As duas manas Lousadas secas escuras e gárrulas como cigarras, desde longos anos, em Oliveira, eram

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des Ramires? Quem o não há-de ser?... Pois este último escândalo!

Os risonhos olhos de Gonçalo logo se alargaram, sérios:

-Que escândalo?

O tabelião recuou. Pois S. Ex.a não sabia da última prepotência do Governador Civil, do sr. André Cavaleiro?

- O quê, caro amigo?...

O Guedes cresceu todo sobre o bico dos botins pequeninos, e bojou, e inchou, para exclamar:

- A transferência do Noronha!... A transferência do desgraçado Noronha!

Mas uma senhora, também obesa, de buco carregado, toda a estalar em ricas e rugidoras sedas de missa, arrastando severamente pela mão um menino que rabujava, parou, fitou o Guedes — porque o digno homem com o seu ventre, o seu embrulho, a sua indignação, atravancava a entrada das Matildes. Apressadamente, o Fidalgo levantou, para ela entrar, o fecho da porta envidraçada. Depois, num alvoroço:

- O amigo Guedes naturalmente vai para casa. É o meu caminho. Andamos e conversamos... Ora essa! Mas o Noronha... Que Noronha?

- Ricardo Noronha... V. Ex.a conhece. O pagador das Obras Públicas!

- Ah! sim, sim... Então transferido? Transferido arbitràriamente?

Na rua das Brocas por onde desciam, no silêncio e solidão das lojas cerradas, a cólera do Guedes ressoou, mais solta:

Infamemente, sr. Gonçalo Mendes Rami. res, infamissimamente! E para Almodóvar, para

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os confins do Alentejo! Para uma terra sem recursos, sem distracções, sem famílias!...

Parara, com os doces contra o coração, os olhinhos esbugalhados para o Fidalgo, coriscando. O Noronha! Um empregado trabalhador, honradíssimo! E sem política, absolutamente sem política. Nem dos Históricos, nem dos Regeneradores. Só da família, das três irmãs que sustentava, três flores... E homem estimadíssimo na cidade, cheio de prendas! Um talento imenso para a música!... Ah! o sr. Gonçalo Ramires não sabia? Pois compunha ao piano coisas lindas! Depois precioso para reuniões, para anos. Era ele quem organizava sempre em Oliveira as representações de curiosos...

- Porque, como ensaiador, creia V. Ex.* que não há outro, mesmo na capital!... Não há outro! E, zás, de repente, para Almodóvar, para o Inferno, com as irmãs, com os tarecos! Só o piano!... Veja V. Ex.a só o transporte do piano!

Gonçalo resplandecia:

- É um belo escândalo. Ora que felicidade esta de o ter encontrado, meu caro Guedes!... E não se sabe o motivo?

De novo caminhavam demoradamente pelo passeio estreito. E o tabelião encolhia os ombros, com amargura. O motivo! Publicamente, como sempre nestas prepotências, o motivo era a conveniência do serviço...

-- Mas todos os amigos do Noronha, por toda a cidade, conhecem o verdadeiro motivo... O intimo, o secreto, o medonho!

Então? Guedes relanceou a rua, com prudência. Uma

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res, e cometia esses abusos de poder, motivados por lascivias de temperamento, que foram sempre, em todos os séculos e todas as civilizações, a execração do justo!»-E assinava Juvenal.

Eram quase seis horas quando desceu à sala, ligeiro e resplandecente. Gracinha martelava o piano, estudando o Fado dos Ramires. E Barrolo (que não se arriscara a um passeio solitário) folheava, estendido no canapé, uma famosa História dos Crimes da Inquisição, que começara ainda em solteiro.

Estou a trabalhar desde as duas horas! exclamou logo Gonçalo, escancarando a janela. - Fiquei derreado. Mas, louvado seja Deus, fiz obra de Justiça... Desta vez o sr. André Cavaleiro vai abaixo do seu cavalo!

Barrolo fechou imediatamente o livro, com o cotovelo nas almofadas, inquieto:

- Houve alguma coisa?

E Gonçalo, plantado diante dele, com um risinho suave, um risinho feroz, remexendo na algibeira o dinheiro e as chaves :

- Oh! quase nada. Uma bagatela. Apenas uma infâmia... Mas para o nosso Governador Civil, infâmias são bagatelas.

Sob os dedos de Gracinha o Fado dos Ramires esmoreceu, apenas roçado, num murmúrio incerto. O Barrolo esperava, esgazeado:

Desembucha! E Gonçalo desabafou, com estrondo:

Pois uma maroteira imensa, homem! O Noronha, o pobre Noronha, perseguido, espezinhado, expulso! Com a família... Para o inferno, para o Algarve!

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dros, depois o Cruzeiro sempre coberto pelas pombas que esvoaçam do pombal da fábrica. E entrava no lugar de Nacejas-quando, à janela duma casinha muito limpa, rodeada de parreiras, apareceu uma linda rapariga, morena e fina, com jaqué de pano azul e lenço de cambraieta bordada sobre fartos bandos ondeados. Gonçalo, sopeando a égua, saudou, sorriu suavemente:

- Perdão, minha menina... Vou bem por aqui, para Canta Pedra ?

Vai, sim senhor. Em baixo, à ponte, mete para a direita, para os álamos. E é sempre a seguir...

Gonçalo suspirou, gracejando: - Antes desejava ficar!

