É possível aplicar diretamente os direitos humanos nas relações jurídico privadas?

Parte II

A observância, a prática e a defesa dos direitos sociais, a sua inviolável contextura formal, premissa indeclinável de uma construção material sólida desses direitos, formam hoje o pressuposto mais importante da dignidade da pessoa humana nos quadros de uma organização democrática da Sociedade e do Poder. Em razão disso, essa dignidade da pessoa humana foi erigida por fundamento de um novo Estado de Direito, no artigo 1o da Carta Constitucional brasileira.
Com efeito, sem a concretização dos direitos sociais não se poderá alcançar jamais ?a Sociedade livre, justa e solidária?, contemplada constitucionalmente como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3o). Cabe ressaltar que não há distinção de grau nem de valor entre os direitos sociais e os direitos individuais. No que concerne à liberdade, ambas as modalidades são elementos de um bem maior já mencionado, sem o qual tampouco se torna efetiva a proteção constitucional: a dignidade da pessoa humana.
É oportuno registrar a necessidade da hermenêutica constitucional a fim de socorrer tais direitos, para fazê-los realmente cumpridos e levados a sério em ordenamentos onde os postulados de Justiça e igualdade ainda não possuem mecanismos suficientes de concretização. Em verdade, para tornar eficazes os direitos sociais, o Estado precisa ministrar duas distintas formas de garantia:

a garantia jurídica e a garantia econômica; a primeira de natureza formal, a segunda de natureza material. Com respeito aos direitos fundamentais, a concepção liberal entendia, dogmaticamente, que bastava a garantia jurídica, não havendo necessidade da garantia econômica, porquanto esta já fora proporcionada pelo sistema mesmo de regulação de bens da sociedade burguesa, que fazia, assim, da abstenção intervencionista um artigo de fé, talvez o cânone mais festejado de seu Estado de Direito. (BONAVIDES, p.596)

Saliente-se, que os fatores econômicos objetivos e reais seriam decisivos para concretizar os direitos sociais. Quanto mais desfalcada de bens ou mais débil a ordem econômica de um país constitucional, mais vulnerável e frágil nele a proteção efetiva dos sobreditos direitos; em outros termos, mais programaticidade e menos juridicidade ostentam.
Enfim, só uma hermenêutica constitucional dos Direitos Fundamentais em harmonia com os postulados do Estado Social e Democrático de Direito pode iluminar e guiar a reflexão do jurista para a resposta alternativa acima esboçada, que tem por si a base de legitimidade haurida na tábua dos princípios gravados na própria Constituição (arts. 1o, 3o e 170) e que, conforme vimos, fazem irrecusavelmente inconstitucional toda inteligência restritiva da locução jurídica ?direitos e garantias individuais? (art. 60, 4o, IV), a qual não pode, assim, servir de argumento nem de esteio à exclusão dos direitos sociais.
Desta forma, cabe ao Poder Judiciário, observando tais aspectos, dar plena eficácia aos Direitos Fundamentais não deixando apenas no papel as garantias constitucionais que foram criadas pelo legislador constituinte. Vale lembrar, que julgar com justiça apresenta-se como o desafio constante do juiz moderno, uma vez que se espera uma decisão não apenas jurídica mas, também, de conteúdo social. Afinal, muda a sociedade, a forma de pensar o Estado, surgem novas tecnologias, a globalização econômica passa a ser uma realidade; tudo isso conduz a emergência de novos Direitos Fundamentais ? civis e políticos ? que merecem a sua proteção.

2 DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS VERSUS INTERNACIONALIZAÇÃO DA ECONOMIA. A NECESSÁRIA PROTEÇÃO DA PESSOA NA ATIVIDADE ECONÔMICA

