acidentários

 

 

Maioria simples (mais da metade dos credores   presentes)

 

 

(NÃO)

Não se considera o valor dos créditos desta classe

 

 

Somente por cabeça:

maioria simples

 

 

 

 

Classe II

 

 

Garantia real (até o limite da garantia)

 

Maioria simples

(mais da metade dos credores   presentes)

 

 

Maioria simples

(mais da metade do valor total dos créditos desta classe presentes na AGC )

 

Por cabeça:

maioria simples

 

Por crédito:

maioria simples

 

 

 

 

 

 

Classe III

 

 

 

Quirografários – Privilégio geral-  Privilégio especial – Subordinados e credores com garantia real ao que excedeu o limite de garantia

 

 

Maioria simples

(mais da metade dos credores   presentes)

 

 

Maioria simples

(mais da metade do valor total dos créditos desta classe presentes na AGC)

 

Por cabeça:

maioria simples

 

Por crédito:

maioria simples

 

 

De acordo com o sistema legal adotado, surge para o credor com garantia real a necessidade da definição do valor do bem dado em garantia para a distribuição dos seus votos entre as classes II e III, na hipótese do valor do bem ser inferior ao valor do crédito. Entretanto, a Lei n° 11.101/2005 não especifica o momento e a quem cabe a definição do valor do bem gravado. Essa questão que aparentemente passou despercebida do legislador, foi abordada em artigo que tratou de alguns pontos polêmicos identificados ao longo dos cinco anos de existência da lei.

Na oportunidade, asseveramos que na votação do plano de recuperação judicial mostra-se de grande relevância a definição do valor do bem dado em garantia quando não apresentar valor  manifestamente superior ao crédito, já que o resultado referente à análise do plano na Assembleia Geral de Credores poderá depender da diferença apurada. Nesse contexto, diante da ausência de previsão legal específica sobre o momento da definição do valor do bem dado em garantia e do critério a ser utilizado, surgem algumas hipóteses.

De acordo com o art. 9°, II, da Lei n° 11.101/2005, a habilitação de crédito deve conter “o valor do crédito, atualizado até a data da decretação da falência ou do pedido de recuperação judicial, sua origem e classificação”. Na falência, o art. 83, §1°, estabelece que o valor do bem gravado corresponderá à importância efetivamente arrecadada com a sua venda, ou, no caso de alienação em bloco, o valor de avaliação do bem individualmente considerado. Ao tratar do voto do credor na Assembleia Geral de Credores, o art. 38, parágrafo único, determina que para fins exclusivos de votação em Assembleia, o crédito em moeda estrangeira será convertido para moeda nacional pelo câmbio da véspera da data da realização da Assembleia.

Considerando as respectivas previsões legais, parece que a melhor solução é a realização da avaliação do bem gravado pelo valor de mercado, considerando a data da distribuição do pedido de recuperação judicial. Estabelecido o momento para a realização da avaliação, surge outra questão, a quem compete a avaliação: ao credor com garantia real, à recuperanda ou ao administrador judicial? Nos termos do art. 9°, II, caberia ao credor com garantia real apresentar a avaliação do bem no momento da habilitação do crédito, mediante a apresentação de laudo fundamentado elaborado por empresa especializada ou por profissional legalmente habilitado. Entretanto, não há previsão legal específica para a respectiva exigência e a avaliação do bem realizada pelo próprio credor beneficiário não se mostra adequada ao caso.   

Outra solução possível para o caso é a realização da avaliação pelo próprio administrador judicial. A exemplo do que ocorre na falência, nos termos do art. 108 da Lei n° 11.101/2005, caberia ao administrador judicial proceder à avaliação do bem gravado e,  não se encontrado habilitado para fazê-lo, contrataria avaliadores, de preferência oficiais, mediante autorização judicial, conforme disposto no art. 22, III, “h”, da lei de regência. Nessa hipótese, o laudo de avaliação deve ser apresentado juntamente com a relação de credores prevista no art. 7°, §2°, a fim de permitir a manifestação dos interessados antes da realização da Assembleia Geral de Credores.

Ressalta-se, ainda, o disposto no art. 53, III, da Lei n° 11.101/2005, prevendo que o plano de recuperação judicial deverá conter “laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens e ativos do devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa especializada.” De acordo com referido dispositivo, os valores dos bens do devedor são definidos no plano de recuperação e ficam sob a responsabilidade da recuperanda. No caso, o valor constante no laudo de avaliação subscrito por profissional legalmente habilitado ou por empresa especializada, desde que estabeleça avaliação individual para os bens da recuperanda, poderá ser o documento utilizado para atender ao disposto no art. 41, § 2°, da Lei n 11.101/2005. Entretanto, o que se verifica nos casos concretos é a apresentação de uma avaliação global de bens por espécie. 

Seja qual for o entendimento a ser adotado pela jurisprudência, a avaliação conferida ao bem sempre estará sujeita à impugnação por qualquer interessado e a decisão judicial poderá ser objeto da interposição de Agravo de Instrumento, que levará a questão para a análise do Egrégio Tribunal de Justiça. No caso do bem gravado apresentar valor manifestamente superior ao valor do crédito, a definição do critério, da forma e do momento da avaliação perde a importância, já que o voto do credor, nesse caso, será considerado apenas na classe II pelo valor do seu crédito. Dentre as hipóteses apresentadas, parece que a avaliação realizada pelo administrador judicial, mediante a contratação de avaliadores oficiais, mostra-se como a solução mais segura ao caso, cabendo à jurisprudência a definição.

No processo que visa à superação da crise empresarial por meio da Lei n° 11.101/2005, o deferimento da recuperação judicial não é dependente da aprovação do plano na forma prevista no art. 45. A concessão da recuperação judicial também não se encontra condicionada à existência da Assembleia Geral de Credores convocada especificamente para a análise e respectiva aprovação do plano. É possível que no processo de recuperação judicial o benefício para a superação da crise seja concedido pelo juiz ainda que o plano não seja aprovado na Assembleia Geral de Credores (art. 58, §1°) ou seja aprovado de forma tácita pelos credores, que por não apresentarem objeções ao plano, concordaram tacitamente com as condições previstas, mostrando-se totalmente desnecessária a AGC nesse caso (art. 56).

Considerando que a realização da Assembleia Geral de Credores não constitui requisito obrigatório para a aprovação do plano, diante da possibilidade da ausência da apresentação de objeções pelos credores, e o fato de a recuperação judicial ser deferida pelo juiz mesmo diante da ausência da aprovação do plano na forma prevista no art. 45, desde que observado o atendimento aos requisitos do art. 58, §1°, da Lei n° 11.101/2005,  Adalberto Simão Filho identifica três sistemas de aprovação do plano de recuperação judicial: a) sistema de aprovação tácita; b) sistema de aprovação extraordinária; c) sistema de aprovação ordinária.

O sistema de aprovação tácita decorre do art. 56, caput, da Lei n° 11.101/2005, que determina a convocação da Assembleia Geral de Credores para deliberar sobre o plano de recuperação judicial se existir a apresentação de objeção por qualquer credor. Logo, se não existir objeção, a convocação da Assembleia Geral de Credores para a análise do plano mostra-se totalmente desnecessária, presumindo o legislador que os credores aprovaram o plano de recuperação judicial de forma tácita. Nesse sentido, o art. 58, caput, da Lei n° 11.101/2005 dispõe:

 

“Art. 58. Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55 desta Lei ou tenha sido aprovado pela assembléia-geral de credores na forma do art. 45 desta Lei.”

 

A Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no Agravo de Instrumento 990100050060, que teve como Relator o eminente Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças, abordou o tema da seguinte forma:

 

“Agravo. Recuperação Judicial. Plano de recuperação judicial. Ausência de objeções ao plano. Convocação de assembléia-geral de credores. Inteligência do art. 56 da LRF. Realização da assembléia com participação de credores representantes de cerca de 8% do passivo. Rejeição ao plano. Ineficácia da assembléia. Concessão da recuperação judicial com base no art. 58, dispensadas as certidões negativas tributárias. Credores arrolados no art. 49, §§ 3° e 4°, da LRF não se submetem aos efeitos do plano recuperatório. Agravo provido. (TJSP. AgI n° 990100050060. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 06.04.2010)

 

No referido julgamento, destaca-se o seguinte trecho do acórdão:

 

“(…)

Ocorre que a Lei n° 11.101/2005 é expressa no sentido de que, só haverá convocação de assembleia-geral de credores para deliberar sobre o plano recuperatório se houver objeção.

Como não há dúvida de que não foi deduzida nenhuma objeção ao plano, a assembleia-geral não poderia ter sido convocada e, muito menos, realizada, mercê do que, a deliberação dos cinco credores é ineficaz e não pode ser acolhida como objeção.