A moça corou. E o Fidalgo ainda se torceu no selim para gozar a fina face morena, entre os dois craveiros da janelinha, na casa tão bem caiada.

Nesse momento, ao lado, duma quelha enramada, desembocava um caçador do campo, de jaleca e barrete vermelho, com a espingarda atravessada nas costas, seguido por dois perdigueiros. Era um latagão airoso, que todo ele, no bater dos sapatões brancos, no menear da cinta enfaixada em seda, no levantar da face clara de suicas loiras, transbordava de presunção e pimponice. Num relance surpreendeu o sorriso, a atenção galante do Fidalgo. E estacou, pregando sobre ele, com lenta arrogância, os belos olhos pestanudos. Depois passou desdenhosamente, sem se arredar da égua na ladeira estreita, quase raspando pela perna do Fidalgo o cano da caçadeira. Mas adiante ainda atirou uma tossidela seca e de chasco - com um bater mais petulante dos

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- Deter, deter! que não há passagem! E O nobre senhor de Baião, em recado de El-Rei e por mercê de Sua Senhoria, vos guarda vidas salvas se volverdes costas sem rumor e tardança! Lourenço Ramires gritou:

- A ele, besteiros ! Os virotes assobiaram. Toda a curta ala dos cavaleiros de Santa Ireneia tropeou para dentro do vale, de lanças ristadas. E o filho de Tructesindo, erguido nos estribões de ferro, debaixo do pano solto do seu pendão que apressadamente o alferes sacara da funda, descerrou a viseira do casco para que lhe mirassem bem a face destemida, e lançou ao Bastardo injúrias de furioso orgulho:

Chama outros tantos dos vilões que te seguem que, por sobre eles e por sobre ti, chegarei esta noite a Montemor!

E o Bastardo, no seu fouveiro, que uma rede de malha cobria, toda acairelada de oiro, atirava a mão calçada de ferro, clamava:

- Para trás, de onde vieste, voltarás, burlão traidor, se eu por mercê mandar a teu pai o teu corpo numas andas!

Estes feros desafios rolavam em versos serenamente compassados no poemeto do tio Duarte. E depois de os reforçar, Gonçalo Mendes Ramires, (sentindo a alma enfunada pelo heroísmo da sua raça, como por um vento que sopra de funda campina) arrojou um contra o outro os dois bandos valorosos. Grande briga, grande grita...

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podia recuar!... Mas era como se houvesse, para gente de bem!... Até V. S.a disse, quando eu aceitei: «viva! está tratado!...» O Fidalgo deu a sua palavra!

Gonçalo, enfiado, aparentou a paciência dum senhor benévolo:

- Escute, José Casco. Aqui não é lugar, na estrada. Se quer conversar comigo, apareça na Torre. Eu lá estou sempre, como você sabe, de manhã... Vá amanhã, não me incomoda.

E endireitava para o pinhal, com as pernas moles, um suor arrepiado na espinha — quando o Casco, num rodeio, num salto leve, atrevidamente se lhe plantou diante, atravessando o cajado:

O Fidalgo há-de dizer aqui mesmo! O Fidalgo deu a sua palavra!... A mim não se me fazem dessas desfeitas... O Fidalgo deu a sua palavra!

Gonçalo relanceou esgazeadamente em redor, na ânsia dum socorro. Só o cercava solidão, arvoredo cerrado. Na estrada, apenas clara sob um resto de tarde, o carro de lenha, ao longe, chiava, mais vago. As ramas altas dos pinheiros gemiam com um gemer dormente e remoto. Entre os troncos já se adensava sombra e névoa. Então, estarre

e cido, Gonçalo tentou um refúgio na ideia de Justiça e de Lei, que aterra os homens do campo. E como amigo que aconselha um amigo, com bran. dura, os beiços ressequidos e trémulos:

- Escute, Casco, escute, homem! As coisas não se arranjam assim, a gritar. Pode haver desgosto, aparecer o regedor. Depois é o tribunal, é a cadeia. E você tem mulher, tem filhos pequenos... Escute! Se descobriu motivo para se quei

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«Morra, que é marrão!...» E ele na estrada, diante do bruto, de bengalinha! Mas atira um salto, a foiçada resvala sobre um tronco de pinheiro... Então arremete desabaladamente, brandindo a bengala, gritando pelo Ricardo e pelo Manuel, como se ambos o escoltassem e ataranta o Casco, que recua, se some pela azinhaga, a cambalear, a grunhir...

- Hem, que te parece? Se não é a minha audácia, o homem positivamente me ferra um tiro de espingarda!

O Bento, que quase se babava, com o jarro esquecido a pingar no tapete, pestanejou, confuso, mais atónito:

Mas o sr. Doutor disse que era uma foice! Gonçalo bateu o pé, impaciente:

- Correu para mim com uma foice. Mas vinha atrás do carro... E no carro trazia uma espingarda. O Casco é caçador, anda sempre de espingarda... Enfim estou aqui vivo, na Torre, por mercê de Deus. E também porque, felizmente, nestes casos, não me falta decisão! E apressou o Bento — porque, com o abalo, o

, esforço, positivamente lhe tremiam as pernas de cansaço e de fome... Além da sede!

- Sobretudo sede! Esse vinho que venha bem fresco... Do verde e do alvarelhão, para misturar.