Com o surgimento da Organização das Nações Unidas, em 1945, e com a aprovação e proclamação da Declaração dos Direitos Humanos, de 1948, temos os grandes marcos da internacionalização dos Direitos Humanos. A partir daquela data considera-se cidadãos não apenas aos detentores dos direitos civis e políticos, mas a todos aqueles integrantes do âmbito da soberania de um Estado e deste Estado recebem uma variedades de direitos e, também, de deveres.
O processo de internacionalização dos Direitos Humanos traça uma nova concepção de direitos de cidadania que, outrora, com a Declaração dos Direitos do Homem e dos Cidadãos, de 1789, sob o influxo da burguesia do liberalismo econômico, expressavam o conjunto dos direitos individuais e políticos. Antes disso, a proteção aos direitos do homem limitava-se a apenas algumas legislações internas, como a inglesa de 1684, a americana de 1778 e a francesa de 1789.
A nova concepção de cidadania buscou afastar-se do conceito de soberania estatal absolutista, que concebia os Estados como únicos sujeitos de direito internacional público, com o escopo de salvaguardar os Direitos Fundamentais de todos os cidadãos. Nesse contexto, os indivíduos passam a ser sujeitos de Direito Internacional, que é dotado de mecanismos processuais eficazes para o resguardo desses direitos.

2.1 DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS VERSUS INTERNACIONALIZAÇÃO DA ECONOMIA

O Direito Internacional dos Direitos Humanos vem se consolidando após a segunda Guerra Mundial (1939-1945), oriundo dos horrores do nazismo, foi construído a partir de uma normatividade internacional, até então inexistente. A estrutura normativa de proteção internacional aos Direitos Humanos, além dos instrumentos de proteção global, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, abrange, ainda, os instrumentos de proteção regional, pertencentes aos sistemas europeu, americano, asiático e africano. Os referidos sistemas são complementares, sendo que fica ao alvitre do cidadão que sofreu vulneração de direitos a escolha do aparato que mais o beneficie.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos se afirma a cada dia como um novo ramo do direito, dotado de princípios e regras, tendo como objetivo maior a proteção da dignidade da pessoa humana no âmbito nacional e internacional. O ?direito a ter direitos?, segundo Hannah Arent (2000), passou a ser a referência fundamental de todo o processo internacionalizante, e não seria diferente com relação ao processo de transnacionalização dos mercados. A internacionalização da economia é um processo que se acentuou ao longo da segunda metade do século XX, tendo como características marcantes a instantaneidade das informações e da comunicação, a padronização dos meios técnicos e a interconexão das economias de diferentes países. Embora a globalização econômica seja um fator preponderante, responsável pelo desenvolvimento das relações internacionais, por agir sob a égide das forças livres, ela acaba, muitas vezes, comprometendo os recursos naturais e o meio ambiente como um todo.
Quando se falou em globalização econômica pela primeira vez, a idéia foi colocada como uma panacéia: novas tecnologias e métodos gerenciais promoveriam, por si só, o aumento geral da produtividade, o bem-estar de todos e a redução do abismo social dentro e fora das nações. Entretanto, passados poucos anos, verificou-se situação diversa, com o acúmulo de riqueza nas mãos de poucos e o aumento das desigualdades sociais.
Ao lado dessa trágica realidade gerada pela globalização econômica, observou-se também a crescente degradação do meio ambiente e o uso descontrolado dos recursos naturais. Portanto, indispensável se faz que a sociedade recorra à pesquisa científica e tecnológica para auxiliar o almejado desenvolvimento sustentável.

2.2 A NECESSÁRIA PROTEÇÃO DA PESSOA NA ATIVIDADE ECONÔMICA

A globalização propicia, em tese, um dinamismo econômico, da qual decorre a aceleração do progresso devido ao intercâmbio de conhecimento e às tecnologias. Entretanto, ainda existem países que se recusam a cumprir protocolos assinados para a preservação do meio ambiente.
Nesse contexto, como regular os direitos civis e políticos frente à transnacionalização dos mercados? Na regulação desses direitos é preciso encampar o pensamento de que a proteção dos Direitos Humanos, sejam civis ou políticos, na atualidade, envolve um exame interdisciplinar, ?concita o intérprete a harmonizar fontes nacionais e supranacionais, reformula, em definitivo, o conceito de ordem pública, que se expande para os domínios da atividade econômica privada? (TEPEDINO, 1988, p. 107).
Verifica-se duas tendências contraditórias:

de um lado, o intervencionismo supranacional sobre o direito interno da maior parte dos países europeus e americanos, a implicar rigoroso planejamento e pouquíssimo espaço para a soberania, valendo-se os centros de decisão de práticas notadamente autoritárias, na fixação das metas a serem alcançadas por cada país; e, de outro, um excessivo liberalismo entre as transferências de tecnologia, mão-de-obra e investimentos, com a derrubada das barreiras alfandegárias nas relações internacionais, como forma de formar mercados supranacionais. Daí decorrem diversas conseqüências em termos hermenêuticos, no que tange aos direitos humanos na atividade econômica privada. (TEPEDINO, 1988, p. 114).

