O que foi criado para diminuir os conflitos entre Portugal e Espanha?

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A Revolta de Beckman foi uma rebelião de comerciantes nordestinos contra a Companhia de Comércio do Estado do Maranhão, criada pela Coroa Portuguesa para estimular o desenvolvimento econômico da região.

O pau-brasil foi o primeiro produto básico da economia brasileira, sendo explorado desde que os portugueses chegaram aqui. Alguns anos mais tarde, em torno do ano de 1531, a Coroa Portuguesa resolveu adotar o modelo das chamadas Capitanias Hereditárias, grandes pedaços de terra que foram doados à alguns homens de confiança e que possuíam direitos e deveres. Com as capitanias hereditárias, surgiu um novo tipo de economia, a cana de açúcar, pois Portugal precisava encontrar uma atividade para continuar lucrando, já que o comércio de especiarias nas Índias estava entrando em decadência.

O Brasil sofreu com muitas invasões e uma delas foi a Invasão Holandesa na região nordeste do Brasil. Essa invasão ocorreu em razão de Portugal e Espanha se unirem como resultado de uma crise dinástica. A Holanda não era aliada da Espanha e, por isso, quando os dois países ibéricos se uniram formando a União Ibérica, a Holanda invade o Brasil e permanece no nordeste durante 60 anos. Ao longo desses 60 anos, os colonos e comerciantes do nordeste acabaram criando relações comerciais. Mas com a saída dos holandeses do país e a crise do açúcar que se seguiu, a região Nordeste se tornou um lugar com estagnação econômica. Muitos estados do nordeste ficaram extremamente pobres, quase abandonados como o estado do Maranhão. É na tentativa de melhorar essa economia que a Coroa Portuguesa, em 1682, criou a Companhia Geral do Comércio do Estado do Maranhão.

A função dessa companhia era comprar os produtos agrícolas daquela região, vender produtos manufaturados e abastecer as elites coloniais com escravos, chegando ao número de 500 escravos africanos por ano. Havia muitos conflitos entre proprietários de terras e os jesuítas em relação à escravização dos nativos e com esse número de escravos africanos fornecidos pelo governo, o conflito entre senhores de terras e jesuítas iria diminuir. Ou seja: a companhia foi criada para solucionar os problemas de escoamento da produção e de abastecimento da região com produtos europeus. Isso também favorecia o governo português, pois este teria o monopólio comercial de escravos, lucrando cada vez mais. No final, o governo português não cumpriu com o prometido e não forneceu os escravos, gerando conflitos entre a elite e os jesuítas que não permitiam a escravização dos índios. Também não comprava a produção dos donos de terras e fornecia materiais manufaturados de péssima qualidade e com um valor muito alto. Com todos esses problemas, a insatisfação na região foi aumentando ao longo do tempo.

Em 1684 teve início a revolta nativista chamada de Revolta de Beckman, liderada pelos irmãos Tomás e Manuel Beckman, dois senhores de engenho da região do Maranhão. A rebelião se deu por meio de uma invasão ao depósito da Companhia de Comércio do Estado do Maranhão, com o apoio dos comerciantes. Os revoltosos também expulsaram os jesuítas e tiraram o governador de seu cargo. Tomás Beckman foi enviado para a metrópole a fim de jurar fidelidade ao rei, retornando com outro governador, Gomes Freire de Andrade, não encontrando resistência dos revoltosos. Manuel Beckman foi condenado a morte e Tomás foi expulso de sua terra, enquanto o restante dos revoltosos foram condenados a prisão perpétua.

Referências Bibliográficas:

CAETANO, Antonio Filipe Pereira. A Revolta de Beckman pelo olhar de João Felipe Betendorf e da Documentação do Conselho Ultramarino. ANPUH – XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – São Leopoldo, 2007.

CHAMBOULEYRON, Rafael. Justificadas e repetidas queixas. O Maranhão em revolta (século XVII). Link: http://cvc.instituto-camoes.pt/eaar/coloquio/comunicacoes/rafael_chambouleyron.pdf Acesso em 12 de setembro de 2017.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.

Texto originalmente publicado em https://www.infoescola.com/historia/revolta-de-beckman/

1O Estado nacional estrutura seu território através da definição de suas fronteiras, que consolidam o domínio territorial interno e a aceitação externa de seus limites. As fronteiras são um instrumento fundamental na preservação da soberania estatal. No caso do Estado espanhol, suas fronteiras terrestres foram traçadas ao longo dos séculos, sendo derivadas de guerras e de tratados de paz, os quais desenharam limites internacionais marcados por um conjunto de enclaves que geram, até os dias atuais, disputas entre países vizinhos.