O Bento, com um trémulo suspiro da emoção atravessada, enchera a bacia, estendia as toalhas. Depois, gravemente:

- Pois, sr. Doutor, temos esse andaço nos sítios! Foi o mesmo que sucedeu ao sr. Sanches Lucena, na Feitosa...

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--O quê? --- Pois não sabe, homem?... O Sanches

, Lucena!

O quê?

Morreu! O Fidalgo embasbacou para o Administrador, depois para o outro cavalheiro, que repuxava na mão enorme, com um esforço inchado, uma luva preta apertada e curta. - Santo Deus!... Quando?

Esta madrugada. De repente. «Angina pectoris», não sei que no coração... De repente, na cama.

E ambos se consideraram, em silêncio, no espanto renovado daquela morte que impressionava Vila Clara. Por fim Gonçalo:

- E eu ainda há bocado, na Torre, a falar dele! E, coitado, como sempre, com pouca admiração... - E eu! exclamou o Gouveia.

- Eu, que ainda ontem lhe escrevi!... E uma carta comprida, por causa dum empenho do Manuel Duarte... Foi o cadáver que recebeu a carta.

- Boa piada! — rosnou o sujeito obeso, que se debatia ferrenhamente contra a luva. - 0 cadá. ver recebeu a carta... Boa piada ! O Fidalgo torcia o bigode, pensativo:

Ora, ora... E que idade tinha ele? O Gouveia sempre o imaginara um completo velho, de setenta invernos. Pois não! apenas sessenta, em Dezembro. Mas consumido, arrasado. Casara tarde, com fêmea forte...

- E aí temos a bela D. Ana, viúva aos vinte e oito anos, sem filhos, naturalmente herdeira,

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O gordalhufo murmurou com importância, através do imenso charuto que mamava:

Amanhã já estou com ele, já sei... Mas o Administrador emudecera, cocava o queixo, cravando em Gonçalo os olhos espertos, que rebrilhavam, como se uma ditosa ideia, quase uma inspiração, o iluminasse. E de repente, para o outro, que cofiava a barba retinta:

—Pois, meu caro senhor, até além de amanhã. Ficamos entendidos. Eu remeto o cestinho dos queijos directamente ao sr. Conselheiro.

Tomou o braço de Gonçalo, que apertou com impaciência. E sem atender mais ao homenzarrão, que saudava rasgadamente, arrastou o Fidalgo para a Calçadinha silenciosa:

- Oh, Gonçalo, oiça lá... Você agora tinha uma ocasião soberba! Você, se quisesse, dentro de poucos dias, estava deputado por Vila Clara!

O Fidalgo da Torre estacara como se uma estrela de repente se despenhasse na rua mal alumiada.

- Ora escute! -exclamou o Administrador,

largando o braço de Gonçalo, para desenrolar mais livremente a sua ideia. Você não tem compromissos sérios com os Regeneradores. Você deixou Coimbra há um ano, tenta agora a vida pública, nunca fez acto definitivo de partidário. Lá uma ou outra correspondência para os jornais, histórias!...

Mas...

- Escute, homem! Você quer entrar na Política? Quer. Então, pelos Históricos ou pelos Rege

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O Fidalgo murmurou, inquieto:

Sim! Mas as alusões à bigodeira, à guedelha...

- Oh! Gonçalinho! Belos cabelos anelados, belos bigodes torcidos, não são defeitos de que um macho se envergonhe... Pelo contrário! Todas as mulheres admiram. Você pensa que ridicularizou o Cavaleiro? Não! anunciou simplesmente às madamas e meninas, que lêem a Gazeta do Porto, a existência dum mocetão esplendido que é Governador Civil de Oliveira,

E parando de novo (porque defronte, na esquina, luziam as duas janelas abertas da sua casa), o Administrador estendeu o dedo firme para um conselho supremo:

- Gonçalo Mendes Ramires, você amanhã manda buscar a parelha do Torto, salta para a sua caleche, corre à cidade, entra pelo Governo Civil de braços abertos, e grita sem outro prólogo:

«André, o que lá vai, lá vai, venham essas costelas! E como o círculo está vago, venha também esse círculo!» E você, dentro de cinco ou seis semanas, é o sr. Deputado por Vila Clara, com todos os sinos a repicar... Quer tomar chá? - Não, obrigado.

Bem, então viva! Tipóia amanhã e Governo Civil. Está claro, é necessário arranjar um pretexto...

O Fidalgo acudiu, com alvoroço:

- Eu tenho um pretexto! Não!... Quero dizer, tenho necessidade real, absoluta, de falar com o Cavaleiro ou com o Secretário-Geral. questão de caseiro... Até por causa dessa infeliz trapalhada o procurava eu hoje a você, Gouveia!

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E os camaradas, nos sonhos ondeantes de Futuro, quando repartiam os Ministérios, concordavam sempre: - «О Gonçalo para a Instrução Pública !>>

O » Por essas ideias poderosas, pelo saber acumulado, todo ele se devia à Nação - como outrora pela força, os grandes Ramires armados. E pela Nação cumpria que o seu orgulho de homem cedesse ante a sua tarefa de cidadão...

