A mao da punheta é a mesma da poesia lyrics

A mao da punheta é a mesma da poesia lyrics
estátua de Abu Nuwas em Bagdá, por Rasoul Ali (flickr)

Motivado pelas discussões desta semana sobre questões delicadas, como religião, sobretudo o Islã, radicalismo, humor e liberdade de expressão, uma discussão já recorrente, aliás (pelo menos desde a fatwa lançada contra Salman Rushdie por conta de Os Versos Satânicos algumas décadas atrás), e, para variar, vendo o adjetivo “medieval” sendo usado por aí como um termo pejorativo, eu acabei inevitavelmente sendo relembrado de certos autores medievais que fazem muitos dos nossos satiristas e comediantes atuais parecerem amadores – dos quais um, pelo menos, escreveu em árabe, e não só era muçulmano, como uma das figuras mais influentes da então florescente cultura muçulmana.

Nascido na Pérsia, em Ahvaz, antigo reino de Elam, hoje Irã, entre 756 e 757 (a data exata varia conforme a fonte), seu nome era Abu ‘Ali al-Hasan ibn Hani’ al-Hakami (Abu ‘Ali para os íntimos), mas ele ganhou o apelido Abu Nuwas por causa de seus cabelos (o nome significa algo como “Pai das Madeixas Pendentes”). Sua mãe era persa e não dominava a língua árabe, mas Abu Nuwas, que em sua infância e adolescência foi educado em Basra, onde se tornou um Hafiz (pessoa encarregada de decorar o Corão), foi um poeta inteiramente ligado à tradição árabe. Segundo Philip F. Kennedy, professor de estudos orientais e cultura islâmica, autor de Abu Nuwas: a Genius of Poetry (de onde tirei os poemas desta seleção), ele se via como herdeiro de uma poética pré-islâmica (evidenciada pelas referências constantes ao vinho, considerando que bebidas alcóolicas são haram), porém influenciado pela linguagem do Corão e cuja fé era “inabalavelmente muçulmana”. Ao mesmo tempo séria e cômica, sua poesia é marcada pela sexualidade burlesca (com muitos poemas homoeróticos), pelo vinho, pela sátira (às vezes direcionada até mesmo aos que lhe pagaram por panegíricos) e pela temática religiosa – Íblis, o diabo, é uma presença constante, ao mesmo tempo em que o poeta dialoga e refuta teólogos como Ibrahim al-Nazzam e demonstra uma notável tolerância religiosa, sobretudo em poemas como o “Diálogo com o Taberneiro Judeu”… mas há poemas ascéticos também, que, diferente do que se pode pensar à primeira vista, não são poemas de arrependimento quanto ao hedonismo escritos no final da vida, mas versos compostos ao longo de toda a vida, lado a lado com a poesia de sacanagem. Abu Usama Waliba ibn al-Hubab al-Asadi, autor também de poemas báquicos e homoeróticos, dos quais só fragmentos sobreviveram, foi outra influência, inclusive pessoal, tendo escolhido o jovem Abu Nuwas como discípulo. Outros eventos marcantes de sua biografia incluem a vida em Bagdá, onde arranjou o mecenato da família dos Barmecidas, sua posterior prisão (por heresia, ao que parece) e um tempo passado no Egito. Há vários relatos conflitantes sobre sua morte (que variam de envenenamento a morte por bebedeira), mas se sabe que ela se deu aos 59 anos, após a morte do califa Muhammad al-Amin. Qualquer que tenha sido o seu fim, Abu Nuwas acabou se tornando uma figura folclórica e aparece em várias histórias d’As mil e uma noites, além de ter influenciado poetas famosos como Hafez e Omar Khayyam.

Para compartilhar aqui no escamandro, eu selecionei alguns dos poemas contidos, em tradução inglesa, em Abu Nuwas: a Genius of Poetry. Esses quatro poemas tratam de uma variedade interessante de temas, ainda que todos relacionados à libertinagem: o primeiro é sobre masturbação (que me lembra um pouco os epigramas de Marcial); o segundo, um pouco menos explícito, trata da paixão do poeta por um rapaz cristão; o terceiro, sobre a clássica dicotomia entre razão e emoção, posta de forma burlesca; e o quarto e último, sobre uma situação bizarra (que nos soa surreal, para usar um termo anacrônico) em que mulheres roubam o pênis do eu-lírico. Pois é.

