Tanto o filósofo quanto o cartunista

Tanto o filósofo quanto o cartunista
Tudo que a criança não precisa é que lhe tirem a curiosidade. Mas todos nós sabemos o quanto amamos frases do tipo “Deixe de ser curioso”, “Não olhe fixo nas pessoas”, “Não faça perguntas”, “Não xereteie”, “Não seja bisbilhoteiro”, “A curiosidade matou o gato” etc.

Temos essas frases como jargões para lidarmos com crianças e as usamos tanto de maneira branda e brincalhona quanto de modo ríspida e torturantemente admoestadora. Como pais, professores ou adultos nossa especialidade é obstruir o caminho da curiosidade. Somos experts em não deixar que o filósofo existente em cada criança se desenvolva. Todas as perguntas das crianças que parecem frutos de muita imaginação não são incentivadas, não recebem interlocução. Dizemos para a criança “nossa, de onde você tirou isso?”, e depois, para nós mesmos, falamos algo como “criança diz cada uma!” Isso quando não repreendemos mesmo a criança, se achamos que além de absurda a pergunta está indo pelo caminho do “despudorado”.

A “Filosofia para crianças” como uma prática escolar se justifica se puder caminhar efetivamente no sentido contrário de nosso corriqueiro comportamento adulto diante das crianças. Não se trata de ter material ou livros para “Filosofia para crianças”. Isso é uma tolice. Trata-se de ver que o material são a fala e o comportamento geral da criança, pois é com isso que o filósofo que se dispõe a filosofar junto com as crianças vai lidar. Seu papel fundamental é dar interlocução para a criança especialmente quando ela se põe a fazer as perguntas que naturalmente faz, na fase da vida em que dizemos que elas são filósofas. Todos nós temos essa fase. É uma benção que uma criança ponha o seu filósofo para funcionar e, nessa hora, tenha ao seu lado um filósofo profissional, adulto, sensível ao filosofar infantil.

Brincar junto e no meio das crianças – eis aí a tarefa do filósofo que quer fazer “Filosofia para crianças”. Nessa atividade, o filósofo não deve deixar passar os momentos felizes em que ele encontra o outro filósofo, aquele do interior de cada criança, que mais cedo ou mais tarde inventa de aparecer. Em geral, as crianças são filósofos pré-socráticos. Elas fazem perguntas que encontramos nos primeiros filósofos. Ora, nós filósofos, se estivermos ali com elas, só precisamos empurrar um pouco, dando continuidade à conversa, provocando-as a experimentar algumas soluções propostas pelas escolas filosóficas. Garanto: o filósofo que fizer isso, vai se surpreender. Verá que as perguntas tipicamente filosóficas das crianças não serão “fogo de palha”. Elas farão outras, mas voltarão às mesmas, entrando em um estado tal de perplexidade que poderá ser reconhecido como aquele que Sócrates e Platão diziam ser o início da filosofia.

“Filosofia para crianças” não é “contar histórias para criança”. Também não é a utilização de um “método” de um livro, de um material específico. O objetivo não é tornar a criança “crítica” ou “questionadora”. Também não é o pedante “ensinar a pensar”. Filosofia para crianças é dar interlocução para as crianças que, naturalmente, sempre são pequenos filósofos. Essa interlocução deve se fazer no sentido de abrir o caminho para que a criança possa fazer experiências com o pensamento. O filósofo existente na criança deve encontrar no filósofo adulto aquele que acolhe a sua “loucura”.

Uma criança de seis anos: “mãe, se eu chutar uma bola e o tempo parar, a bola vai ficar no ar?” A mãe filósofa: “tudo para se o tempo parar?

Ora, se a criança é alfabetizada, então, mais passos são possíveis, nossos melhores escritores estão repletos de situações em que a filosofia está presente. Por exemplo, penso naquela situação sobre o “surgimento da linguagem” e, de modo específico, a questão de “como que se começa a falar?”. Monteiro Lobato nos deu Emília, uma boneca que um dia tomou uma pílula para falar e virou uma falante. Uma falante compulsiva e que dizia muita bobagem. Emília falava muita bobagem. Isso ocorria, parece, porque ela ganhou a fala sem a possuir, ainda, no seu interior, servindo ao pensamento. Emília ganhou a fala já completa, abruptamente, portanto também o pensamento veio abruptamente. Pronto, eis aí uma questão interessante de colocar entre as crianças, alfabetizadas ou não, mas, de modo até mais produtivo, com as já alfabetizadas.

“Filosofia para crianças” tem tudo para ser uma disciplina na escola brasileira. Há filósofos aptos para isso. Mas, antes de tudo, precisa-se de professores realmente filósofos. Devem ter cursado a universidade, no curso de filosofia – pouco importa, no caso, se bacharel ou licenciado. Só um filósofo profissional reconhece o outro inteiramente. E “Filosofia para crianças” é isso, o encontro de filósofos.