Depois, quem sabe? Entre o Cavaleiro e ele afogadamente se enroscava todo um passado de camaradagem, apenas entorpecido — que talvez

revivesse nesse encontro, os enlaçasse logo num abraço penetrante, onde os antigos agravos se sumiriam como um pó sacudido... Mas para que imaginar, remoer? Uma necessidade se sobrepunha, iniludivel – a de comparecer logo de manhã em Oliveira, no Governo Civil, requerendo a supressão do Casco. Dessa pressa dependia o seu sossego de vida e de inteligência. Nunca ele lograria trabalhar na novela, trilhar folgadamente a estrada de Vila Clara, sabendo que em torno o outro, pelas quelhas e sombras, rondava com a espingarda. E para não regressar aos costumes bravios dos seus avós, circulando através do Concelho entre as carabinas dos criados, necessitava o Casco domado, imobilizado. Era pois inadiável correr ao Governo Civil, para bem da Ordem. E depois, quando ele se encontrasse no gabinete do Cavaleiro, diante da mesa do Cavaleiro—a Providência decidiria... - «A Providência decidirá!»

E ancorado nesta resolução, o Fidalgo da Torre parou, olhou. Levado pela quente rajada de pensamentos, chegara à grade do cemitério da vila, que o luar branqueava como um lençol estendido. Ao fundo da alameda que o divide, clara na claridade triste, o escarnado Cristo chagado e lívido, sobre a sua alta cruz negra, pendia, mais dolorido e lívido no silêncio e na solidão, com uma tristissima lâmpada aos pés esmorecendo. Em torno eram ciprestes, sombras de ciprestes, brancuras de lápides, as cruzes rasteiras das campas pobres, uma paz morta pesando sobre os mortos; e no alto a Lua amarela e parada. Então o Fidalgo sentiu um arrepiado medo do Cristo, das lousas, dos defuntos, da Lua, da solidão. E despediu numa carreira até avistar as casas da Calçadinha, por onde descambou como uma pedra solta. Quando se deteve no Largo do Chafariz, um mocho piava na torre da Câmara, melancolizando o repouso de Vila Clara apagada e adormecida. Mais impressionado, Gonçalo correu à taberna da Serena, recolheu os criados que esperavam jogando a bisca lambida. E com eles atravessou de novo a vila até à cocheira do Torto - para recomendar que lhe mandassem à Torre, às nove horas da manhã, a parelha ruça.

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A todos o caso parecia «de estrondo!» E sùbitamente um silêncio esmagou a Arcada, trespas. sada de emoção. Na varanda, entre as vidraças abertas vagarosamente, aparecera o Cavaleiro com o Fidalgo da Torre, conversando, risonhos, de charutos acesos. Os largos olhos do Cavaleiro pousaram logo, com malícia, sobre os «rapazes» apinhados em pasmo à borda dos Arcos. Mas foi um lampejar de visão. S. Ex.a remergulhara no gabinete-o Fidalgo também, depois de se debruçar da varanda, espreitar a caleche da Torre. Entre os amigos rompeu um clamor:

- Viva! Reconciliação!
- Acabou a guerra das Rosas!

E as correspondências da Gazeta do Porto ?... - É que houve peripécia tremenda!

--- Temos o Gonçalinho administrador de Oliveira!

- Upa, Ex.mo Senhor, upa!

Mas de novo emudeceram. O Cavaleiro e o Fidalgo reapareciam, numa enfronhada conversa, que os deteve um momento esquecidos, na evidência da varanda escancarada. Depois o Cavaleiro, com uma familiaridade carinhosa, bateu nas costas de Gonçalo — como se publicasse a sua reconciliação diante da Praça maravilhada. E outra vez se sumiram, nesse passear conversado e íntimo, que os trazia da sombra do gabinete para a claridade da janela, roçando as mangas, misturando o fumo leve dos charutos. Em baixo o bando crescia, mais excitado. Passara o Melo Alboim, o Barão das Marges, o dr. Delegado; e, chamados com ânsia, cada um correra, devorara esgazeadamente a novidade, embasbacara para o velho balcão de pedra que o sol doirava. Os grossos ponteiros do relógio do Governo Civil, já se acercavam das quatro horas. Os dois Vila-Velhas, outros «rapazes», estafados, retrocederam às cadeiras de verga da Tabacaria. O dr. Delegado, que jantava às quatro e sofria do estômago, despegou desconsoladamente dos Arcos, suplicando ao Pestana seu vizinho «que aparecesse ao café, para contar o resto...». Melo Alboim, esse, enfiara para casa, defronte do Governo Civil, na esquina do Largo; e da janela, disfarçado por trás da mulher e da cunhada, ambas de chambres brancos e de papelotes, sondava o gabinete de S. Ex. com um binóculo. Por fim bateram, com estendida pancada, as quatro horas. Então o Barão das Marges, na sua impaciência borbulhante, decidiu subir ao Governo Civil, «para farejar!...»

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Ele ainda exclamara, com surpresa e riso:
- Como, se eu quisesse?

E o André, sempre com os olhos nele cravados, os largos olhos lustrosos, tão persuasivos:

- Se tu quisesses servir o país, ser deputado por Vila Clara, já não estávamos embaraçados, Gonçalo!

Se tu quisesses... E perante esta insistência que rogava, tão sincera e comovida, em nome do país, ele consentira, vergara os ombros:

- Se te posso ser útil, e ao país, estou às vossas ordens.