Portanto, há um choque entre as fontes do ordenamento interno e as fontes externas. Gustavo Tepedino (1988), sustenta que esse contraste normativo não pode aniquilar os valores internos que garantem a estabilidade social e o respeito aos princípios constitucionais nacionais. Lembra, ainda, que ?prevalece, em todo esse complexo processo, a ótica e a lógica da maximização dos resultados e da minimização dos custos.?
Nesse quadrante, nota-se que os direitos civis, políticos e sociais dos países subdesenvolvidos passam a ser vistos como ?custo econômico da produção, no panorama da competição internacional? (TEPEDINO, 1988, p. 115).
Há dois grandes desafios: a implementação de investimentos em fatores que tragam competitividade internacional e os investimentos sociais, que garantam o exercício da cidadania e uma cultura de Direitos Humanos. Sustenta Gustavo Tepedino (1988, p.115) que a busca da competitividade

acaba por significar uma importação de produtos já elaborados ? a melhores preços de produção ? e a exportação dos empregos necessários a produzi-los, já que outros países se encontram mais preparados tecnologicamente para a competição, resultando em ulteriores fatores de desemprego, exclusão social, atentados a valores existenciais, sendo certo que, no caso brasileiro, os modelos anteriormente adotados de protecionismo interno não trouxeram competitividade, senão a consolidação de grandes cartéis e monopólios.

É imperioso reconhecer a necessidade de se construir um modelo econômico que gere, ao mesmo tempo, riqueza e bem-estar, concomitantemente à promoção da coesão social e da preservação da natureza. O grande desafio da humanidade no século XXI está em desenvolver estratégias que garantam a sustentabilidade requerida, seja no âmbito social, econômico, jurídico, ecológico e cultural, a fim de resguardar os direitos de cidadania e obter Justiça social.

3 A PRODUÇÃO LEGISLATIVA ANTE A GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA. SUPERAÇÃO DO INDIVIDUALISMO E A CLÁUSULA GERAL DA PROTEÇÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NAS RELAÇÕES PRIVADAS

A humanidade vem se defrontando com diversos problemas típicos da sociedade pós-industrial, dentre eles a dificuldade em compatibilizar o crescimento econômico com a proteção ao meio ambiente. Verifica-se que não há uma divisão eqüitativa dos benefícios do desenvolvimento tecnológico e econômico-financeiro entre as nações. Na verdade, há uma assustadora concentração de capital nos países desenvolvidos em detrimento dos demais, levando a um desequilíbrio socioeconômico e tecnológico, daí decorrendo a miséria, a pobreza, o subdesenvolvimento, as graves injustiças sociais, a corrupção, as epidemias.
Esses problemas afetam todo o globo, gerando efeitos que se refletem em todas as direções, sendo mais sentidos no âmbito do consumidor e do ambiente, despertando a consciência de que urge implementar um consumo e um desenvolvimento sustentáveis. Nessa trajetória de descompassos econômicos e sociais, os direitos do consumidor e do meio ambiente foram alçados à categoria de novos Direitos Humanos Fundamentais.
Desta forma, indaga-se: como é possível a produção legislativa em contextos marcados pela velocidade e intensidade das transformações econômicas e pela proliferação de situações sociais novas e ainda não estruturadas? A produção legislativa não consegue atender a essas exigências da sociedade contemporânea.