2Um enclave consiste em uma área de determinado Estado ou ente subnacional que não é contígua ao seu respectivo território, estando separado por áreas de um ou mais Estados nacionais. Marca característica das fronteiras espanholas, os enclaves também existem dentro de províncias autônomas do país como, por exemplo, Castela e Leão, Navarra e País Basco. No caso das fronteiras internacionais da Espanha existem os enclaves de Llívia, Gibraltar, Ceuta e Melilla (alguns autores consideram ainda as ilhas espanholas na costa marroquina). Além disso, há áreas em disputa como, por exemplo, Quinto Real e Olivença – contendas da Espanha com França e Portugal.

3É importante ressaltar que as fronteiras espanholas com os cinco países lindeiros (França, Andorra, Portugal, Reino Unido e Marrocos) possuem realidades muito diferentes em virtude de fatores histórico-culturais, bem como dos tratados e da política de fronteiras da União Europeia (Acordo de Schengen e FRONTEX). Tais fronteiras possuem características que variam da integração à vigilância e contenção.

4Sendo a fronteira um tema caro a áreas do conhecimento como Geografia Política, História e Relações Internacionais, o presente artigo, de viés interdisciplinar, tem como objetivos preencher uma lacuna existente na bibliografia em língua portuguesa sobre o tema dos enclaves fronteiriços no território espanhol e aferir o papel protagonista do Estado em questões de fronteira.

5O trabalho traz, de início, uma análise histórico-geográfica dos enclaves localizados nas fronteiras da Espanha e os principais tratados de fronteira. Na sequência, aborda as áreas fronteiriças com disputas históricas e o caso de Andorra, território com status político peculiar. Por fim, examina as políticas de fronteira da União Europeia e os conflitos contemporâneos na fronteira meridional da Espanha, com destaque para a questão de Gilbraltar e os desdobramentos ocasionados pelo Brexit. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de cunho exploratório, enriquecida com um trabalho de campo realizado nas fronteiras setentrional e meridional da Espanha em julho de 2018 e com cartografia elaborada pelos autores.

6As fronteiras dos países europeus são resultado de um longo processo histórico. Os limites internacionais terrestres do continente são caracterizados pela existência de um grande número de enclaves. Nesse sentido, ao se analisar as fronteiras espanholas, verifica-se que a configuração dos limites internacionais do país é resultado de disputas geopolíticas que em sua maioria ainda estão em aberto. No mapa 1 estão localizados o território de Andorra e os enclaves de Ceuta, Gibraltar, Llívia, Melilla, Olivença e Quinto Real, situados nas margens do território da Espanha, que possui 550.990 km², correspondentes à área continental na Europa, áreas insulares e enclaves no norte da África.

Mapa 1 – Espanha e enclaves na Europa e África

O que foi criado para diminuir os conflitos entre Portugal e Espanha?

Fonte: Elaborado pelos autores, 2019.

  • 1 Em 31 de outubro de 2007, o primeiro-ministro marroquino Abbas el Fassi, em pronunciamento ao Parla (...)

7Nas proximidades do Estreito de Gibraltar, que separa a Europa da África, a fronteira terrestre entre Espanha e Marrocos, considerada uma das menores fronteiras do mundo, abrange pequenas praças de possessão espanholas no norte da África, quais sejam Melilla, Ceuta, Peñon de Vélez de la Gomera, Peñon de Alhucemas, ilhas Chafarinas e ilhas de Alborán (mapa 2), territórios cuja soberania é reivindicada pelo Marrocos1. As zonas de fronteira correspondem, respectivamente, a 9,6 km, 6,3 km e 87 metros. Por sua vez, a faixa de fronteira entre Espanha e Reino Unido, ou seja, a linha que delimita o limite entre o território espanhol e a península de Gibraltar corresponde a 1.200 metros.

Mapa 2: Fronteira meridional da Espanha

O que foi criado para diminuir os conflitos entre Portugal e Espanha?

Fonte: Elaborado pelos autores, 2019.