Paulo Ghiraldelli, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ

http://ghiraldelli.pro.br/2013/02/filosofia-para-criancas-o-que-e-isso/


Quando Fortuna começou a trabalhar na Folha, em 1979, já era um cartunista e artista gráfico consagrado.

Desenvolveu estilo próprio e moderno de humor nos anos 1950,adicionou a crítica política aos seus cartuns na década seguinte, fundou com amigos talentosos o semanário O Pasquim e, nos anos 1970, criou uma revista de quadrinhos lendária, O Bicho.

Tanto o filósofo quanto o cartunista
Retrato do cartunista Fortuna – Folhapress

Sua entrada no jornal foi a retomada de uma parceria. Fortuna recebeu o convite de Tarso de Castro, então editor do suplemento cultural Folhetim. Ambos faziam parte da equipe que criou O Pasquim, em 1969.

Na Folha, ele reuniu duas frentes de trabalho que o agradavam muito: a charge política certeira e uma inovadora proposta visual de diagramação e paginação. Ele criou o projeto gráfico do Folhetim.

Depois de anos combativos sob o regime militar, em veículos como o jornal Correio da Manhã (para onde foi levado por Antonio Callado), Pasquim e a revista Veja, Fortuna chegou à Folha no clima de um certo renascimento cultural diante da anistia política.

Produziu então uma sequência admirável de charges e cartuns, alguns funcionando como a própria capa do Folhetim.

Seguir a trajetória do maranhense Reginaldo Fortuna, nascido em 21 de agosto de 1931 em São Luís, é um encontro constante com grandes intelectuais brasileiros. Já no Rio, em 1951, foi Millôr Fernandes que sugeriu a ele assinar seus desenhos como Fortuna, quando ambos trabalhavam na revista A Cigarra.

Na década anterior, muito jovem e com o pseudônimo Ricardo Forte, ele publicou ilustrações e textos em revistas para público infantil, como a Sesinho (publicação do Sesi) e a consagrada Tico-Tico.

Em A Cigarra, Fortuna atravessou a década de 1950 refinando seu humor e criando seu traço definitivo. Passeando por várias seções da revista, experimentou técnicas de gravura, inseriu fotos em ilustrações, entrevistou desenhistas e traduziu cartuns de autores estrangeiros para apresentá-los ao público brasileiro.

No início dos anos 1960, trabalhou nas revistas Senhor e Pif-Paf, esta editada pelo amigo Millôr. Foi então que Fortuna trouxe para seu desenho o comentário político e econômico, que nunca abandonou. Recuperar seus cartuns a partir daí é uma forma de entender a história do Brasil.

Em 1965, ele foi para o Correio da Manhã. O editor Antonio Callado descrevia Fortuna como “líder de um cartunismo editorial”. O conteúdo das charges do jornal passou a se comunicar com a cobertura política, com uma intensidade nunca antes experimentada.

Ele deixou a publicação em 1968. Juntou-se então a um time de amigos dispostos a construir um bunker de resistência no Pasquim.

Ao lado de textos de nomes hoje lendários, como Paulo Francis, Ivan Lessa e Sérgio Cabral, a equipe que ilustrava o jornal era um “dream team”, com Jaguar, Millôr, Ziraldo, Fortuna, Miguel Paiva e Claudius.

Foi no Pasquim que Fortuna criou seus personagens mais longevos de HQ, Madame e seu Bicho Muito Louco (um cachorro de bigode). Jaguar classifica a proposta como surreal. As histórias da senhora arrogante e seu cão um tanto filósofo passaram a sair em 1975 na revista O Bicho, idealizada pelo próprio Fortuna. Durou oito exemplares, hoje disputados nos sebos a preços estratosféricos.1 9

Charges e ilustrações de Fortuna

Tanto o filósofo quanto o cartunista

Ilustração de Fortuna na capa do suplemento Folhetim, da Folha 2.dez.1983 – Reprodução/Leia Mais VOLTAR

Antes da aventura em O Bicho, Fortuna trabalhou na Veja, entre 1974 e 1976, com uma série de capas de desenhos engraçados e críticos.

Em 1979 veio sua passagem pela Folha. Ele integrou a equipe do jornal até 1984, mas seguiu colaborando com charges até o ano seguinte.

Enquanto trabalhava na Folha, colaborou com a revista O Careta, comandada pelo amigo Tarso de Castro, nas 19 edições publicadas. Na segunda metade dos anos 1980, ele atuou na imprensa sindical e publicou livros em editoras pequenas.

Em 1994, retornou à charge política no jornal Gazeta Mercantil. Essa nova fase foi interrompida em 5 de setembro daquele ano, quando morreu de um infarto fulminante, aos 63 anos.