3.1 AS MUDANÇAS SOCIAIS E ECONÔMICAS, A PRODUÇÃO LEGISLATIVA E O REFLEXO NA ATIVIDADE JUDICIAL. INSUFICIÊNCIA DA TÉCNICA LEGISLATIVA REGULAMENTAR

Atualmente, observa-se que, além do controle da constitucionalidade, aos tribunais, em geral, compete, a garantia direta contra lesões dos Direitos Fundamentais, a defesa de interesses difusos e o enfrentamento da obscuridade e ambigüidade dos textos legislativos, por vezes deliberada, em face dos difíceis processos de negociação. O juiz, como agente político (não partidário), é chamado a contribuir para a efetivação dos direitos sociais, procurando dar-lhes sua real densidade e concretude. Verifica-se que a politização do juiz deriva do fato de que ele soluciona litígios aplicando normas, que são condutoras de valores e expressões de um poder político. Não existe, assim, norma neutra. Logo, se o juiz é um aplicador de normas, não existe juiz neutro. Em verdade, no marco do Estado Constitucional de Direito, a atividade política e a atividade judicial estão estreitamente unidas pelo império do Direito.
Um outro aspecto da politização do juiz está no fato de que as constituições modernas contemplam normas de conteúdo poroso, a ser complementado pela praxis. E o Poder Legislativo derivado, por sua vez, em muitas situações, não só não se esforça para preencher o vazio, senão prima por seguir a mesma técnica da legislação aberta, indeterminada. Incapaz de solucionar alguns megaconflitos modernos, muitas vezes o legislador acaba atribuindo ao Judiciário a responsabilidade de moldar a norma final aplicável.
O Judiciário não somente passou a solucionar os conflitos intersubjetivos de interesses, segundo o modelo liberal individualista, como também a atuar como órgão calibrador de tensões sociais, solucionando conflitos de conteúdo social, político e jurídico, além de implementar o conteúdo promocional do Direito contido nas normas constitucionais e nas leis que consagram direitos sociais. De qualquer forma, ?essa politização do juiz, que é inegável dentro do Estado Constitucional de Direito, concebido como fonte e limite do direito, não pode, no entanto, chegar ao extremo de lhe permitir a substituição da racionalidade jurídica pela racionalidade política. (... omissis). ? (GOMES, 1997, p. 47).
No que tange ao contexto antinômico, percebe-se que o produto legislado não está, também, imune a antinomias, ou seja, duas ou mais normas podem apresentar-se conflitantes. Nesse conflito de normas, a doutrina desenvolveu critérios mediante princípios jurídico-positivos para solucionar as antinomias aparentes. Quanto ao contexto lacunoso, verifica-se que o produto legislado está impregnado dos problemas relativos à incompletude do sistema jurídico, na visão de Uadi Lammêgo Bulos (1997, p. 127). É importante registrar que não há unanimidade na doutrina quanto à questão de existirem ou não lacunas na ordem constitucional. Cuida-se de questão aberta, jungida à concepção jurídica de sistema. Para Bulos (1997, p.127), se entendermos o sistema jurídico como sendo aberto, dinâmico, incompleto, abrigando normas, fatos e valores, ?não há como considerar o dogma da plenitude hermética da ordem constitucional, do mesmo modo como não há uma plenitude da ordem jurídica em geral.? Com a devida venia ao aludido mestre, filio-me ao pensamento sistemático e ao conceito de sistema na Ciência do Direito na visão de Claus-Wilhelm Canaris (1996), no que concerne à ordem e à unidade como características do conceito geral de sistema, e, principalmente, à Teoria do Ordenamento Jurídico de Norberto Bobbio (1999), no sentido de pensar o sistema como uma unidade, com coerência e completude lógicas.
O princípio da unidade do sistema do Direito positivo é homólogo ao princípio da unidade no conhecimento jurídico-dogmático. A unidade de um sistema de normas é decorrente de um superior fundamento de validade desse sistema ? a Constituição positiva, ou, em nível epistemológico, a Constituição em sentido lógico-jurídico, ou seja, a norma fundamental. A unicidade decorre da possibilidade também gnoseológica (lógico-transcedental) de se poder conceber todo o material jurídico dado como um só sistema. O sistema da Ciência do Direito é dotado de critérios que permitem decidir se uma dada proposição pertence ou não ao sistema, bem como se ela apresenta coerência interna, ou seja, compatibilidade entre os elementos proposicionais integrantes dos subsistemas e, ainda, completude.
A experiência demonstra que há contradições entre as proposições normativas de um mesmo nível, entre leis constitucionais, entre leis ordinárias, entre regulamentos e entre outros atos normativos. Tais contradições são elimináveis pelo princípio extralógico da norma de nível mais elevado sobre a norma de nível inferior, ou pelo critério, também extralógico, da sucessão temporal (norma de mesmo nível revoga norma anteriormente promulgada); da norma geral que admite a contraposição contraditória de uma norma especial, estatuindo para todos os casos compreendidos num conjunto, menos para alguns que se excetuam.
Dentro do sistema jurídico é possível encontrar solução para qualquer problema, pois, nos casos de aparente incompletude da norma, os princípios do ordenamento jurídico apresentam a resposta para essas antinomias. Ainda que existam vazios normativos dentro do sistema, tais lacunas podem ser preenchidas ou colmatadas mediante a analogia, os costumes, os princípios gerais de direito e a eqüidade, com a observância dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade. Nota-se que o novo paradigma pós-positivista baseia-se na juridicidade dos princípios.