E eis a fenda transposta, a áspera fenda, sem rasgão no seu orgulho ou na sua dignidade! Depois conversaram desafogadamente, passeando pelo gabinete, desde a estante carregada de papéis até à varanda que André abrira, por causa dum cheiro persistente de petróleo entornado na véspera. André tencionava partir nessa noite para Lisboa — para conferenciar com o Governo, depois daquela inesperada desaparição do Lucena. E, agora em Lisboa, imporia o querido Gonçalo como único deputado, depois do Sanches de Lucena, seguro e substancial-pelo nome, pelo talento, pela influência, pela lealdade. E eis a eleição consumada! De resto (declarara O Cavaleiro, rindo) aquele círculo de Vila Clara constituía uma propriedade sua — tão sua como Corinde. Livremente, poderia eleger o servente da Repartição, que era gago e bêbedo. Prestava pois um serviço esplêndido ao Governo, à Nação, apresentando um moço de tão alta origem e de tão fina inteligência... Depois acrescentara:

- Não tens a pensar mais na eleição. Vais

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abriu cautelosamente, através daquele perro rangido que o desesperava. Era o Bento, em mangas de camisa:

O sr. Doutor não poderia descer cá abaixo à cozinha ?

Gonçalo embasbacou para o Bento, pestanejando, sem compreender:

- À cozinha ?...

- É que está lá a mulher do Casco a levantar uma celeuma. Parece que lhe prenderam o homem esta tarde... Apareceu aí por baixo de água, com os pequenos, até um de mama. Quer por força falar com o sr. Doutor. E não se cala, lavada em lágrimas, de joelhos com os filhos, que é mesmo uma Inês de Castro!

Gonçalo murmurou — «que maçada!» E que contrariedade! A mulher, numa agonia, entre gritos, arrastando os filhos suplicantes até ao portão da Torre! E ele, nas vésperas da sua eleição, aparecendo a todas as freguesias enternecidas como um fidalgo desumano!... - Atirou a pena

furiosamente:

- Que maçada! Diz à criatura que me deixe, que se não aflija... O sr. Administrador amanhã manda soltar o Casco. Eu mesmo vou a Vila Clara, antes de almoço, para pedir. Que se não aflija, que não aterre os pequenos... Corre, diz, homem! Mas o Bento não despegava da porta:

Pois a Rosa e eu já lhe dissemos... Mas a mulherzinha não acredita, quer pedir ao sr. Doutor! Veio por baixo de água. Até um dos pequenitos está bem doentinho, ainda não fez senão tremer...

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«Pois foi o que lhe dissemos, tia Maria! Logo pela manhã, o vão soltar!>-E do outro o Bento, batendo na coxa, com impaciência:–«Oh mulher,

acabe com esse escarcéu! Pois se o sr. Doutor prometeu! Logo pela manhã o vão soltar!>>

Mas ela não se calmava, com o lenço da cabeça desmanchado, uma trança desprendida, soluçando e clamando através dos soluços:

Ai que eu morro, se o não vejo solto! Ai perdão, meu rico senhor da minha alma!...

Então Gonçalo, que aquele infindável e obtuso queixume torturava, como um ferro cravado e recravado, bateu o chinelo nas lajes, berrou:

- Escute, mulher! E olhe para mim! Mas de pé, de pé!... E olhe bem, olhe direita!

Hirtamente erguida, atirando as mãos para as costas como a escapar de algemas que também a ameaçassem - ela arregalou para o Fidalgo os

olhos espavoridos, fundos olhos pretos, de fundas olheiras tristes, que lhe enchiam a face rechupada e morena.

- Bem, perfeitamente! - exclamava Gonçalo, - E agora diga! Acha que tenho bojo de lhe mentir, quando vossemecê está nessa aflição? Pois então sossegue, acabe com os gritos, que, sob minha palavra, amanhã cedo, o seu homem está solto! E a Rosa e o Bento, ambos triunfando:

Pois que lhe dizia a gente, criatura de Deus? Se o sr. Doutor tinha prometido... Amanhã lá tem o homem!

Lentamente ela limpava as lágrimas, já silenciosas, à ponta do avental negro. Mas ainda desconfiada, com os tenebrosos olhos mais arregalados, devorando Gonçalo. Eo Fidalgo mandava com

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aos meses, certamente, uma carruagem da Companhia. E para as sessões de S. Bento sempre luvas cor de pérola, uma flor no peito. Por comodidade levava o Bento, bem apurado, com casaca nova...

O bento entrou com a garrafa do conhaque numa salva. Dera a carta ao Joaquim da Horta, com a recomendação de correr logo às seis horas a casa do sr. Administrador, de se demorar na vila por diante da cadeia até soltarem o Casco.

- E já deitámos o pequeno no quarto verde. Fica perto de mim, que tenho o sono leve, se ele berrar... Mas já dorme regaladamente.

- Está sossegado, hem?-acudiu Gonçalo, sorvendo à pressa o cálice de conhaque. Vamos ver esse cavalheiro!