No Salão de Humor de Piracicaba de 1995, foi criada a medalha Reginaldo Fortuna, que depois seria concedida a vários de seus amigos, como Jaguar, Millôr e Ziraldo. A homenagem valida o epíteto consagrado dado a Fortuna, “o cartunista dos cartunistas”.

O poeta, ensaísta e diplomata Felipe Fortuna, filho do cartunista, tece considerações sobre possíveis sucessores do pai.

“Creio que, durante um período, tanto Luscar quanto Alcy foram cartunistas cujo trabalho mostra influência do traço e da contundência do Fortuna. Em vários depoimentos, Laerte se diz muito devedora do trabalho político do Fortuna, sobretudo no início, quando ela ainda desenhava para a revista Balão e para a imprensa nanica. Esses são os três nomes que me parecem mais evidentes.”

Em 2014, foi publicado pelas Edições Pinakotheke a coletânea “Fortuna – O Cartunista dos Cartunistas”. Lá estão reunidos trabalhos de todas as fases da carreira dele. Ainda é encontrado nas livrarias.

Leia a seguir, a entrevista com o poeta e ensaísta Felipe Fortuna, filho do cartunista. Diplomata, ele falou com a Folha de Seul, na Coreia do Sul. Ele conta que prepara a edição de um livro com textos de Fortuna, caso raro de desenhista que também escrevia prosa.

A maior parte dos cartunistas não se arrisca a escrever prosa. No máximo, fazem roteiros de HQ. Fortuna escrevia muito bem, mesmo sem apoio dos desenhos. É incomum, não?
Sim, é bastante incomum que cartunistas escrevam textos. A grande exceção foi Millôr Fernandes, justamente quem certa vez declarou que Fortuna seria um grande escritor, se escrevesse… Mas Fortuna sempre escreveu bastante e chegou a lançar um livro somente com textos de humor, “Acho Tudo Muito Estranho (Já o Professor Reginaldo, Não)”, da editora Anita Garibaldi, em 1992. Se não me engano, duas influências no texto de Fortuna são James Thurber e Stanislaw Ponte Preta. Planejo organizar um novo livro só de textos do Fortuna.

Fortuna gostava de trabalhar em equipe. Ele contou muito a você sobre a criação do Pasquim, naquele time de feras?
Há várias histórias sobre o “Pasquim”, claro, pois ele não apenas participou do dia a dia do jornal, mas também de algumas entrevistas. Seu maior amigo ali foi o cartunista Jaguar. Mas Ziraldo, quando Fortuna morreu, fez um desenho em que disse: “Eu era apaixonado pelo Millôr, mas quem me ensinou tudo foi o Fortuna.” Meu pai foi para o “Pasquim” depois de ter passado pela antiga “Senhor” e pela “Pif-Paf”, revista do Millôr, onde também estavam Claudius e Ziraldo. Depois fez amizades boas com Luiz Gê, Laerte e Angeli.

Todo mundo ressalta que o Fortuna era incrivelmente culto. Ele consumia diariamente jornais e livros?Fortuna lia muito, principalmente ficção e história. Foi amigo de Otto Maria Carpeaux no “Correio da Manhã”. Gostava de antologias, em especial “Mar de Histórias”, de Aurélio Buarque de Hollanda e Paulo Rónai. Há referências, tanto na família quanto entre amigos, de que desejava ser escritor, mas acabou desenhista.

Lembro que lia diariamente o “Jornal do Brasil”. Acompanhava a “New Yorker”, a “National Lampoon” e também o humor francês, principalmente Siné, Wolinski e Reiser. E tinha interesse por economia, em especial pelo processo decisório que levava a aumentos de salários e pelo principal tema das suas charges, o custo de vida. Não lia tanto livros de economia, apenas o noticiário. Ele nunca deixou de caricaturar os banqueiros como homens de cartola e abotoaduras. E, no final da vida, acabou trabalhando para sindicatos, produzindo revistas.

O livro “O Cartunista dos Cartunistas” consegue dar realmente a dimensão do trabalho do seu pai?
É um repositório, um mapa da mina. Houve também, em 2009, o lançamento do catálogo “A Arte de Desdesenhar”, a partir de uma exposição dos desenhos do Fortuna nos Correios. Creio que falta fazer um novo trabalho de curadoria, estabelecendo fases e influências, e trazendo comentários de um especialista. Toda a fase da revista “A Cigarra” e da “Revista da Semana” me parece riquíssima. Ainda este mês, Ana Paula Simonaci e Sérgio Cohn publicarão o número 12 da revista “Expressa” dedicado ao Fortuna, com novos depoimentos e desenhos e originais ainda inéditos em livro.

O que precisa ser feito, de fato, é a republicação de alguns trabalhos no formato original, acompanhado de um bom acervo de informações. Creio que, em algum momento, será importante ter um site dedicado ao Fortuna. Por ora, estou mais preocupado em organizar livros e tratar do acervo. Mas aceito propostas!