3.2 SUPERAÇÃO DO INDIVIDUALISMO E A CLÁUSULA GERAL DA PROTEÇÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NAS RELAÇÕES PRIVADAS

Antigamente predominava a visão de que o Direito Civil seria um ramo distanciado do Direito Constitucional. Entretanto, com a dinâmica do mundo moderno, esta concepção tornou-se ultrapassada, sendo imperativa a análise da constitucionalização e da publicização no âmbito civil. Tal mudança justificou-se em virtude da necessidade de acompanhar os novos valores e os novos direitos salvaguardados pela Carta Constitucional de 1988, sendo fundamental que o operador do direito interprete e aplique o Novo Código Civil à luz da Constituição.
A constitucionalização é o processo que submete o direito positivo aos fundamentos de validade estabelecidos na Constituição e a publicização é o processo de intervenção no setor legislativo infraconstitucional que objetiva reduzir o campo da autonomia privada com o escopo de tutelar a parte mais vulnerável da relação jurídica. A publicização apresenta-se como um fenômeno intervencionista estatal que tem gerado a autonomia de vários ramos novos do direito, dentre eles o Direito do Consumidor.
Verifica-se que o Estado brasileiro, após a Constituição de 1988, deixou de lado o modelo Liberal e passou a um paradigma Social, consagrando direitos individuais e coletivos que alcançam várias dimensões da cidadania. O Código Civil brasileiro de 1916 possuía uma ideologia liberal oitocentista, impregnada por um marcante individualismo jurídico. Assim, evidenciou-se o grande abismo entre os princípios e valores do Código Civil de 1916 e os princípios e valores presentes na sociedade pós-industrial, revelando a necessidade de romper com os padrões civilistas e adequá-los aos atuais princípios e regras constitucionais.
A complexidade da vida contemporânea demonstrou a incompatibilidade do Código Civil de 1916 com a ideologia constitucional estabelecida após 1988, não recomendando a continuidade daquele Código, seja pela emersão de novos direitos que passaram a exigir tratamento multidisciplinar e para os quais aquela codificação se mostrou inadequada, seja pelo fato de a patrimonialização das relações ali presentes contrastar com o princípio da dignidade da pessoa humana consagrado pela Carta Constitucional brasileira de 1988.
O grande desafio da atualidade é a repersonalização efetiva no Direito Civil, ou seja, o reposicionamento da pessoa humana como elemento central, passando o patrimônio a papel secundário. Outro desafio importante está na eficácia privada dos Direitos Fundamentais. Para tanto, é necessário efetivar concretamente os direitos humanos e de cidadania.
No Novo Código Civil observa-se a presença de valores como: afetividade, essencial valor da família; a função social como conteúdo merecedor de destaque, e não apenas como limite da propriedade, nas suas diversas perspectivas; o princípio da equivalência material das prestações e a defesa do contratante hipossuficiente, no contrato.
Todos esses valores e princípios devem ser considerados pelo aplicador do direito, uma vez que foram convolados a princípios e regras de índole constitucional, devendo nortear a realização do Direito Civil. Assim, o Novo Direito Civil evoluiu rumo à concretização de todos os Direitos Fundamentais das pessoas, a fim de construir uma sociedade mais justa e cada vez menos excludente.

