O que é uma ideologia científica?

    A área da psicologia que estuda seres humanos traz como peculiaridade o fato de o objeto estudado ser o próprio sujeito, o que levanta algumas questões para a produção científica nesta área. Uma delas é se a ciência é a única forma de se conhecer a psicologia humana, ou se a arte e a filosofia também não podem contribuir consideravelmente para esse conhecimento. Outra se refere ao caráter social desse objeto psicológico, uma vez que o ser humano não pode ser reduzido somente às suas características naturais; se isso procede, o estudo psicológico não pode ser totalmente independente da teoria da sociedade que expressa o movimento desta sociedade. Essa última questão indica a necessidade da reflexão teórica que precisa considerar não somente os fatos, mas o que os determina. Considerando somente essas duas questões, tem-se que a distância do objeto que o conceito científico requer é distinta daquela própria à arte e à teoria; essas últimas necessitam de aproximação do objeto.

    Ao final da década de 1960, a ciência e a tecnologia foram pensadas por (Habermas 1968/1983Habermas, J. (1983). Técnica e ciência enquanto ideologia. In W. Benjamin, M. Horkheimer, T. W. Adorno& J. Habermas, Textos escolhidos (Z. Loparic & A. M. A. C. Loparic, trad., pp. 313-343). São Paulo, SP: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1968)) em seu caráter ideológico. Sem negar a contribuição da racionalidade científica e técnica para a emancipação social, destacou a invasão da esfera do quadro institucional pela lógica do agir instrumental: a linguagem, as normas, os valores seriam mediados por uma lógica externa aos sujeitos, apropriada à transformação da natureza para a sobrevivência humana, mas não ao que nomeou "quadro institucional". Isso se expressou em uma consciência tecnocrática que:

    é, por um lado, "menos ideológica" que todas as ideologias anteriores; pois ela não possui a violência opaca de um ofuscamento que joga apenas com a ilusão de satisfação dos interesses. Por outro lado, a vítrea ideologia de fundo hoje dominante, que transforma a ciência em fetiche, é mais irresistível e mais abrangente do que as ideologias do tipo antigo, pois com o velamento das questões práticas, ela não somente justifica um interesse de dominação parcial de uma classe determinada e oprime a necessidade parcial de emancipação por parte de outra classe, como também atinge o interesse emancipatório da espécie humana, como tal. (p. 335)

    Com a ocultação das "questões práticas", isto é, políticas, a sociedade pode se reproduzir com os interesses daqueles que detêm não só o poder econômico, mas também político - esse último com a aparência do saber científico-administrativo. A ciência se torna, involuntariamente, reacionária. Tal visão cientificista implica pensar todas as esferas da realidade por meio de categorias lógicas, sistemáticas: os conflitos individuais são reduzidos a problemas psicológicos; as contradições sociais, a imperfeições lógicas do sistema; a política é reduzida a questões administrativas. Não é casual que nas eleições para os cargos executivos tenham preferência de parcela grande da população os políticos que apresentam a imagem de bons administradores; o que importa, nos dias que correm, não é mais o conhecimento, a sabedoria, mas o como fazer, o método, o procedimento. Nas palavras de (Horkheimer e Adorno 1947/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985). Dialética do esclarecimento (G. de Almeida, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1944/1947)): "O que importa não é aquela satisfação que, para os homens, se chama 'verdade', mas a 'operation', o procedimento eficaz". (p. 20)A racionalidade do método científico e a lógica dedutiva seriam a solução para todos os problemas. No entanto, segundo (Horkheimer e Adorno 1947/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985). Dialética do esclarecimento (G. de Almeida, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1944/1947)), tanto a lógica subjetiva quanto o domínio dos fatos, por eliminarem a distinção e a relação entre sujeito e objeto, recaem na esfera do mito, que pretendiam superar: a lógica do sujeito, pois reduz o que é objeto às categorias formais do pensamento, estabelecidas pelas experiências históricas do controle humano sobre a natureza, perdendo assim a "crítica da razão pura" delimitada por Kant; o culto aos fatos, que mais ilusório do que o pensamento que pretende negar, ignora que o próprio método científico é produto do sujeito, e, por isso, somente objetivo no que diz respeito à apropriação dos objetos conforme os interesses humanos. Se o conhecimento se produz na relação entre sujeito e objeto, a negação de cada um dos polos converte-se em falso conhecimento. Conforme (Horkheimer e Adorno 1947/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985). Dialética do esclarecimento (G. de Almeida, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1944/1947)), ao se negar o objeto, há a presença da paranoia, um pensar que não é delimitado pelos objetos; ao se negar o sujeito do conhecimento, resigna-se à duplicação da realidade, abdicando-se do pensamento:

    A profundidade interna do sujeito não consiste em nada mais senão a delicadeza e a riqueza do mundo da percepção externa. Quando o entrelaçamento é rompido, o ego se petrifica. Quando ele se esgota, no registro positivista de dados, sem nada dar ele próprio, se reduz a um simples ponto; e se ele, idealisticamente, projeta o mundo a partir da origem insondável de si mesmo, se esgota numa obstinada repetição. Nos dois casos, ele sacrifica o espírito. (p. 176)

    A ciência e a técnica são produtos das relações históricas entre os homens e o mundo. Nesse sentido, devem ser entendidas pela mediação que a totalidade social estabelece. São, como defende (Adorno 1972/1983Adorno, T. W. (1983). Introdução à controvérsia sobre o Positivismo na sociologia alemã. In W. Benjamin, M. Horkheimer, T. W. Adorno & J. Habermas, Textos escolhidos (W. L. Maar, trad., pp. 209-257). São Paulo, SP: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1972)), simultaneamente força produtiva e relações de produção: auxiliam no progresso que tem como objetivo superar a miséria material e intelectual, e também são responsáveis pela reprodução da desigualdade social, na medida em que sua pretensa neutralidade serve aos interesses sociais mais fortes. Dessa forma, não cabe negar a importância do saber científico e técnico, tampouco ignorar que servem igualmente à reprodução da miséria social.

    Essa racionalidade científica e técnica, em nossos dias, está fortalecida; na Academia isso é esperado, mas mesmo assim deve-se perguntar se ela não restringe o saber em vez de ampliá-lo. Como já apontava (Adorno 1969/1993Adorno, T. W. (1993). Sobre sujeto y objeto. In Consignas (Rámon Bilbao, trad., pp. 143-158). Buenos Aires: Amorrotu. (Trabalho original publicado em 1969)), essa racionalidade que termina por hipostasiar a separação entre sujeito e objeto revela-se na maneira pela qual o método pré-definido, imposto com indiferença em relação a seu objeto, impede a observação de que o dado colhido é mediado socialmente. No caso da psicologia, isso redunda em duas tendências: as expressões psicológicas conformadas pelo método são tratadas como se tivessem início em si mesmas, como dados puros, ou então os estudos impõem uma organização e classificação de fenômenos psicológicos um tanto arbitrária, revelando a perda de relação com o objeto e a tendência de projeção do sujeito à sua revelia. Ainda que o processo de socialização condicione uma coisificação do homem que permite seu estudo por meio de métodos assim conformados (escalas e questionários, por exemplo), a questão que se impõe é justamente como a pesquisa apoiará uma discussão que não se limite a afirmar tal estado de coisas, sustentando a crítica à coisificação do espírito.

    A ênfase na pesquisa científica, que tem sua importância sobretudo em uma universidade, já transpôs os limites dessa e já é oferecida no Ensino Médio e até na pré-escola por meio do ensino de métodos de observação. O ensino anterior à universidade que tinha um caráter geral e visava a socialização para além de uma forma específica de produção de saber, permitindo em alguma medida tanto a adaptação à totalidade social quanto sua crítica, pode continuar a manter esse caráter, mas com um método uniforme, padronizado, fruto da aplicação da própria racionalidade científica à administração centralizada da formação escolar de grandes contingentes populacionais. Por outro lado, na Academia o conhecimento apreciado é proveniente de uma produção científica que deve se submeter a métodos de criação abstratos que se expressam muitas vezes em regras de publicação definidas por grandes editoras internacionais, sendo assim cerceadas outras possibilidades de expressão que não se ajustem adequadamente a essas normas, o que restringe a expressão e molda um pensamento que torna-se também delimitado.

    Quando pensamos em grandes escolas psicológicas como o behaviorismo, o humanismo e a psicanálise, constata-se que foram constituídas não somente com dados provenientes da ciência, mas também da filosofia, da literatura e de outras disciplinas como a sociologia e a antropologia. A desvalorização e, em muitos casos, a mera recusa da publicação de ensaios por periódicos na área da psicologia indicam já essa redução do conhecimento a sua forma científica e algumas de suas consequências. O ensaio apresenta semelhanças e distinções de um texto artístico e de um artigo científico: assemelha-se ao texto artístico, pois re(a)presenta o objeto a ser estudado que procura ser analisado por meio da proximidade do sujeito em relação a ele; distingue-se, pois o objeto re(a)presentado pela mimesis não é gerado pela fantasia; e assemelha-se ao texto científico pois se cerca de dados empíricos e/ou de teorias, mas não tenta proceder do mais simples ao mais complexo, não divide o objeto de análise e não tem um método de análise sistemático a ser generalizável a outros estudos. Os principais proponentes das grandes escolas psicológicas lançaram mão com frequência dessa forma literária, especialmente em momentos nos quais a transformação da relação entre a empiria e o todo social apontava os limites de formas anteriores de interpretação e exigia saltos teóricos inacessíveis por meio de uma estrita indução empírica. Dessa forma, ao fazer a crítica ao cientificismo atual, não se quer defender formas de conhecimento atreladas ao mítico, ao religioso ou à mera superstição, mas indicar que a arte também deve ter lugar como forma de conhecimento numa ciência como a psicologia e que a reflexão teórica não deveria estar ausente de nenhuma publicação; isso é, essa nunca deveria ser reduzida a relato de pesquisa.