Destarte, considerando-se que a doutrina é pacífica no sentido de que o juiz só deve convocar assembleia-geral de credores para deliberar sobre o plano se houver a apresentação de objeção, bem como em face da tranqüila jurisprudência a respeito do art. 57 da Lei n° 11.101/2005, na linha de que, enquanto não editada lei sobre parcelamento especial dos débitos fiscais, não se mostras razoável exigir-se apresentação das certidões negativas de débitos tributários, é de rigor que se aplique o art. 58, ‘in verbis’: ‘Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção de credor, nos termos do art. 55 desta Lei’. será provido o recurso para se conceder a recuperação judicial”.

(TJSP.  AgI n° 990100050060. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 06.04.2010

 

Conforme se observa, não havendo objeções ao plano é possível o deferimento da recuperação judicial sem a convocação da Assembleia Geral de Credores. Questão que desperta interesse refere-se à possibilidade de o juiz, constatando que a objeção é manifestamente inconsistente, indeferi-la e deixar de convocar a Assembleia Geral de Credores para a análise do plano. No caso, a lei prevê apenas que o juiz convocará a AGC havendo objeção de qualquer credor ao plano, nada dispondo a respeito da natureza ou conteúdo da objeção, deixando ao intérprete e aplicador da lei a solução para a questão: a simples apresentação de objeção ao plano por credor, independentemente de seu conteúdo e forma, determina a convocação da Assembleia Geral de Credores? Diante da complexidade e importância para o processo de recuperação judicial, a questão será objeto de análise específica no tópico seguinte.   

O sistema de aprovação extraordinária, conhecido como cram down, encontra-se disciplinado no art. 58, §1°, da Lei n° 11.101/2005, que estabelece ao juiz o poder de conceder a recuperação judicial ainda que o plano recuperatório não seja aprovado na forma prevista no art. 45, desde que preenchidos os requisitos legais. A aprovação extraordinária ocorre quando o plano não implicar tratamento diferenciado entre os credores da classe que o houver rejeitado e desde que, na mesma Assembleia Geral de Credores tenha obtido, de forma cumulativa: a) voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à AGC, independentemente de classes; b) a aprovação de 2 das classes de credores nos termos do art 45, existindo apenas duas classes de credores votantes, a aprovação de pelo menos uma delas; c) na classe que houver a rejeição, o voto favorável de mais de 1/3 dos credores, computados da norma dos §§1 ° e 2° do art. 45 da Lei n° 11.101/2005.

Os seguintes quadros, baseados nos exemplos utilizados por Adalberto Simão Filho,  representam uma hipótese de Assembleia Geral de Credores e permitem visualizar de forma prática a aplicação do cram down no processo de recuperação judicial:

 

Classes

N° de Credores

Valor do Crédito

Votos

 

Quorum para aprovação

Resultado

 

 

 

Classe I

Trabalhadores

Acidentários

 

200

 

 

R$500.000,00

 

Por cabeça:

Sim: 80

Não: 120

Por valor:

Sim R$300.000,00

Não R$200.000,00

 

 

Cabeças:

101 credores

 

Valor:

Não considerado

 

 

 

 

Rejeitado

 

 

Classe II

Credores com garantia real

 

 

 

100

 

 

 

R$2.000.000,00

 

Por cabeça:

Sim: 70

Não: 30

Por valor:

Sim R$1.400.000,00

Não R$600.000,00

 

 

Cabeças:

51 credores

 

Valor:

R$1.000.001,00

 

 

 

Aprovado

 

Classe III

Quirografários, Privilégio Especial, Privilégio Geral, Subordinados

Credores com garantia real pelo valor do crédito que excede o limite da garantia

 

 

 

 

 

300

 

 

 

 

 

R$8.000.000,00

 

Por cabeça:

Sim: 200

Não: 100

 

Por valor:

Sim R$5.000.000,00

Não R$3.000.000,00

 

 

Cabeças:

151 credores

 

 

Valor:

R$4.000.001,00

 

 

 

 

 

Aprovado

 

Totais

 

 

600

 

R$10.500.000,00

Sim:

R$6.700.000,00

Valor para o

cram down:

R$5.250,001,00

 

 Cram down

 

 

Requisitos legais

 (art. 58, §1°)

Resultados necessários

Resultados obtidos

 

Votos favoráveis de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à AGC, independentemente de classe

 

 

Valor total dos créditos presentes na AGC:

R$10.500.000,00

Resultado necessário:

R$5.250.001,00

 

 

Classe I: R$300.000,00

Classe II: R$1.400.000,00

Classe III: R$5.000.000,00

Total: R$6.700.000,00

 

 

Aprovação de 2 classes de credores nos termos do art 45

(Existindo apenas duas classes de credores votantes, a aprovação de pelo menos uma delas)

 

 

Necessidade de aprovação nas Classes I e II ou I e III ou II e III

 

Aprovado nas

Classes II e III

 

Na classe que houver a rejeição, o voto favorável de mais de 1/3 dos credores, computados da norma dos §§1 ° e 2° do art. 45.

Obs: plano não pode estabelecer tratamento diferenciado para os credores da classe que o houver rejeitado (art. 58, §2°)

 

 

Rejeição na Classe I –

67 credores deveriam aprovar

Rejeição na Classe II –

34 credores e R$666.667,00

Rejeição na Classe III –

101 credores e R$2.667.000,00

 

 

Aprovado na Classe I,  já que 80 credores foram favoráveis ao plano, sendo necessários os votos favoráveis de 67 credores

 

Resultado:

 

 

Cram Down

 

Concessão da Recuperação Judicial

 

 

Diante da possibilidade da aprovação extraordinária do plano de recuperação judicial, considerando a necessidade da análise dos resultados obtidos, a votação do plano recuperatório na Assembleia Geral de Credores deve ser realizada de forma a permitir a precisa identificação dos requisitos legais configuradores do cram down. Para tanto, deve o administrador judicial adotar as medidas necessárias e informar o juiz, se for o caso, o atendimento dos requisitos previstos no art. 58, §1°, da Lei n° 11.101/2005. 

O sistema de aprovação ordinário verifica-se quando são apresentadas objeções ao plano que determinam a convocação pelo juiz da Assembleia Geral de Credores para a análise do plano de recuperação e respectiva aprovação na forma prevista no art. 45 da Lei n° 11.101/2005. A aprovação do plano pode depender da realização de alterações apresentadas e discutidas na AGC. Referidas alterações são possíveis desde que haja a anuência expressa da recuperanda e que não impliquem na diminuição dos direitos exclusivamente dos credores ausentes, conforme expresso no art. 56, §3°, da Lei n° 11.101/2005.

Nas deliberações referentes ao plano de recuperação, vale lembrar que o art. 45, §3°, da Lei n° 11.101/2005 prevê que o credor não terá direito a voto e não será considerado para fins de verificação de quorum de deliberação se o plano de recuperação judicial não alterar o valor ou as condições originais de pagamento de seu crédito. A exclusão do direito de voto ao credor não abrangido pelo plano existe ainda que o seu crédito conste na relação de credores apresentada pelo administrador judicial ou no quadro geral de credores. Nesse sentido, a seguinte decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme trecho do Acórdão que teve como Relator o prestigiado Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças:

 

“2. (…)

Com a devida vênia, não há omissão, pois, como ficou dito, se o crédito do embargante não foi incluído no plano, as condições originais do contrato deverão ser respeitadas, podendo ele apresentar objeção, como lhe faculta o art. 55, mas, não terá o direito de voto, conforme o art. 45, § 3°.  Diante disso, nada impede que, vencido seu crédito, entre com execução contra a recuperanda ou requeira a sua falência, haja vista a intangibilidade de seus direitos de credor não incluído no plano. Só que votar, não lhe é permitido, como afirmado e decidido no acórdão.”                                    

(TJSP. Embargos de Declaração n° 990.10.142738-9/50000. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 19.10.2010)

 

A aprovação do plano recuperatório pela Assembleia Geral de Credores, nos termos legais, determina o deferimento da recuperação judicial pelo juiz, a quem não cabe apreciar a consistência do plano sob os aspectos econômicos ou financeiros. Atendidos os requisitos legais para a aprovação do plano pela AGC e estando em correspondência com o princípio da legalidade, o juiz deve deferir a recuperação judicial, fugindo de seu alcance a análise de questões econômicas ou financeiras, bem como a sua impressão pessoal sobre a viabilidade ou consistência do plano. Nesse sentido a seguinte decisão da Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que teve como relator o emérito Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças:

 

“Agravo. Recuperação judicial. Plano aprovado pelas três classes de credores pelo quorum previsto no art. 45 da Lei n° 11.101/2005. Aprovado o plano pela Assembleia- Geral de Credores o juiz não pode deixar de conceder a recuperação judicial por entender que o plano de recuperação não tem consistência econômico-financeira. Soberania da Assembléia de Credores para aprovar ou rejeitar o plano de recuperação. Agravo não provido.”