E tomou um castiçal, subiu ao quarto verde com o Bento, sorrindo, abafando os passos pela estreita escada. No corredor, junto da porta, num desbotado canapé de damasco verde, a Rosa dobrara carinhosamente a roupa trapalhona do pequenc, o colete esgaçado, as calças enormes, só com um botão. Dentro o leito de pau-preto, vasto leito de cerimónia, atravancava a parede forrada dum velho papel aveludado de ramagens verdes. Ao lado dos dois postes torneados, à cabeceira, pendiam dois painéis, retratos de antigos Ramires, um Bispo obeso folheando um fólio, um formoso cavaleiro de Malta, de barba ruiva, apoiado à espada, com um laçarote de rendas sobre a couraça polida. E nos altos colchões o Manuelzinho ressonava, sem tosse, quieto, abafado pela grossura dos cobertores, humedecido por um suor fresco e sereno,

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No violão rompera triunfalmente o Hino da Carta. Videirinha, alçado na biqueira das botas gaspeadas de verniz, gritava: - «Viva a ilustre casa de Ramircs!» E por baixo do chapéu-coco, sacudido com delírio, João Gouveia, sem poupar a garganta, urrava - «Viva o ilustre deputado

« por Vila Clara! Viva!>>

Majestosamente, Gonçalo, alagado de riso, estendeu da varanda o braço eloquente:

Obrigado, meus queridos concidadãos! Obrigado!... A honra que me fazeis, vindo assim, nesse formoso grupo, o chefe glorioso da Administração, o inspirado farmacêutico, o... Mas reparou... E o Tito?

-O Titó não veio?... Oh João Gouveia, você não avisou o Tito?

Repondo sobre a orelha o chapéu-coco, O Administrador, que arvorava uma gravata de cetim escarlate, declarou o Tito «um animal»:

- Estava combinado virmos todos três. Até ele devia trazer uma dúzia de foguetes, para estalar aqui com o Hino... A reunião era ao pé da ponte... Mas o animal não apareceu. Em todo o caso ficou avisado, avisadíssimo... E se não vier, é traidor. - Bem, subam vocês! -- gritou Gonçalo. - Eu

num instante me visto. E, para aguçar o apetite, proponho um vermute, depois uma volta pela quinta até ao pinhal!...

Imediatamente Videirinha, teso, empinando o violão, meteu pela rua larga da horta, recoberta de parreira; e atrás João Gouveia atirava os passos em cadência nobre, alçando o guarda-sol como um pendão. Quando Gonçalo entrou no quarto, ber

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André. Sob esse painel, à borda do canapé de palhinha, esperava melancòlicamente um amanuense do Governo Civil, com a sua pasta vermeIha sobre os joelhos. E duma porta remota, ao fundo do corredor, André, avisado pelo criado, o fiel Mateus, gritou alegremente:

-Oh Gonçalo, entra para cá, para o quarto! Saí da tina... Ainda estou em ceroulas!

E em ceroulas o abraçou, num generoso abraço de parabéns. Depois, enquanto se vestia, por entre as cadeiras atravancadas com o recheio das malas - gravatas, peúgas de seda, garrafas de perfumes - conversaram do calor, da jornada enfadonha, de Lisboa despovoada...

- Um horror!-exclamava o Cavaleiro, aquecendo um ferro de frisar à lâmpada de álcool. — Todas as ruas da Baixa em obras, cobertas de caliça, de poeirada. O Central infestado de mosquitos. Muito mulato. Uma Tunes, Lisboa!... Mas enfim, lá combatemos bravamente o bom combate!

Gonçalo sorria, do canto do divã onde se acomodara, entre uma pilha de camisas de cor e outra de ceroulas com monograma flamante:

- E então, Andrézinho, tudo arranjado, hem?

O Cavaleiro, diante do toucador, frisava com enlevado esmero as pontas grossas do bigode. E só depois de o ensopar em brilhantina, de acamar as ondas da cabeleira rebelde, de se mirar, de se requebrar, assegurou a Gonçalo, já inquieto, que a eleição ficara sólida...

— Mas imagina tu! Quando apareci em Lisboa, no Ministério do Reino, encontrei o círculo prometido ao Pita, ao Teotónio Pita, o grande homem da Verdade...

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sabes. Mas tu afianças a eleição, com segurança? Não surgirá dificuldade, Andrézinho?... Esse Pita é um hábil!

O Cavaleiro murmurou apenas, mergulhando os dedos nas cavas do colete:

Da habilidade dos Pitas se ri a força dos Cavaleiros...

Por três degraus de tijolo baixaram ao outro jardim, desafogado de arvoredo e sombra, onde desabrochava desde Maio, com esplendor, o tão celebrado bosque de roseiras, orgulho da quinta de Corinde, que deleitara uma Rainha. Aquele fácil desdém pelo Pita confirmava a segurança da eleição. Gonçalo, caminhando respeitosamente como num Museu, regou de louvores deslumbrados as rosas do Cavaleiro:

- Uma beleza, André, uma maravilha! Tens aqui rosas sublimes... Aquelas repolhudas, além, que luxo! E estas amarelas? Deliciosas!... Olha este encanto! O ruborzinho a surdir, a raiar, do fundo das pétalas brancas... Oh, que escarlate! Oh, que divino escarlate!

O Cavaleiro cruzara os braços, com gracejadora melancolia:

- Pois vê tu! Tal é a minha solidão social e sentimental que, com todas estas rosas abertas, não tenho a quem mandar um ramo!... Estou reduzido a florir as Lousadas!

Um escarlate, mais vivo do que as rosas que gabava, cobriu as faces do Fidalgo:

- As Lousadas! Oh, que desavergonhadas!

André atirou ao seu amigo os lustrosos olhos, num inquieto reparo de curiosidade:

- Porquê?... Desavergonhadas, porquê?

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- Pois é verdade, meu querido Gonçalo, lá estive nessa grande Capital, depois um dia em Sintra...

O Mateus entreabriu a porta para recordar a S. Ex.a 0 amanuense do Governo Civil, que esperava.

- Pois que espere! — gritou S. Ex.".