    Ao fazer a crítica da restrição da produção científica ao método científico ou à teoria da técnica, não se quer negar a importância dessas, mas chamar a atenção sobre duas outras formas de saber fundamentais para todas as disciplinas científicas, especialmente para as humanas, como a psicologia: a arte e a reflexão teórica. A arte, ao contrário do conceito científico que pede pelo distanciamento do objeto, exige a aproximação para que este seja reapresentado, e não pode prescindir da mimesis. Na área das ciências humanas, sobretudo na psicologia, é difícil negar a importância da literatura para pensar como a subjetividade se constitui historicamente na sua relação com diferentes formas sociais, ou contraditoriamente, constituir uma psicologia universal, como (Adorno 1958/1983Adorno, T. W. (1983). Posição do narrador no romance contemporâneo. In W. Benjamin, M. Horkheimer, T. W. Adorno& J. Habermas, Textos escolhidos (W. L. Maar, trad., pp. 269-273). São Paulo, SP: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1958)) percebe a obra de Dostoiévski. Já a teoria, que não se deve reduzir à prática ou aos fatos, não tem uma relação imediata com esses. Aos que entendem que a teoria pode e deve ser comprovada ou não pelos fatos, deve-se responder que esses últimos são delimitados à época e lugar onde ocorrem, enquanto a teoria, por se pautar pela história da transformação desses fatos, não pode ser reduzida a eles. A teoria pode indicar tendências de movimentos dos objetos sobre os quais reflete: uma boa análise teórica de como tal ou qual fenômeno ocorreu e continua a ocorrer permite delinear tendências, que se confirmarão caso as determinações desse fenômeno se mantiverem. Nesse sentido, quando tem seus dados refletidos, a ciência pode alterar politicamente o que estuda, e quando isso não ocorre, pode contribuir, como já ressaltamos, com sua manutenção.

    • Adorno, T. W. (1983). Introdução à controvérsia sobre o Positivismo na sociologia alemã. In W. Benjamin, M. Horkheimer, T. W. Adorno & J. Habermas, Textos escolhidos (W. L. Maar, trad., pp. 209-257). São Paulo, SP: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1972)

    • Adorno, T. W. (1983). Posição do narrador no romance contemporâneo. In W. Benjamin, M. Horkheimer, T. W. Adorno& J. Habermas, Textos escolhidos (W. L. Maar, trad., pp. 269-273). São Paulo, SP: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1958)

    • Adorno, T. W. (1993). Sobre sujeto y objeto. In Consignas (Rámon Bilbao, trad., pp. 143-158). Buenos Aires: Amorrotu. (Trabalho original publicado em 1969)

    • Habermas, J. (1983). Técnica e ciência enquanto ideologia. In W. Benjamin, M. Horkheimer, T. W. Adorno& J. Habermas, Textos escolhidos (Z. Loparic & A. M. A. C. Loparic, trad., pp. 313-343). São Paulo, SP: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1968)

    • Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985). Dialética do esclarecimento (G. de Almeida, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1944/1947)

    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      Jan-Apr 2015

    O que é uma ideologia científica?

    O que é ideologia científica?

    Ao final de sua obra, entre as décadas de 1960-1970, Georges Canguilhem cunhou o termo “ideologia científica” para designar certos saberes que reivindicam para si o estatuto de cientificidade, mas que apenas emprestam modelos científicos de outras áreas e as degeneram, desviando-lhes a finalidade para servirem a ...

    Qual a relação da ciência e da ideologia?

    A ideologia e a ciência sempre estiveram ligadas, desde os princípios da ciência, assim desde os homens primitivos havia questões acerca das coisas de que não se compreendia, ou que não se tivesse poder sobre ela, como os fenômenos naturais.

    O que é o conceito de ideologia?

    Na visão clássica, o termo tem o significado de uma espécie de ciência capaz de organizar metodicamente e estudar rigorosamente o conjunto de ideias que formam a intelectualidade humana. Na visão crítica, a ideologia é uma ilusão criada por uma classe para manter a aparente legitimidade de um sistema de dominação.

    Qual é a função da ideologia?

    O primeiro significado de ideologia é um conjunto de ideias que pretende explicar a realidade e as transformações sociais. Neste sentido, é sinônimo de doutrina ou ideário em geral e tem a função de orientar a ação social de indivíduos e de grupos.