(TJSP. AgI 99010198774-0. Câm. Reservada à Falência e Recuperação. Rel Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ. 14.12.2010)

 

No referido acórdão, destaca-se o seguinte trecho:

 

“O agravante quer exatamente aquilo que a lei veda, ou seja, que o juiz substitua os credores, reunidos em assembleia-geral, e desconstitua o que eles – credores – soberanamente deliberaram. Em primeiro lugar, como tenho acentuado em casos dos quais sou relator, o art. 58 estatui que ‘o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano tenha sido aprovado pela assembléia geral de credores na forma do art. 45’. A lei não fala que o juiz poderá conceder, e sim imperativamente ordena que a recuperação seja concedida. Não há aí faculdade para o magistrado, quer de primeira ou de segunda instância, obviamente diante da natureza contratual que se deu à recuperação.

(…)

Ou seja, em outras palavras, as agravantes sustentam a inviabilidade econômicofinanceira do Plano, que, repita-se, foi aprovado pelas três classes de credores em Assembleia-Geral. Entretanto, como tem decidido a Câmara Especial, essa é matéria a ser deslindada pelos credores, em assembléia, e jamais pelo juiz, que não tem o direito, na nova lei, de deixar de

homologar o plano aprovado pelos credores, sobretudo e unicamente sob o argumento de que o mesmo é inviável (cf. Agravo de Instrumento n.° 561.271.4/2-00, da Comarca de Caieiras/Franco da Rocha, Rel. Des. PEREIRA CALÇAS, j. 30/07/2008; Agravo de Instrumento n.° 500.624.4/8-00, da Comarca de Matão, Rel. Des. LINO MACHADO, j. 26/03/2008; Agravo de Instrumento n.° 990.10.083220-4, da Comarca de Estrela do Oeste, Rel. Des. ELLIOT AKEL, j. 19/10/2010; Agravo de Instrumento n. ° 994.09.326142-7, da Comarca de São José do Rio Preto, Rel. Des. ARALDO TELLES, j. 06/07/2010; Agravo de Instrumento n. ° 994.09.319232-0, da Comarca de Sertãozinho, Rel. Des. ROMEU RICUPERO, j. 23/02/2010; Agravo de Instrumento n.° 580.611.4/4-00, da Comarca de Itapetininga, Rel. Des. BORIS KAUFFMANN, j. 04/03/2009).”

(TJSP. AgI 99010198774-0. Câm. Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ. 14.12.2010)

 

Ao tratar do tema, o insigne Desembargador Manoel Justino Bezerra Filho assevera:

 

“A assembléia geral, que no caso sob exame apenas será convocada se houver objeção, tem poderes para aprovar, alterar ou rejeitar o plano de recuperação. O juiz não está vinculado a tais decisões, mantendo evidentemente o exercício do poder jurisdicional; de qualquer forma, tratando-se de decisão tomada pela assembléia-geral de credores, deverá ser seguida pelo juiz, que, caso decida de forma contrária, deverá fundamentar suficientemente sua decisão.”

 

Contra a decisão que defere a recuperação judicial, nos termos do art. 59, §2°, da Lei n° 11.101/2005, caberá o recurso de agravo de instrumento, sem efeito suspensivo. Nos termos legais, possuem legitimidade para a interposição do recurso qualquer credor e o representante do Ministério Público. O consagrado doutrinador Fábio Ulhoa Coelho, ao tratar do recurso contra a decisão concessiva da recuperação judicial conclui:

 

“O objeto do recurso só pode dizer respeito ao desatendimento das normas legais sobre convocação e instalação da Assembléia ou quórum de deliberação. Nenhuma outra matéria

pode ser questionada nesse recurso, nem mesmo o mérito do plano de recuperação aprovado.”

 

Na Assembleia Geral de Credores, o credor pode comparecer e votar favoravelmente ou contra a proposta apresentada, como também pode se abster de votar. No caso, como deve ser  considerada  a abstenção de credor em deliberação referente ao plano de recuperação judicial? Considerando o princípio da preservação da empresa expresso no art. 47 da Lei n° 11.101/2005, a  abstenção do credor presente não deve ser interpretada de forma negativa em relação à aprovação do plano. Nesse sentido, o entendimento do ilustre Desembargador Alexandre Alves Lazzarini:

 

“À luz dos princípios do artigo 47 da Lei n° 11.101/05, em especial o da preservação da empresa, para atender à sua função social, tem-se que de fato a abstenção deve ser interpretada em sentido positivo pela aprovação do plano.

Esclarece-se:

Em uma votação é dado ao credor escolher a aprovação ou rejeição do plano. Optando o credor por se abster, na realidade expressa uma vontade de indiferença (ou na linguagem comum o ‘tanto faz’) pelo destino da empresa em recuperação.

Ora, o artigo 47, reforçado pelo artigo 58, §1°, além de princípios, importa em regras de interpretação. Ou seja, se para aquele que se abstém é indiferente o resultado da Assembléia-Geral de Credores, há que prevalecer o princípio da preservação da empresa, isto é, computa-se a abstenção, sempre, no sentido positivo da aprovação da empresa.

(…)

A abstenção, como anotado, tem dois sentidos, no sentido afirmativo (aprovação) tem como efeito a preservação da empresa e sua função social (manutenção do emprego, por exemplo) e, por conseqüência, a real possibilidade dos credores receberem ao menos parte do seu crédito; no sentido negativo (rejeição) não terá efeito algum, pois não haverá empresa, emprego e dificilmente os credores receberão algo de seu crédito.”

 

Nas deliberações referentes ao plano de recuperação judicial, destacam-se, em função dos diferentes entendimentos decorrentes do art. 49, §1°, da Lei n° 11.101/2005, as consequências da participação dos credores na Assembleia Geral. Referido dispositivo legal assegura aos credores da recuperanda a conservação de seus direitos em relação aos coobrigados, fiadores e obrigados de regresso, permitindo que os credores possam, mesmo com a recuperação judicial, promover a execução de seus créditos contra avalistas, endossantes e fiadores da recuperanda.

O art. 49, §1° permitiu o surgimento de quatro correntes distintas. A primeira delas prestigia o texto legal, assegurando ao credor exercer os seus direitos contra os coobrigados, conforme previsto em lei.  A segunda corrente mostra-se totalmente contrária ao disposto no art. 49, §1°, entendendo que os coobrigados também são beneficiados pela recuperação judicial, conforme se verifica abaixo:

 

“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – Acórdão que deu parcial provimento a agravo instrumento, para, após a garantia integral do juízo, suspender o andamento da execução contra os devedores solidários de empresa em recuperação judicial – Existência de omissão e contradição que ficam supridas com a complementação da fundamentação, mas sem o pretendido efeito infringente – Embargos de ambas as partes acolhidos em parte”.

Trecho do acórdão:

(…) Com a devida vênia das alegações da exequente, inclusive fundamentada em decisões desta C. 16ª Câmara de Direito Privado, não há que se falar em negativa de vigência dos dispositivos legais da nova Lei de Falências e Recuperações Judiciais (11.101/05), tendo em vista que o Acórdão fundamentou sua posição nas disposições do artigo 739-A do Código de Processo Civil, entendendo ser relevante a argumentação dos executados quanto à cobrança em duplicidade do crédito. Em nenhum momento o Acórdão mencionou a extinção da responsabilidade solidária dos agravantes, tanto que deu apenas provimento em parte ao agravo, desacolhendo a pretensão de extinção da execução. Não se trata de desrespeito às disposições legais que preservam as garantias do credor contra os coobrigados, mas sim de se estabelecer uma ordem lógica de preferência para cobrança da dívida, aguardando-se o resultado do processo de recuperação judicial, conforme o plano estabelecido na assembleia de credores. Nesse sentido, pertinente a transcrição de parte do Acórdão da Apelação n. 7.166.479-6 da 21ª Câmara de Direito Privado deste E. Tribunal, relator o Des. Souza Lopes, j . 31/10/2007:

“A questão de fundo é saber se, com o deferimento da recuperação judicial, o sócio da empresa que garante o contrato, ou mesmo títulos de crédito, é atingido, ou não, pelos efeitos daquela lei concedendo o benefício legal. A esse respeito, deve ser destacada a posição do ilustre Magistrado Mauro Conti Machado, que, em brilhante voto do Agravo de Instrumento n” 7.158.047-9, assinala: “A redação do artigo 6o da Lei 11.101 de 2005, ao falar em suspensão da obrigação com a decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial, suspende o curso da prescrição de todas as ações e execuções promovidas em face do devedor, inclusive contra aquelas dos credores particulares, dos sócios solidários, não quer dizer que suspende, também, as ações em face aos devedores solidários do devedor principal. A interpretação deve ser promovida de forma lógico-sistemática, com a adoção do principio teleológico, excluindo-se aquela que resulte no absurdo, e se é princípio elementar de hermenêutica que deve ser realizada visando os fins práticos que foram relevados pelo legislador no momento normogenético de criação da norma, deve-se perguntar, primeiro, se o devedor solidário principal confunde-se, aqui, com os credores particulares do sócio solidário.  Uma situação jurídica não leva naturalmente a outra. É princípio elementar de hermenêutica que a inclusão de um implica na exclusão do outro, onde a lei não distinguiu, não cabe ao intérprete fazê-lo, pois a norma jurídica não é um salto no vazio despida de valores, mas, sim, a regra que impõe, visando o bem comum, com a preservação do mínimo ético, que é a finalidade última do próprio Estado, no plano lógico, para explicar o fenômeno do direito. Assim, se é inequívoco que a norma quis considerar, neste caso, o credor particular do sócio solidário, cuja existência afeta também a massa objetiva que se formará com a falência e que, por injunção lógica, acarretará reflexos em concreto na recuperação judicial, que não se confunde com a do devedor solidário do devedor principal, logicamente, pois não se estará diante de uma situação jurídica, porém, diversa, inconfundível. ”