4 CRÍTICA QUE O NOVO PARADIGMA DA CIÊNCIA PÓS-MODERNA TRAZ PARA A CIÊNCIA DO DIREITO EM FACE DA IMPRESCINDÍVEL TUTELA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DE CIDADANIA

A crítica que o novo paradigma da ciência na pós-modernidade apresenta para a Ciência do Direito reside na própria crise do Sistema Judiciário no sentido da busca de uma nova função social da magistratura e na construção de um novo perfil rente à pós-modernidade. A magistratura consciente dessa crise e da necessidade da sua superação deve, segundo Bistra Stefanova Apostolova (1998), ?questionar os imperativos da cultura jurídica liberal, que se constitui como fator impeditivo de sua transformação em mediadores qualificados das novas formas de conflituosidade?.
A função dos juízes, ao longo do século XIX, estava orientada no sentido de legitimar a atuação do legislador que possuía um lugar de destaque político no contexto da distribuição dos poderes constitucionais. O distanciamento da atuação do juiz do campo da política visava assegurar a reprodução fiel do direito positivo legislado na resolução dos conflitos individualizados, garantindo, desta maneira, os direitos e as liberdades individuais. Em síntese, esse tipo de configuração das funções dos Magistrados correspondia ao entendimento de legitimidade e de distribuição do poder político num sistema orientado pelos imperativos do liberalismo.
A partir do final do século XIX, devido às transformações políticas, econômicas e culturais que marcaram o desenvolvimento do Estado moderno, começou também a ser modificado o significado sociopolítico das funções dos magistrados. No entanto, consoante Boaventura de Sousa Santos, foi só após a Segunda Guerra Mundial que, nos países centrais, se consolidou uma nova forma de Estado, o Estado-Providência. No que diz respeito aos países periféricos e semiperiféricos, o referido autor observa a não-adequação dessa cronologia às realidades históricas desses países, nos quais até os direitos de cunho liberal, chamados também de direitos de primeira geração ou direitos clássicos, são constantemente desrespeitados (SANTOS, 1996, p. 34-43).
No Brasil do final do século XX, a questão da implementação plena das bases do Estado de Bem-Estar Social continua sendo um tema polêmico. Não obstante, a cultura jurídica e as práticas de aplicação do direito apresentam, nas últimas duas décadas, modificações significativas que as aproximam às características do Direito Social, base de sustentação jurídica e política do Estado-Providência (MACEDO JUNIOR, 1995, p.51).
Com o aumento da complexidade do Estado e o surgimento de novos grupos e atores sociais, fruto da atuação acentuada dos movimentos sociais no final da década de 70, a Sociologia do Direito constatou que o modelo liberal, no qual se embasava o exercício da magistratura, entrou definitivamente em crise, determinando a erosão da legitimação clássica da atuação dos juízes. Verifica-se, naquele período, a perda da importância do sistema judicial na resolução dos conflitos e o aumento de mecanismos privados de solução de litígios de caráter anti-social, tanto entre as camadas mais pobres da população, com o extermínio de moradores de rua, como entre as mais ricas, que, valendo-se do seu poder econômico, nem sempre se submetem à normatividade estatal.