Não tive acesso aos originais, nem sou leitor do árabe, para além de um conhecimento rudimentar do alfabeto, mas tentei reproduzir algo da estrutura formal dos poemas em árabe dentro dos limites que me foram dados. Como comenta Kennedy, os poemas de Abu são escritos numa forma que emprega dois hemistíquios por verso (que ele e outros tradutores reproduzem através de dísticos, uma solução que mantive na tradução portuguesa), e todos os versos são rimados com um único som de rima, às vezes demonstrando também rimas internas e aliteração. Para reproduzir esse efeito dentro das possibilidades, optei por me permitir rimas toantes, à moda de João Cabral.

De resto, infelizmente, não conheço ainda nenhuma coletânea dedicada inteira à poesia de Abu Nuwas em português. Temos um poema, em tradução para o português de Paulo Azevedo Chaves, que foi postado no blogue da Modo de Usar, como parte de uma antologia organizada por Chaves e Raimundo de Moraes de poesia homoerótica (clique aqui), bem como um poema no blogue Acontecimentos de Antonio Cicero. Em todo caso, para mim, ele foi uma descoberta impressionante e um poeta que precisa muito ser mais lido.

Adriano Scandolara

 * * *

Vejo que os verdadeiros amantes buscam conforto
     em lágrimas e pranto quando o amor os atormenta.
Ayyub, porém, quando seu coração o lembra
     daquela cujo nome não direi, toma providência:
Ele pede um tinteiro e um chumaço de algodão,
     escreve o nome dela na mão e toca punheta.
Se os amantes se contentassem com o que
     te contenta, ninguém que ama jamais teria queixas.

*

Uma moléstia consome meu corpo exausto em lassidão:
     dói meu peito como se chama nele ardera.
Pois me apaixonei por alguém cujo nome não digo
     sem que dos meus olhos brotem duas ribeiras.
A lua cheia é seu rosto, e o sol, sua fronte. Seu olhar
     e seu peito são os da gazela.
Cingido do zunnar[1], ele caminha até a igreja;
     seu deus é o Filho e a Cruz, ele dissera.
Ó, quem dera eu fosse o padre ou metropolita de sua Igreja!
     não, quem dera
Eu fosse seu Evangelho e Escrituras.
     não, quem dera eu fosse a Hóstia ou o cálice que tempera
O vinho servido.
     não, quem dera eu fosse a espuma do vinho que bebera.
A fim de gozar de sua companhia, a esta moléstia pondo fim
     e a estes cuidados e miséria.

*

Travo uma guerra contra os meus olhos,
     meu coração e meu cacete;
Queria ter por meus olhos os de outrem
     e um coração que não este,
E em vez do meu pau o de um velho
     que os dias de ‘Ad[2] guarda ainda em mente.

*

Se algum dia fores dormir com Abu Riyah,
     dorme com a mão na espada segurando o cabo,
Pois ele tem umas mulheres que,
     ao anoitecer, roubam as pontas dos dardos;
Uma vez, quando dormi com ele, elas roubaram meu caralho
     que só peguei de volta após o sol ter raiado;
Ele voltou todo cheio de arranhões
     e gemendo pelos seus machucados…

Notas

[1] zunnar: um tipo de cinto ou faixa usada por cristãos e judeus (i.e. os dhimmah (singular dhimmi), ou não-muçulmanos) para distingui-los dos muçulmanos, tal como acordado no chamado “Pacto de Umar”.

[2] ‘Ad: antiga tribo árabe pré-islâmica mencionada no Corão como exemplo de um povo destruído por Deus.

(poemas de Abu Nuwas, comentário e tradução de Adriano Scandolara, com base em Philip F. Kennedy)