Portanto, não há como se concluir de forma diversa, ou seja, os sócios da empresa que obteve a recuperação judicial, com a homologação do plano para pagamento futuro de seus credores, devedores solidários que são, seja como avalistas, ou qualquer outra espécie de garante, são atingidos pelo efeito, repita-se, do benefício da recuperação judicial. Do contrário, estar-se-ia avalizando o absurdo de se ter a pessoa jurídica como beneficiária, enquanto os sócios, devedores solidários que são, sofreriam o prosseguimento de execução.” É certo que no mencionado julgamento da 21a Câmara, seus integrantes entenderam pela inexigibilidade do título exeqüendo, extinguindo por completo a execução, enquanto esta C. 16a Câmara adota uma posição mitigada, determinando apenas a suspensão da execução até que se tenha o desfecho da recuperação judicial. Contudo, o raciocínio lógico das fundamentações é exatamente o mesmo, qual seja, a impossibilidade de cobrança simultânea da mesma dívida em processos distintos. A extinção ou não da execução dependerá do resultado obtido nos autos da recuperação judicial.” (TJSP. Emb. de Declaração 991090015542. 16ª Câm. Dir. Privado. Rel. Windor Santos. DJ 06.04.2010)

 

A terceira corrente, adotada pela Câmara Reservada à Falências e Recuperação do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, prestigia o caráter contratual da recuperação judicial, estendendo os efeitos da novação aos coobrigados desde que prevista no plano de recuperação judicial e que os credores sujeitos aos seus efeitos a tenham aprovado sem qualquer restrição. No caso, os credores que não compareceram à Assembleia Geral, votaram contra ou se abstiveram não são atingidos pela previsão constante no plano, prevalecendo o disposto no art. 49, §1°, em relação a esses credores.

No caso, o plano de recuperação judicial deve conter cláusula expressa estabelecendo que a novação prevista no art. 59, caput, da Lei n° 11.101/2005 aplica-se aos coobrigados, devedores solidários, avalistas e fiadores. O Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças ressalta que as garantias pessoais de natureza patrimonial constituem direitos disponíveis, inexistindo qualquer empecilho legal para que os credores da recuperanda concordem ou discordem da cláusula extensiva dos efeitos da novação a coobrigados, fiadores e avalistas.

De acordo com essa terceira corrente, a novação prevista no plano em face das garantias fidejussórias não se aplica aos credores presentes que se abstiveram de votar o plano ou o rejeitaram e aos credores ausentes. Para que a novação seja aplicada aos coobrigados, excepcionando o disposto no art. 49, §1°, é necessária a anuência expressa dos credores, que voluntariamente concordam com a previsão excepcional presente no plano.  Nesse sentido as seguintes decisões:

 

“Recuperação judicial. Agravo de instrumento. Plano de recuperação judicial que contém cláusula que estende os efeitos da novação aos coobrigados, devedores solidários, fiadores e avalistas. Concessão do plano com aplicação do ‘cram down’ do art. 58, § 1° e incisos da LRF. A novação prevista como efeito da recuperação judicial não tem a mesma natureza jurídica da novação disciplinada pelo Código Civil. Pretensão de credor de acolhimento de sua objeção colimando a nulidade da cláusula extensiva da novação aos garantidores fidejussórios (fiadores e avalistas). Nulidade não reconhecida. Validade e eficácia da cláusula em face dos credores que expressamente aprovaram o plano, por se tratar de direito disponível, que ao assim votarem, renunciam ao direito de executar fiadores/avalistas durante o prazo bienal da “supervisão judicial”. Ineficácia da cláusula extensiva da novação aos coobrigados pessoais (fiadores/avalistas) em relação aos credores presentes à Assembleia-Geral que se abstiveram de votar, bem como aos ausentes do conclave assemblear. Evidente ineficácia da cláusula no que se refere aos credores que votaram contra o plano e, “a fortiori”, aos credores que formularam objeção relacionada com a ilegalidade da cláusula extensiva da novação. Agravo provido, em parte, para reconhecer a ineficácia da novação aos coobrigados por débitos da recuperanda, dos quais a agravante é a credora. Extensão dos efeitos deste julgamento aos credores ausentes, abstinentes e aos que formularam objeção à cláusula hostilizada”.

(TJSP. Ag.I. 5805514000. 10ª Câm. Direito Privado. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 19.11.2008).

 

 “Recuperação judicial – Coobrigados – Novação que não os atinge automaticamente – Ineficácia de eventual cláusula extensiva da novação aos garantidores em relação a credor que votou contra a aprovação do plano de recuperação – Precedentes da câmara – Suspensão das ações e execuções contra os coobrigados afastada – Agravo provido.”

(TJSP. AgI 0098863-45.2010.8.26.0000. Câm. Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Elliot Akel. DJ 23.11.2010)

 

“Recuperação judicial – Plano aprovado pela assembléia-geral – Coobrigados – Novação que não os atinge automaticamente – Ineficácia da cláusula extensiva da novação aos garantidores em se tratando de credor que votou contra a aprovação do plano – Precedentes da Câmara – Suspensão das ações e execuções contra os coobrigados afastada – Agravo provido. Recuperação judicial – Plano aprovado pela assembléia-geral – Previsão de liberação das garantias – Necessidade de aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia – Inocorrência de anuência, na espécie – Ineficácia da liberação – Precedentes da Câmara – Agravo provido.”

(TJSP. AgI 0084814-96.2010.8.26.0000. Câm. Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Elliot Akel. DJ 14.09.2010)

 

A quarta corrente corresponde a uma variação da terceira e foi desenvolvida pelo Desembargador Manoel Justino Bezerra Filho. De acordo com o ilustre falencista:

 

“o que se pretende aqui é firmar posição no sentido de que a aprovação expressa do credor só é necessária para o caso do §1° do art. 50 (supressão de garantia real), não havendo qualquer outro dispositivo que faça a mesma exigência para as demais ‘garantias’, entre elas, a prestada pelo fiador, endossante, avalista e garantidores fidejussórios em geral. Em consequência, a decisão da AGC acatando a liberação do coobrigado obriga aqueles que estão sujeitos à recuperação, independentemente da concordância expressa ou mesmo do comparecimento do credor garantido. Ou seja, a decisão da AGC obriga a todos os credores sujeitos à recuperação, mesmo os discordantes e os ausentes.”

 

A questão é controvertida e demonstra a importância da participação do credor na Assembleia Geral. Dentre os entendimentos apresentados, considerando a natureza contratual da recuperação judicial, conforme entendimento apresentado, parece que as duas últimas correntes apresentadas mostram-se mais adequadas ao caso concreto, cabendo apenas definir o alcance do disposto no plano em relação aos credores ausentes, abstinentes e que votaram contrariamente ao plano em caso do mesmo ser aprovado. De qualquer forma, diante das repercussões decorrentes, para assegurar os seus direitos contra os coobrigados, os credores devem ficar atentos ao conteúdo do plano para a definição da votação na Assembleia Geral de Credores.

 

6. A apresentação de objeções ao plano e a convocação da Assembleia Geral de Credores no processo de recuperação judicial

 

A Lei n° 11.101/2005, conforme visto, permite o deferimento da recuperação judicial sem a convocação da Assembleia Geral de Credores. Nos termos dos arts. 56, caput e 58, caput, não havendo objeção ao plano recuperatório o juiz concederá a recuperação judicial se cumpridas as exigências legais. De acordo com o sistema previsto pelo legislador a existência da AGC no processo de recuperação judicial não é obrigatória. A ausência da apresentação de objeções pelos credores ao plano é interpretada como aprovação tácita do plano, tornando totalmente desnecessária a realização da Assembleia, afinal, se os credores não apresentaram objeções é porque concordaram com os termos e condições previstas no plano recuperatório, sendo possível antecipar, nos termos legais, o resultado da análise do plano na AGC.

De acordo com o art. 56, caput, da Lei n° 11.101/2005, a existência de uma única objeção, apresentada por qualquer credor, determina a convocação da Assembleia Geral de Credores pelo juiz para deliberar sobre o plano de recuperação judicial. Considerando a abrangência da norma (qualquer credor), até mesmo os titulares de créditos não sujeitos à recuperação (art. 49, §§3° e 4°), assim como os credores não sujeitos ao plano recuperatório (art. 45, §3°), credores que tiveram o crédito impugnado (art. 8°), bem como os arrolados no art. 43 da Lei n° 11.101/2005 possuem legitimidade para a apresentação de objeções ao plano e, em consequência, provocar a convocação da Assembleia Geral de Credores para analisá-lo.