4.1 CRÍTICA QUE O NOVO PARADIGMA DA CIÊNCIA PÓS-MODERNA TRAZ PARA A CIÊNCIA DO DIREITO

Nesse contexto de crise institucional, o Poder Judiciário, mediante uma atuação criativa, pragmática e social do juiz, pretende superar tais desafios. Neste mister, se de um lado, o magistrado passa a ser protagonista ativo na efetiva concretização dos Direitos Fundamentais e de cidadania, por outro, deve embasar suas decisões numa visão humanista, multidisciplinar ? melhor dizendo, transdisciplinar ?, e pragmática, buscando novos espaços para o consenso.
Para Bistra Stefanova Apostolova, o sinal de uma práxis judicial adequada à demanda pós-moderna por direitos surgiu na época da transição democrática dos anos 80, protagonizada pela atuação do movimento Juízes Alternativos e da Associação Juízes para a Democracia. (APOSTOLOVA, 1998).
Eliane Botelho Junqueira interligou o surgimento dos Juízes Alternativos com o processo de democratização que tornou visível o confronto entre a ordem jurídica liberal e os conflitos de natureza coletiva, processo esse derivado da necessidade de garantia de direitos sociais mínimos para a maioria da população (JUNQUEIRA, 1993).
Os juízes desse Movimento entendem o Direito na sua função transformadora da sociedade, orientada pelos valores jurídicos do Estado Democrático de Direito, positivados na Constituição Federal. Não é diversa a essência do uso alternativo do Direito, cujos adeptos se posicionam no sentido da defesa da parte mais fraca numa relação jurídica, na tentativa do resgate da dimensão social da atividade do juiz. Os referidos movimentos de juízes críticos visavam oferecer respostas adequadas à demanda por direitos dos Novos Movimentos Sociais, que questionavam a racionalidade formal do ordenamento jurídico, colocando em xeque o paradigma que está na base da atuação tradicional do Judiciário, abrindo a discussão sobre a função social da atuação do juiz no contexto da perda da legitimidade das funções clássicas das instituições estatais.
José Eduardo Faria sintetizou três linhas fundamentais para a compreensão da atuação dos adeptos ao direito crítico, que explicitam os termos da ruptura dos movimentos de juízes críticos com o paradigma positivista-legalista dominante na cultura jurídica brasileira. Em primeiro lugar, esses juízes percebem o ordenamento jurídico como um sistema incompleto e aberto, levando em consideração que ele reproduz as contradições sociais, econômicas e políticas da complexidade da sociedade brasileira. Em segundo lugar, os juízes críticos procuram a Justiça substancial e não a Justiça formal, valorizando as relações concretas dos homens e enfatizando, nesse sentido, a importância da contextualização da lei. E, por último, esses juízes vêem a sentença judicial não como fruto da subsunção lógica e obrigatória, mas como compromisso político entre exigências inconciliáveis (FARIA, 1992).
As interpretações divergentes dos textos legais começaram a transformar paulatinamente o processo jurídico, acentuando uma visão contemporânea do processo, segundo o qual o espaço do Judiciário transformou-se em uma reprodução do atual cenário político-social brasileiro marcado pelas ações coletivas e conflitivas dos vários atores sociais. Os conteúdos das sentenças sobre uma mesma questão variam em função das inclinações ideológicas e doutrinárias dos magistrados, fato revelador da luta simbólica entre os profissionais do campo (FARIA, 1992).
José Geraldo Sousa Júnior, no seu livro Para uma crítica da eficácia do Direito, estudou o pluralismo jurídico sob uma perspectiva sociológica, entendendo que no mesmo espaço político podem existir diversos sistemas jurídicos, decorrentes da multiplicidade das fontes do direito. Ele considera necessário fazer algumas diferenciações no conceito do pluralismo, já que percebe a insuficiência da convivência plural sob os critérios da liberdade formal e da tolerância ?para a superação da desigualdade real subjacente às conotações sócio-econômicas dos diferentes sistemas de valores?; nesse sentido, o pluralismo valorativo deveria fomentar o desenvolvimento da consciência crítica dos homens, visando à superação da desigualdade real (SOUSA JÚNIOR, 1984).

Continua na Parte III

Como os direitos fundamentais são aplicados nas relações privadas de acordo com a teoria da eficácia horizontal indireta?

Teoria da Eficácia Horizontal Indireta Modelo adotado pela Alemanha e por grande parte da doutrina, reconhece um direito geral de liberdade. Trata-se da possibilidade de os participantes de uma relação privada afastarem as disposições de direitos fundamentais, sem a qual a liberdade contratual estaria comprometida.

Qual a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas?

A incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas é mais conhecida na doutrina como eficácia horizontal dos direitos funda- mentais. Entretanto, esse termo talvez não seja o mais apropriado, pois a horizontalidade passa a ideia de igualdade, equilíbrio de condições entre as partes.

É plenamente possível no ordenamento jurídico brasileiro a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas?

Destarte, os direitos fundamentais têm plena aplicação nas relações privadas, podendo ser invocados diretamente, independentemente de qualquer mediação do legislador infraconstitucional, privilegiando-se, com isso, a atuação do magistrado em cada caso concreto.

Como é denominada a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares?

A concepção de que os direitos fundamentais obrigam não somente o Estado, mas também os particulares, no sentido de que devem respeitar tais direitos em suas relações privadas, é denominada pela doutrina constitucionalista de “eficácia horizontal” dos direitos fundamentais.