Gonçalo lembrou que talvez o digno homem se impacientasse, com fome...

- Pois que almoce! - gritou S. Ex..

Aquele seco desprezo de André pelo pobre empregado, esquecido no banco de entrada, com a sua pasta sobre os joelhos—constrangia o Fidalgo. E espetando também uma azeitona : – Dizias então, Sintra...

Sensabor,-resumiu André.-Poeirada horrenda, femeaço mediocre... E já me esquecia. Sabes quem lá encontrei, na estrada de Colares? O Castanheiro, o nosso Castanheiro, o dos ANAIS, de chapéu alto. Ergueu logo os braços ao céu, desolado:

- «E então esse Gonçalo Mendes Ramires não me manda o romance ?» Parece que o primeiro número da revista sai em Dezembro, e ele precisa o original em começos de Outubro... Lá me suplicou que te sacudisse, que te recordasse a glória dos Ramires. E tu devias acabar a novela... Até convém que, antes de entrares na Câmara, apareça um trabalho teu, um trabalho sério, de erudição forte, bem português...

- Pois convém! — concordou vivamente Goncalo. - E à novela só falta o Capítulo quarto.

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palhinha. E ao sentir as patas lentas das éguas, ao avistar tão inesperadamente o cunhado -0 bom Barrolo quase se despenhou da varanda:

- Oh Gonçalo! Oh Gonçalo!... Vais lá para casa ?

E nem esperou uma certeza, berrou de novo, bracejando:

- Nós já vamos! jantamos cá esta tarde... A Gracinha está lá em cima, com a tia Arminda. Vamos já também! É um momento!

O Cavaleiro acenou risonhamente ao capitão Mendonça. Já Barrolo mergulhar com entusiasmo para dentro dos damascos amarelos. E os dois amigos, deixando pelo Terreiro aquele sulco de espanto, penetraram na rua das Velas, onde um polícia se perfilou com a mão no boné

o que foi agradável ao Fidalgo da Torre.

O Cavaleiro acompanhou Gonçalo ao Largo de El-Rei. Diante do palacete um homem de boina vermelha remoía no seu realejo o coro nupcial da Lúcia, espiando as janelas desertas. O Joaquim da Porta correu do pátio a segurar a égua do Fidalgo. Com um mudo sorriso, o tocador estendera a boina. E depois de lhe atirar um punhado de cobre Gonçalo hesitou, murmurou enfim, com embaraço e corando:

- Não queres entrar e descansar, André?...

- Não, obrigado... Então amanhã às duas, no Governo Civil, com o Barrolo, para combinarmos sobre os votos da Murtosa... Adeus, minha flor! Demos um belo passeio e espantámos os povos!

E S. Ex.", envolvendo o palacete num demorado olhar, desceu pela rua das Tecedeiras.

No seu quarto (sempre preparado, com a cama feita) Gonçalo acabava de se lavar, de se escovar, quando Barrolo se precipitou pelo corredor, esbofado, sôfrego - e atrás dele Gracinha, ofegante também, desapertando nervosamente as fitas escarlates do chapéu. Desde a tarde em que Barrolo «presenciara com os olhos bem acordados!» a palestra de Gonçalo e de André na varanda do Governo Civil - fervera nele e em Gracinha uma impaciência desesperada por penetrar os motivos, a encoberta história daquela reconciliação surpreendente. Depois a fuga de Gonçalo na caleche para a Torre, sem parar nos Cunhais; a repentina jornada do Cavaleiro a Lisboa; o silêncio que sobre aquele caso se abatera mais pesado que uma tampa de ferro -- quase os aterrou. Gracinha à noite, no oratório, murmurava através das rezas distraídas: «Oh, minha rica Nossa Senhora, que será ?» - Barrolo não ousara correr à Torre; mas até sonhava com a varanda do Governo Civil, que lhe aparecia enorme, crescendo, atravancando Oliveira, roçando já as janelas dos Cunhais, de onde ele a repelia com o cabo duma vassoura... E eis agora Gonçalo e André que entram na cidade a cavalo, muito serenamente, ambos de chapéus de palha, como companheiros constantes recolhendo dum passeio!

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O Fidalgo deu um sorvo lento ao café:

- 0 André, antigamente, também gostava muito de ovos queimados...

Bruscamente Gracinha fechou o Almanaque e, com uma fuga e um silêncio que emudeceram Gonçalo, sacudiu do colo o gato dorminhoco, atravessou o terraço, desapareceu entre os teixos altos do jardim.

Mas à tarde, quando o Fidalgo ocupou o seu lugar na mesa oval, junto da prima Maria Mendonça - logo notou, entre duas compoteiras, uma travessa de ovos queimados. Apesar de jantar tão intimo serviam, com a louça da China, os famosos talheres doirados da baixela do tio Meichior. E duas jarras de Saxe transbordavam de cravos brancos e amarelos, cores heráldicas dos Ramires.

D. Maria, que não encontrara o querido primo desde os anos de Gracinha, murmurou com um sorriso, uma grave cortesia, naquele cerimonioso silêncio em que se desdobravam os guardanapos :

- Ainda lhe não dei os parabéns, primo Gonçalo...

Ele acudiu, mexendo nervosamente nos copos:

- Psiu! prima, psiu! Hoje aqui, já está decidido, não se alude sequer a política... Está muito calor para política.