No prazo improrrogável de 60 dias contados da publicação da decisão que defere o processamento da recuperação judicial o devedor deve apresentar em juízo o plano de recuperação. Nos termos do art. 53, parágrafo único, da Lei n° 11.101/2005, apresentado em juízo o plano recuperatório, o juiz ordenará a publicação de edital contendo aviso aos credores sobre o recebimento do plano e fixará o prazo para a manifestação de eventuais objeções. O art. 55, caput, prevê que qualquer credor poderá manifestar ao juiz sua objeção ao plano no prazo de 30 dias contados da publicação da relação de credores apresentada pelo administrador judicial (art. 7, §2°). Se na data da publicação da  relação de credores do administrador judicial ainda não foi publicado o edital avisando aos credores sobre a apresentação do plano, o prazo de 30 dias será contado a partir da publicação deste edital (art. 53, parágrafo único).

Considerando a abrangência conferida para a apresentação de objeções e os efeitos decorrentes para o processo de recuperação judicial, questão que desperta interesse refere-se à possibilidade de o juiz, constatando a existência de objeção manifestamente inconsistente ou apresentada para a finalidade exclusiva de gerar a prorrogação desnecessária do processo de recuperação, indeferi-la e deixar de convocar a Assembleia Geral de Credores para a análise do plano. O art. 56 prevê que o juiz convocará a AGC havendo objeção de qualquer credor ao plano, nada dispondo a respeito da natureza ou conteúdo da objeção, mostrando-se necessário saber se a simples apresentação de objeção ao plano por credor, independentemente de seu conteúdo e forma, determina a convocação da Assembleia Geral de Credores pelo juiz.

 A questão constitui matéria enfrentada pela doutrina. Trata-se de questão relativamente recente e que desperta interesse em razão da apresentação de objeções, em alguns casos, ocorrer como mero cumprimento de protocolo de conduta e, em outros casos, como ato que pode caracterizar, até mesmo, abuso de direito. De qualquer forma, as consequências decorrentes da apresentação de objeções no processo de recuperação judicial ressaltam a necessidade do juiz e do administrador judicial analisarem o conteúdo das objeções a fim de impedir que referida prerrogativa legal conferida  aos credores do devedor não constitua um meio de procrastinar indevidamente o processo.

O art. 55 da Lei n° 11.101/2005 prevê que qualquer credor pode apresentar objeção ao plano. Entretanto, é evidente que a objeção deve conter  fundamentos relevantes que justifiquem a sua apresentação, devendo o objetor especificá-los e comprová-los de forma adequada, sob pena da celeridade processual prevista pelo legislador esvair-se diante da apresentação de objeções manifestamente inconsistentes ou meramente protelatórias, que em razão do disposto no art. 56, caput, tenderão a conduzir o juiz a convocar, muitas vezes desnecessariamente, a Assembleia Geral de Credores.  A objeção deve ser elaborada de forma criteriosa e responsável pelo credor, diante da possibilidade de configurar abuso de direito e, dependendo do caso, caracterizar até mesmo litigância de má-fé, em razão dos interesses relacionados e do efeito previsto no caput do art. 56.

A determinação legal permite o surgimento das seguintes indagações: a) a apresentação de objeções por credores não sujeitos ao plano exige, necessariamente, a convocação da Assembleia Geral de Credores pelo juiz?  b) a apresentação de objeções contendo elementos que podem ser facilmente solucionados diante de manifesto equívoco exige necessariamente a convocação da Assembleia Geral de Credores pelo juiz? São questões de grande complexidade que exige a análise cuidadosa e voltada para a finalidade da lei, diante dos interesses envolvidos. A princípio, considerando exclusivamente o disposto no art. 56, caput, a resposta seria positiva para as duas perguntas, diante da necessidade do juiz atender à formalidade legal. Entretanto, realizada a análise sistemática da lei,  a clareza do art. 56 desaparece e a certeza da afirmativa antes apresentada não resiste ao disposto no art. 45, §3°, da Lei n° 11.101/2005:

 

“Art. 45.

§3°. O credor não terá o direito a voto e não será considerado para fins de verificação de quorum de deliberação se o plano de recuperação judicial não alterar o valor ou as condições originais de pagamento de seu crédito”

 

Nesse sentido, assevera o consagrado Desembargador Manoel Justino Bezerra Filho, ao comentar o art. 45 da Lei n° 11.101/2005:

 

“O §3° estipula, ainda, que apenas tem direito a voto nas deliberações sobre o plano de recuperação o credor cujo crédito vier a ser alterado em seu valor ou nas condições de pagamento. Se o crédito não sofre qualquer alteração, o respectivo credor não tem direito a voto, além de não poder ser computada sua presença para fins de verificação de quorum”. 

                               

De acordo com os dispositivos apresentados, qualquer credor poderá apresentar objeção ao plano, mas, não é qualquer credor que poderá votar na Assembleia Geral de Credores nas deliberações referentes ao plano. A convocação da Assembleia Geral de Credores estabelece ônus para a recuperanda e também para os credores sujeitos ao plano, retardando o deferimento da recuperação judicial e o respectivo início dos pagamentos previstos, além das despesas impostas à Recuperanda (convocação e realização da AGC) e aos credores (viagens e hospedagens).

O respeitado jurista Adalberto Simão Filho, ao tratar do sistema de aprovação tácita do plano de recuperação judicial, enfrenta a questão, apresentando entendimento inovador:

 

“Este sistema é criado a partir do artigo 55 da lei, que concede a qualquer credor a possibilidade de manifestar ao juiz a sua objeção ao plano de recuperação judicial. O credor poderá objetar o plano, no curso do prazo de 30 (trinta) dias contados ou da publicação da relação de credores de que trata o § 2º do artigo 7º, ou da publicação do aviso do artigo 53 sobre o recebimento do plano de recuperação, caso na primeira hipótese ainda não se tenha o plano nos autos.

Esta objeção ao plano de recuperação, quando formulada nos moldes da lei, leva à necessidade de convocação de Assembleia Geral de credores por parte do Juiz.

Contudo, a lei não menciona acerca da natureza da objeção que possa levar o juiz à convocação da assembleia. Será qualquer objeção de ordem formal ou material que gerará esta conseqüência? Pensamos que não. Pode haver objeção que não se relaciona efetivamente ao plano de recuperação, mas sim a questões de diversas ordens que possam envolver o credor que objetou e a devedora, concernentes ao negócio jurídico subjacente.

Ainda, pode ser apresentada como objeção, alguma inconformidade por parte de credor que sequer é concorrente na recuperação judicial.

Pode ainda o devedor, prontamente, refutar os argumentos de objeção a demonstrar que os mesmos não são válidos, gerando o conformismo daquele que objetou.

Nestes casos e assemelhados, entendemos pela desnecessidade da convocação da assembleia de credores por parte do juiz.

A objeção tem aqui a intelecção de contrariedade e esta contraposição deve ser formulada pelo credor diretamente sobre o plano de recuperação judicial, seu conteúdo, consistência e fundamento, gerando assim, a necessidade de convocação de Assembleia Geral.

Todavia, uma vez não havendo objeção de qualquer credor ou, ainda, solucionados os temas que possam ter gerado objeção com uma posição favorável daquele que objetou, após o curso do prazo previsto no artigo 55, o juiz concederá a recuperação judicial, por ter entendido ter sido o plano aprovado tacitamente. A este conjunto de providências que redundam na aprovação do plano, demos a denominação de sistema de aprovação tácita e o seu fundamento se encontra na primeira parte do caput do artigo 58 da lei”.                 

 

Considerando a conseqüência decorrente da apresentação de objeção ao plano, que pode ser realizada por qualquer credor, o juiz deve analisar o conteúdo da objeção para verificar se a mesma apresenta fundamentos relevantes justificadores da sua apresentação, devendo o objetor especificá-los e comprová-los de forma adequada, do contrário, as objeções ao plano tornar-se-ão meios meramente procrastinatórios nos processos de recuperação judicial. O  art. 56 da Lei n° 11.101/2005 deve ser interpretado em consonância com os demais dispositivos legais, de forma a não servir de meio protelatório a favor de devedor mal intencionado ou para atender pretensões infundadas de credor, em detrimento dos legítimos interesses dos demais credores. 

Nesse contexto, ressalta-se a importância do juiz na identificação das referidas questões. A Lei n° 11.101/2005 atribui poderes, funções e atribuições maiores e mais amplos ao juiz na condução do processo de recuperação da empresa. Nesse sentido, o art. 58, §1°, demonstrando que o juiz mantém o poder de decisão nos autos, prevê situação na qual, mesmo rejeitado o plano pela Assembleia Geral de Credores, o juiz poderá conceder a recuperação pretendida pelo devedor. Ao tratar da atuação do juiz no processo de recuperação judicial, o célebre jurista Jorge Lobo ressalta:

 

“Na ação de recuperação judicial, o juiz exerce poder-fim, portanto de cunho jurisdicional, por exemplo, nas hipóteses dos arts. 52, caput; 55, caput; 56, §4°; 58, caput e §1°; 63; exerce poder-meio, por conseguinte instrumental, por exemplo, nas hipóteses dos arts. 51, §§ 1° e 3°; 52, III e V e §1°; 53, parágrafo único; 65, caput e § 2°, e exerce poder administrativo, por exemplo, nas hipóteses dos arts. 52, I, II e IV, §1°; 60; 66; 69, parágrafo único.

É curial que, ao exercer os poderes de caráter jurisdicional, instrumental ou administrativo, o juiz não é um órgão passivo, mero homologador das decisões da assembleia geral ou do comitê de credores ou do administrador judicial, pois, ao ordenar o processamento da ação, proferir despachos, decisões e sentenças, superintender a administração da empresa em crise, enfim, presidir o processo de recuperação, deve fazê-lo com tirocínio, competência e plena liberdade, formando sua convicção, seu ‘livre convencimento’, de acordo com as provas dos autos, ciente de que seus atos estão sujeitos a recurso de agravo.”     

 

Manoel Justino Bezerra Filho, ao comentar o art. 56 da Lei n° 11.101/2005, ressalta os poderes do juiz para verificar se as objeções apresentadas são suficientes para motivar a convocação da Assembleia Geral de Credores:

 

“Terá o juiz que se valer de seu poder de direção do processo e examinar, para formação de conhecimento provisório sobre a viabilidade (ou não) de existência do crédito e, a partir da convicção, também provisória, que formar, decidir se deve ou não convocar a assembléia-geral”

 

Ressaltando a necessidade de ser atribuído ao julgador atuação além dos limites literais da lei para assegurar o princípio da preservação da empresa nos processos de recuperação judicial, ressaltam-se as seguintes decisões da Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

 

“Ao julgador há de ser dado certo campo de atuação além dos limites literais da lei para que prevaleça o princípio da manutenção da empresa que revele possibilidade de superar a crise econômico-financeira pela qual esteja passando.”

(TJSP, AgI. 994.09.319947-8. Câm. Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Lino Machado. DJ 06.04.2010)

 

“Agravo de Instrumento Recuperação Judicial – Plano não aprovado pelos credores com garantia real – Acordo posterior com os dissidentes – Preservação da empresa. Ao julgador há de ser dado certo campo de atuação além dos limites literais da lei para que prevaleça o princípio da manutenção da empresa que revele possibilidade de superar a crise econômico-financeira pela qual esteja passando. Agravo desprovido.”

(TJSP. AgI 990100443089. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Lino Machado. DJ 14.12.2010)

 

Em consonância com os entendimentos destacados e de acordo com a interpretação sistemática da Lei n° 11.101/2005 prestigiada pelo Superior Tribunal de Justiça, destinada a assegurar o êxito da recuperação judicial, nos termos do art. 47, ressalta-se a inovadora decisão do ilustre Magistrado Ronaldo Guaranha Merighi:

 

“Acontece que os créditos dos que objetaram não sofreram modificação alguma por conta do plano de recuperação. Vale dizer: mantiveram-se nas condições originalmente contratadas, conforme o disposto no §2º, primeira parte, do art. 49, da Lei 11.101/05. Ora, não obstante o disposto no art. 55, evidentemente só pode objetar o credor que tenha interesse jurídico. E esse interesse, pelo tipo de crédito, pela não alteração pelo plano e pelo que foi objetado, não se verificou na situação vertente. Logo, efetivamente, o disposto no art. 56 deve ser interpretado em consonância com o disposto no art. 45, §3°. Afinal, o credor não sujeito ao plano, que não tem direito a voto e não é considerado para fins de quorum, só de modo excepcionalíssimo, poderia gerar o dever de convocação de assembleia. Nunca no caso concreto, que as objeções são flagrantemente inconsistentes. (…)

Em outras palavras, os credores que tinham interesse jurídico de oferecerem objeção e não o fizeram aprovaram tacitamente o plano e a convocação imotivada da assembleia prejudicaria não só interesses da recuperanda mas também destes próprios credores. No mais, invocando como razão de decidir os argumentos alinhavados pelo Administrador, INDEFIRO as objeções pelos fundamentos já alinhavados e DEIXO DE CONVOCAR A ASSEMBLEIA de credores de que cuida o art. 56, da Lei de Regência.”

(Processo n° 358.01.2009.003284-3. 3ª Vara Judicial de Mirassol, SP. Mag. Ronaldo Guaranha Merighi. DJ. 12.03.2010).

 

Conforme se verifica, a simples apresentação de objeções ao plano não deve constituir pressuposto inarredável para a convocação da Assembleia Geral de Credores. Muitas vezes as objeções abrangem questões que podem ser facilmente esclarecidas sem a convocação da AGC. Diante de objeções manifestamente inconsistentes pelos equívocos dos seus conteúdos, o juiz deve, visando à celeridade processual, atender aos interesses dos credores e da própria recuperação judicial, buscar soluções que permitam o saneamento dos pontos controvertidos.

Considerando os poderes conferidos ao juiz, uma vez constatado que as objeções apresentam pontos que podem ser solucionados sem a convocação da AGC, parece que a determinação judicial para a manifestação da recuperanda e do próprio administrador judicial sobre as objeções pode constituir uma forma eficiente para solucionar os pontos controvertidos e evitar, muitas vezes, a convocação desnecessária da Assembleia Geral de Credores. Entretanto, referido entendimento encontra oposição, destacando-se a posição do prestigiado doutrinador Fábio Ulhoa Coelho:

 

“O processamento da objeção ao plano de recuperação é simples.

Na verdade, não cabe ao juiz apreciar o conteúdo da objeção ou decidi-la. A competência para tanto é de outro órgão da recuperação judicial: a Assembléia dos Credores.

Desse modo, ao receber qualquer objeção, o juiz deve limitar-se a convocar a Assembléia.”

 

Procedendo-se a análise da questão no âmbito prático, imagine-se uma objeção apresentada por credor não sujeito ao plano que discorde do prazo de parcelamento apresentado e da ausência da previsão de pagamento de juros e correção monetária por entender, equivocadamente, estar o seu crédito sujeito ao plano. No caso, constatada a inconsistência da objeção, o juiz pode determinar que a recuperanda e o devedor se manifestem no processo a fim de demonstrar a não sujeição do crédito do objetor ao plano, assegurando ao credor, ciente da não sujeição do seu crédito às condições previstas no plano, a cobrança imediata do respectivo crédito de acordo com as condições originalmente contratadas.

No caso, se o juiz proceder conforme indicado, deixando de convocar a Assembleia Geral de Credores por entender solucionada a questão referente à objeção manifestamente inconsistente, concederá a recuperação judicial diante da aprovação tácita do plano pelos credores sujeitos aos seus efeitos, que deixaram de apresentar objeções. Na hipótese de o credor objetor, ou mesmo outro credor, discordar da decisão judicial que defere a recuperação judicial sem a convocação da Assembleia Geral, poderá interpor o recurso de Agravo de Instrumento para expor o seu inconformismo ao Tribunal. O procedimento previsto, ao mesmo tempo que permite ao juiz do processo de recuperação judicial, nos termos dos arts. 125 e seguintes do Código de Processo Civil, afastar objeções manifestamente inconsistentes ou meramente protelatórias para assegurar a celeridade processual mediante a ausência da convocação de uma Assembleia Geral de Credores totalmente desnecessária, também permite que o credor insatisfeito com a decisão judicial apresente o recurso de Agravo de Instrumento. 

Por outro lado, se houvesse a convocação da Assembleia Geral, o credor objetor não teria direito a voto na AGC e o seu crédito não seria considerado, nos termos do art. 45, §3°, nem mesmo para a verificação do quorum de deliberação sob o plano. A Assembleia Geral seria convocada em razão da objeção apresentada por um credor que não poderia, por meio do seu voto, aprovar, alterar ou rejeitar o plano apresentado, mostrando-se, assim, totalmente desnecessária. Convocada a AGC em razão da aludida objeção, os credores sujeitos ao plano que já o aprovaram tacitamente, mediante a ausência da apresentação de objeções, seriam convocados para participarem da AGC para votarem no plano com o qual já haviam concordado, lembrando que a participação na AGC exige despesas com viagens, alimentação, hospedagem, dentre outros ônus impostos aos credores.