Ela suspirou de leve, como desfalecida: Ai, o calor... Que horrível calor! Desde que entrara nos Cunhais com aquele vestido preto que «era o seu pálio rico» — ainda não cessara de invejar a frescura do vestido branco de Gracinha...

-Que bem que lhe fica! Está hoje linda! Era um vestido liso de «crépon> branco, que

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O S. Fulgêncio não arreia! Ainda cá te apanhamos uns três ou quatro anos!

E insistiu, debruçado sobre Gracinha, num esforço de amabilidade que o esbraseava:

-OS. Fulgencio não arreia. Ainda cá temos o nosso André mais três ou quatro anos.

André protestava, com um requebro, as espessas pestanas quase cerradas:

Oh meu João! não me queiras mal, não me queiras mal!...

E teimava. Ah, com certeza! ainda que desertasse o seu partido (e que importa em hoste poderosa uma lança ferrugenta ?) esses meses de Itália no Inverno já os sonhara, já os preparava... — E a sr. D. Graça não permitia que ele a servisse dum pouco de vinho branco?

Barrolo estendeu o braço, com efusão:

- Oh Cavaleiro! eu tenho empenho em que você prove esse vinho com cuidado... É da minha propriedade do Corvelo... Faço muito gosto nele. Mas prove com atenção!

S. Ex. provou com devoção, como se comungasse. E com uma cortesia compenetrada para Barrolo que reluzia de gosto:

Uma delícia! uma verdadeira delícia!

Hem? Não é verdade? Eu, para mim, prefiro este vinho do Corvelo a todos os vinhos franceses, os mais finos... Até ali o nosso amigo Padre Soeiro, que é um santo, o aprecia!

Silencioso, esbatido por trás duma das altas jarras de cravos, Padre Soeiro corou, sorriu:

- Com muita água, infelizmente, sr. José Barrolo... O gosto pede, mas o reumatismo não consente.

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D. Maria, ajeitando as duas rosas que lhe ale. gravam o corpete de seda preta, sorria: -- Talvez seja, talvez seja...

Pois estou imensamente lisonjeado. Mas ainda distingo, como o Manuel Duarte. Se, da parte dela, essa simpatia toda é para o bom fim, não! Não, Santo Deus, não!... Mas se é para o mau fim, então, prima, cumprirei honradamente o meu dever, dentro das minhas forças...

D. Maria escondeu a face no leque, escanda. lizada. Depois, espreitando, com os agudos olhos a faiscar:

Oh primo, mas o bom fim é que convinha, porque a coisa é a mesma e são duzentos contos a mais! Gonçalo gritou de admiração:

Oh! esta prima Maria! Não há em toda a Europa ninguém mais esperto!

Todos curiosamente ansiaram por saber a nova graça da sr. D. Maria. Mas Gonçalo deteve as curiosidades:

Não se pode contar. É casamento. Então José Mendonça recordou a novidade picante, que desde a véspera remexia Oliveira:

Por casamento!... Que me dizem ao casamento da D. Rosa Alcoforado?

Barrolo, depois o Gouveia, até Gracinha, todos o proclamaram «um horror». Aquela perfeita rapa. riga, de pele tão cor-de-rosa, de cabelo tão cor de oiro, amarrada ao Teixeira de Carredes, um patriarca carregado de netos... Que desastre!

Pois ao Cavaleiro o casamento não parecia assim «desastrado». O Teixeira de Carredes, além de muito fino, de muito inteligente, era um velho verdejante, quase sem rugas - até bonito com aquele contraste do bigode escuro e da grenha riçada e branca. E na sr. D. Rosa, com todas as rosas da sua pele e todo o oiro dos seus cabelos, dominava «um não sei quê» de amolentado e de sorvado... Depois pouco esperta. E pouco cuidadosa - sempre mal penteada, sempre mal pregada...

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deira, do tempo do avô Damião - a que se daria, com socorro do Gouveia e do Tito, um assalto heróico. O Cavaleiro prometeu, já deliciado — tomando

da pesada bandeja de prata, que derreava o escudeiro, a sua chávena de café, sem açúcar.

E tu, com efeito, Gonçalo, agora não deves arredar da Torre. O teu papel é todo de presença na localidade. O Fidalgo da Torre está no meio das suas terras, por onde vai ser eleito para as Cortes. É o teu papel...

O Barrolo, com um riso enlevado, surdiu entre os dois amigos, que enlaçou ternamente pela cinta:

- E nós cá ficamos, ambos a trabalhar, o Cavaleiro e eu!...

Mas D. Maria, do canapé onde se enterrara, reclamou o primo Gonçalo «para negócios». Junto duma console, João Gouveia e Padre Soeiro, remexendo o seu café, concordavam na necessidade dum Governo forte. E Gracinha, com o primo Mendonça, revolvia as músicas sobre a tampa do piano, procurando o Fado dos Ramires. Mendonça tocava com corredio brilho, compusera valsas, um hino ao coronel Trancoso, o herói de Machumba mesmo o primeiro acto duma ópera, A Pegureira. E como não descortinavam o Fado com as quadras do Videirinha — foi justamente uma das suas val

sas, a Pérola, duma cadência amorosa e cansada lembrando a valsa do Fausto, que ele atacou, sem largar o charuto.

Então André Cavaleiro, que repenetrara vagarosamente na sala, repuxou o colete, afagou o bigode, e avançando para Gracinha, com um modo meio grave, meio folgazão:

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