Conforme exposto em outra oportunidade, mostra-se adequado o entendimento em que prevalece o poder jurisdicional do juiz do processo de recuperação judicial a fim de identificar as objeções manifestamente inconsistentes e meramente protelatórias, em prestígio à celeridade e à economia processual, bem como ao interesse dos credores e à finalidade da recuperação judicial, prevista no art. 47 da lei de regência. Entretanto, a redação do art. 56, caput, pode constituir obstáculo à sua concretização se não houver por parte dos Tribunais a atenção necessária na busca da aplicação sistemática da Lei n° 11.101/2005, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça. 

A questão apresentada foi apreciada pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, tendo a Câmara Reservada à Falência e Recuperação valorizado o atendimento à formalidade prevista no art. 56, caput, da Lei n° 11.101/2005, mediante a necessidade da realização de Assembleia Geral de Credores em razão de objeção apresentada por credor não sujeito ao plano de recuperação. Na objeção o credor discordava da forma de pagamento prevista no plano, que por não abranger o seu crédito, retirava-lhe o direito de voto para a análise do plano recuperatório na AGC. Referida decisão foi assim ementada:

 

 “Agravo. Recuperação Judicial. Credor não incluído no plano de recuperação judicial que apresenta objeção. Juiz que não convoca assembléia-geral de credores e concede a recuperação judicial. Inteligência do art. 55 ‘caput’ que outorga, a qualquer credor, o direito de manifestar objeção ao plano. O credor cujo crédito não for alterado no valor e na forma de pagamento pelo plano não terá direito a voto e não será considerado para fins de quorum de deliberação. A apresentação de objeção ao plano por credor não afetado pelo plano impõe ao juiz a obrigação de convocar a assembléia geral prevista no art. 56. Agravo

provido.”

(TJSP. AgI 99010142738-9. Câm. Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 06.07.2010)

 

7. O prazo legal para a realização da Assembleia Geral de Credores e o prazo previsto no art. 6°, §4°, da Lei n° 11.101/2005

 

De acordo com o art. 56, §1°, da Lei n° 11.101/2005, a data designada para a realização da  Assembleia Geral de Credores não pode ultrapassar o prazo de 150 dias contados do deferimento do processamento da recuperação judicial. A finalidade do legislador de atribuir celeridade ao processo mediante a fixação do referido prazo, embora louvável e em consonância com os demais prazos previstos na Lei n° 11.101/2005, dificilmente é cumprido em razão dos obstáculos decorrentes da atual estrutura forense,  levando Manoel Justino Bezerra Filho a afirmar que a realização da AGC no prazo legal é de “impossível cumprimento”, afinal:

 

“(…), entre o despacho que deferiu o processamento da recuperação (art. 52) e a apresentação do plano de recuperação (art. 53) já se passaram 60 dias; entre a apresentação do plano de recuperação e o prazo final para objeções passaram-se mais 30 dias (art. 55), prazo que eventualmente pode ser bastante superior a 30 dias (parágrafo único do art. 55). Ante a acentuada quantidade de providências processuais que devem ser tomadas, mesmo que sejam feitas com a maior rapidez possível, pode-se admitir um decurso mínimo de pelo menos, outros 30 dias, completando-se assim 120 dias. Tudo isto supondo-se que as providências cartorárias sejam tomadas com absoluta prontidão, o que se sabe que não ocorre, tendo em vista a realidade do excesso de trabalho dos desaparelhados cartórios judiciais.

Portanto, na verdade, o juiz deverá designar a data da realização da assembléia para dentro dos próximos 30 dias, o que, pode-se afirmar, é de impossível cumprimento. Observe-se ainda que se está imaginando um sistema absolutamente ideal, com número de processos razoável por juiz, com infra-estrutura suficiente e com inexistência de qualquer imprevisto, situação que quem atua no dia-a-dia forense sabe inexistente.”  

 

O descumprimento do prazo de 150 dias para a realização da Assembleia Geral de Credores não possui consequências previstas na Lei n° 11.101/2005, entretanto, a ausência da AGC para deliberar sobre o plano no prazo legal apresenta desdobramentos decorrentes do disposto no art. 6º, §4°, pelo qual em hipótese alguma a suspensão das ações e execuções excederá o prazo improrrogável de 180 dias, contados do deferimento do processamento da recuperação judicial. Assim, a realização da AGC após o prazo de 150 dias e em data superior a 180 dias, nos termos legais, concorrerá com o restabelecimento do direito dos credores de iniciarem ou continuarem suas ações e execuções. Dependendo das providências tomadas pelos credores nos processos individuais, os meios de recuperação previstos no plano, ainda não apreciado pela AGC, serão ineficientes e o êxito da recuperação judicial estará em risco.

De acordo com o art. 6°, caput, da Lei n° 11.101/2005, o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário. Entretanto, o §4° do referido art. 6° prevê que a suspensão prevista em hipótese nenhuma excederá o prazo de 180 dias contado do deferimento do processamento da recuperação judicial , restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial.

Conforme se constata, o legislador estabeleceu prazos que se encontram dependentes entre si para o êxito da recuperação judicial e, a partir do momento em que o plano de recuperação judicial não é aprovado pela Assembleia Geral de Credores antes do prazo de 180 dias do deferimento do processamento da recuperação judicial, a novação prevista no art. 59 da Lei n° 11.101/2005 não se efetiva e o devedor em crise fica exposto as consequências decorrentes do restabelecimento do direito dos credores iniciarem ou continuarem as ações e execuções.

Ao estabelecer prazos legais dependentes e harmônicos entre si, o legislador criou um sistema que na teoria permite que o devedor em crise tenha chances de obter êxito na recuperação judicial, entretanto, o prazo legal de 180 dias para a suspensão das ações e execuções, previsto no art. 6°, §4°, da Lei n° 11.101/2005, mostra-se insuficiente diante das dificuldades práticas em conseguir obter a realização da Assembleia Geral de Credores para a análise do plano em 150 dias do deferimento do processamento da recuperação judicial. A partir do momento que o prazo previsto para a realização da AGC não é cumprido, todo o sistema previsto pelo legislador torna-se desfavorável à recuperanda a partir da superação do prazo de 180 dias sem a aprovação do plano de recuperação judicial.

Além da repercussão perante os créditos sujeitos à recuperação judicial, o prazo de 180 dias previsto no art. 6°, §4°, também repercute negativamente perante os créditos excluídos da recuperação judicial pelos §§ 3° e 4°, art. 49, da Lei n° 11.101/2005, já que o exíguo prazo legal de 180 dias não é suficiente para permitir a renegociação perante os titulares de créditos decorrentes de alienação fiduciária, arrendamento mercantil e adiantamento de contrato de câmbio para exportação, colocando em risco o êxito de muitas recuperações judiciais no país. Os problemas decorrentes do prazo previsto no art. 6°, §4°, da Lei n° 11.101/2005 exigem adequações, que vem sendo aplicadas pelos tribunais brasileiros em meio a inúmeras divergências em razão dos fortes conflitos de interesses que o tema contempla.

Considerando as dificuldades encontradas nos processos de recuperação judicial, a fim de assegurar o êxito do instituto recuperatório no país, a suspensão das ações individuais, nos termos do art. 6°, caput, da Lei n° 11.101/2005, deve ser mantida mesmo após o decurso do prazo de 180 dias, diante da dificuldade prática na realização da Assembléia Geral de Credores para a aprovação do plano no prazo legal de 150 dias. Nesse sentido, a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça:

 

“FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO JUDICIAL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO. AJUIZAMENTO ANTERIOR. LEI 11.101/2005. SUSPENSÃO. PRAZO 180 (CENTO E OITENTA) DIAS. PLANO. APROVAÇÃO. IMPROVIMENTO.

  1. Salvo exceções legais, o deferimento do pedido de recuperação judicial suspende as execuções individuais, ainda que manejadas anteriormente ao advento da Lei 11.101/2005.
  2. Em homenagem ao princípio da continuidade da sociedade empresarial, o simples decurso do prazo de 180 (cento e oitenta) dias entre o deferimento e a aprovação do plano de recuperação judicial não enseja retomada das execuções individuais quando à pessoa jurídica, ou seus sócios e administradores, não se atribui a causa da demora.” 

(STJ. RE 1.193.480–SP. Rel. Min. Aldir Passarinho Junior. DJ 05.10.2010)

 

Considerando a possibilidade da propositura de ações e o prosseguimento das existentes após o prazo de 180 dias, diante das medidas que podem ser deferidas nos processos individuais que atingem o patrimônio da devedora em recuperação judicial, surgiram decisões que objetivam a preservação do patrimônio da recuperanda a fim de assegurar o êxito da recuperação judicial, nos termos do art. 47 da Lei n° 11.101/2005, conforme se observa na seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça:

 

“CONFLITO DE COMPETÊNCIA – RECUPERAÇÃO JUDICIAL – SUSPENSÃO DAS AÇÕES E EXECUÇÕES CONTRA O DEVEDOR – COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO – PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA – CONFLITO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO.

1. A competência para processar e julgar as ações e execuções por força do art. 6°, caput, da Lei 11.101/2005 é do juízo da recuperação judicial, ainda que iniciadas antes do deferimento daquele pedido, ressalvadas as hipóteses legais, que não se verificam no caso concreto.

2. O princípio da preservação da empresa, insculpido no art. 47 da Lei de Recuperação e falência, preconiza que ‘A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica’. Motivo pelo qual, sempre que possível, deve-se manter o ativo da empresa livre de constrição judicial em processos individuais.

3. O destino do patrimônio da empresa-ré em processo de recuperação judicial não pode ser atingido por decisões prolatadas por juízo diverso daquele da Recuperação, sob pena de prejudicar o funcionamento do estabelecimento, comprometendo o sucesso de seu plano de recuperação.”     

(STJ. CC 101.552 – AL. Rel. Min. Honildo Amaral de Mello Castro. DJ 23.09.2009).

 

Portanto, de acordo com o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça e da Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o ativo da empresa deve ser mantido livre de constrição judicial em processos individuais e o destino do patrimônio da recuperanda não pode ser atingido por decisões prolatadas por juízo diverso daquele da recuperação, sob pena de prejudicar o êxito da recuperação judicial, conforme se verifica nas seguintes decisões:

 

“Agravo de instrumento. Cumprimento de sentença (execução). Decisão que, em face de desconsideração de personalidade jurídica de empresa devedora, reconhece a responsabilidade de empresa em recuperação judicial (Parmalat) e determina a penhora do faturamento da recuperanda e nomeia administrador para o cumprimento da medida. Inadmissibilidade. Competência funcional e absoluta do juízo onde se processa a recuperação judicial para promover execução que implique constrição de bens ou ativos da recuperanda. A decisão que desconsidera a personalidade jurídica de sociedade devedora (terceira) para atingir o patrimônio social da sociedade recuperanda é incidente de execução, que se insere na exclusiva competência do juízo da recuperação judicial. Agravo provido para revogar a decisão.”

(TJSP. AgI n° 994092999845. Câmara Reservada à Falência e Recuperação. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 19.10.2010).

 

“CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. SUSPENSÃO DAS AÇÕES E EXECUÇÕES. PRAZO DE CENTO E OITENTA DIAS. USO DAS ÁREAS OBJETO DA REINTEGRAÇÃO PARA O ÊXITO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO. 
1.  O caput do  art. 6º, da Lei 11.101/05 dispõe que "a decretação da falência ou deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário". Por seu turno, o § 4º desse dispositivo estabelece que essa suspensão "em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação".
2. Deve-se interpretar o art. 6º desse diploma legal de modo sistemático com seus demais preceitos, especialmente à luz do princípio da preservação da empresa, esculpido no artigo 47, que preconiza: "A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica".
3. No caso, o destino do patrimônio da empresa-ré em processo de recuperação judicial não pode ser atingido por decisões prolatadas por juízo diverso daquele da recuperação, sob pena de prejudicar o funcionamento do estabelecimento, comprometendo o sucesso de seu plano de recuperação, ainda que ultrapassado o prazo legal de suspensão constante do § 4º do art. 6º, da Lei nº 11.101/05, sob pena de violar o princípio da continuidade da empresa.
4. Precedentes: CC 90.075/SP, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ de 04.08.08; CC 88661/SP, Rel. Min, Fernando Gonçalves, DJ 03.06.08.
5. Conflito positivo de competência conhecido para declarar o Juízo da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Foro Central de São Paulo competente para decidir acerca das medidas que venham a atingir o patrimônio ou negócios jurídicos da Viação Aérea São Paulo - VASP.
(STJ. CC 79170/SP. Rel. Min. Castro Meira. S1 Primeira Seção. DJ 10.09.2008)”           

 

Cumpre ressaltar que a competência funcional e absoluta do juízo onde se processa a recuperação judicial para promover execução que implique constrição de bens ou ativos da recuperanda não corresponde à aplicação da regra do juízo universal, existente na falência mas que não se aplica no processo de recuperação judicial. Sobre o tema, merece destaque o seguinte trecho do voto do Ilustre Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças, no Agravo de Instrumento n° 994092999845:

 

“(…)

Importa ressaltar, por amor à precisão dos conceitos, que não se trata de incidência da regra do juízo universal da falência, a qual não se aplica ao processo de recuperação judicial, mas sim, do entendimento consagrado, tanto no Excelso Supremo Tribunal Federal como no Egrégio Superior Tribunal de Justiça, sobre a necessidade de coordenação dos atos de execução que, por qualquer forma, possam atingir patrimônio de empresa em recuperação judicial, sob pena de frustração do instituto que se fundamenta no princípio constitucional da função social da empresa.”

(TJSP. AgI n° 994092999845. Câmara Reservada à Falências e Recuperação. Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças. DJ 19.10.2010)

 

As decisões judiciais apresentadas demonstram que a Lei n° 11.101/2005 deve ser aplicada em consonância com a finalidade prevista em seu art. 47. Conforme se constata, em vários pontos o sistema idealizado pelo legislador exige a necessidade de adequações para que a superação da crise por meio do importante instituto da recuperação judicial alcance o êxito que motivou a sua criação. Não se trata de decisões e entendimentos contrários à lei, mas, da aplicação da hermenêutica jurídica destinada a assegurar a efetiva aplicação do principal dispositivo da legislação, que para alguns corresponde ao espírito da lei, sendo apresentado por outros como o coração da lei, diante da sua importância para a recuperação judicial.

  

Bibliografia

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BEZERRA FILHO, Manoel Justino. A responsabilidade do garantidor na recuperação judicial do garantido. In: Revista do Advogado – Recuperação Judicial: temas polêmicos. Ano XXIX. n° 105. São Paulo: AASP. Setembro de 2009.

______________. Nova Lei de Recuperação e Falências Comentada / Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, comentário artigo por artigo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

CALÇAS, Manoel de Queiroz Pereira. Novação recuperacional. In: Revista do Advogado – Recuperação Judicial: temas polêmicos. Ano XXIX. n° 105. São Paulo: AASP. Setembro de 2009, p.115-128.

COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova Lei de Falências e de recuperação de empresas: (Lei n° 11.101, de 9-2-2005). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

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LAZZARINI, Alexandre Alves. Reflexões sobre a Recuperação Judicial de Empresas. In: DE LUCCA, Newton & DOMINGUES, Alessandra de Azevedo (Coords.). Direito recuperacional – Aspectos Teóricos e Práticos. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p.123-136.  

LOBO, Jorge. In: TOLEDO, Paulo F. C. Salles de & ABRÃO, Carlos Henrique (Coords.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

SIMÃO FILHO, Adalberto. Interesses transindividuais dos credores nas assembleias-gerais e sistemas de aprovação do plano de recuperação judicial. In: DE LUCCA, Newton & DOMINGUES, Alessandra de Azevedo (Coords.). Direito recuperacional – Aspectos Teóricos e Práticos. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p.31-64.  
TADDEI, Marcelo Gazzi. Os primeiros cinco anos da recuperação judicial no país: dificuldades e controvérsias. Revista Jurídica Empresarial. Ano 3. n. 15. Jul/Ago 2010.

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  • Marcelo Gazzi Taddei é Advogado, Parecerista e Administrador Judicial em processos de Recuperação Judicial. Graduado e Mestre em Direito pela UNESP – Franca/SP, Professor de Direito Empresarial e Direito do Consumidor na UNIP – São José do Rio Preto, SP. Professor de Direito Empresarial na Escola  Superior de Advocacia de  São José do Rio Preto, SP.

 

BERTOLDI, Marcelo M. e RIBEIRO, Maria Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2008. pp. 478-479.

FRANÇA, Erasmo Valladão A. e N. Assembléia-Geral de Credores.  . In: Revista do Advogado – A nova lei de falência e de recuperação de empresas.. Ano XXV. n° 83. São Paulo: AASP. Setembro de 2005. p.49.

BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova Lei de Recuperação e Falências Comentada / Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, comentário artigo por artigo. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2005. p.166.

Devem compor a AGC assembleia geral de credores?

A Assembleia-geral será composta pelas seguintes classes de credores: a) titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho; b) titulares de créditos com garantia real; c) titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados.

O que é AGC assembleia?

Nos termos do artigo 35 da Lei 11.101/05, a Assembleia Geral de Credores (AGC) terá por atribuições, na recuperação judicial, deliberar sobre aprovação, rejeição ou modificação do Plano de Recuperação Judicial apresentado, bem como outras deliberações previstas em lei.

Quais os requisitos para a participação dos credores na assembleia geral?

A assembleia é um ato extrajudicial e ocorre sob a presidência do administrador judicial, que é o auxiliar do juiz. Para participar da assembleia o credor deve estar relacionado (habilitado) na recuperação judicial e poderá ser representado por procurador.

O que é a assembleia geral de credores?

A assembleia geral de credores é órgão deliberativo, formado pelos credores sujeitos ao processo concursal e de formação obrigatória na recuperação judicial, salvo no caso de micros e pequenas empresas, mas de formação facultativa na falência.