8Na fronteira setentrional da Espanha, o limite internacional é marcado por um acidente geográfico, formado por uma cordilheira – os Pirineus – com uma extensão de 435 km e com uma largura média de 130 km. O limite internacional entre o território espanhol e Andorra corresponde a 64 km. Já na parte oeste do território espanhol, a fronteira com Portugal perfaz um total de 1.200 km (mapa 3).

Mapa 3: Fronteira setentrional da Espanha

O que foi criado para diminuir os conflitos entre Portugal e Espanha?

Fonte: Elaborado pelos autores, 2019.

9No caso da fronteira dos Pirineus, destacam-se os enclaves de Llívia e Quinto Real, além do território de Andorra. Por sua vez, na raya (faixa) luso-espanhola registra-se a existência do território de Olivença, uma questão ainda em aberto e recorrentemente apresentada pelos portugueses perante Madri.

Os tratados de fronteira dos territórios espanhóis na Europa e na África

10Um conjunto de tratados disciplina as zonas de fronteira da Espanha na Europa e na África. Essas fronteiras foram estabelecidas após uma série de tratados: Alcanizes (1297), Pirineus (1659), Utrecht (1713 a 1715), Congresso de Viena (1815), Bayonne (1856 a 1868), Lisboa (1864) e Fez (1912). A fronteira entre Espanha e Portugal foi definida por meio da assinatura do Tratado de Alcanizes, em 12 de setembro de 1297. Esse tratado foi um acordo de delimitação de fronteiras elaborado com o objetivo de solucionar vários focos de conflito entre Portugal e o então reino de Castela, evitando que pequenas disputas territoriais motivassem os dois Estados a declararem uma guerra de dimensões superiores. O referido tratado configurou um acordo de cedência mútua de posições fronteiriças e de reconhecimento de uma linha divisória dos territórios dos dois Estados, obrigando-se ambas as partes a aceitar a partilha e a renunciar a qualquer reclamação futura (RTP, 2018). Com efeito, Portugal adquiriu, entre outras localidades e vilas, Campo Maior, Almeida, Castelo Rodrigo, Monforte e Sabugal. Por outro lado, as localidades de Ayamonte, Herrera de Alcântara ou Valência de Alcântara ficaram definitivamente sob controle de Castela (RTP, 2018).

11Em maio de 1801, durante uma breve disputa entre Portugal e Espanha, conhecida como Guerra das Laranjas, um exército franco-espanhol cruzou a fronteira ao sul da cidade de Badajoz e ocupou o povoado português de Olivença e outras localidades que estavam na zona de conflito. No dia 6 de junho do mesmo ano Espanha e Portugal firmaram o Tratado de Badajoz que colocou fim à luta e por meio do qual a Espanha devolveu a maioria das localidades ocupadas, enquanto Portugal cedeu à Espanha a região de Olivença (Valcuente; Kavanagh; Jiménez, 2018).

12Posteriormente, esse Tratado foi anulado pelo príncipe regente português em 1º de maio de 1808. Além disso, no artigo 105, da Ata Geral do Congresso de Viena de 9 de junho de 1815 foi reconhecido pelas potências europeias presentes o direito de Portugal sobre Olivença (Vasconcelos, 1980). Durante a primeira metade do século XIX Portugal reivindicou firmemente a região de Olivença, contudo, somente em 1864 Espanha e Portugal resolveriam as questões relativas à demarcação de suas fronteiras por meio da assinatura de um novo tratado de limites territoriais. Assim, no dia 29 de setembro do referido ano os dois países firmaram o Tratado o de Lisboa, cujo objetivo era especificar as operações de ordem prática para o estabelecimento dos limites (Godinho; Cairo; Valcuende, 2018).

13Em 1926, com base nos estudos da Comissão Mista Espanha-Portugal, foi firmado outro convênio de limites entre Espanha e Portugal, deixando-se de delimitar unicamente o trecho da fronteira entre a confluência do rio Caya com o rio Guadiana e com o rio Cuncos devido à questão de Olivença. Desde então, foi dada uma resposta suave à díade entre Espanha e Portugal por Olivença, a qual é nominalmente expressa no desenho aberto dos mapas oficiais dessa área ou no uso de linhas descontínuas no momento de indicar no mapa essa fronteira sem um acordo de delimitação. Não obstante, nos últimos anos, um grupo de pressão, o Grupo de Amigos de Olivença, tem mantido viva a reivindicação em manifestações públicas e perante os tribunais portugueses (Godinho; Cairo; Valcuende, 2018).

14Já no tocante à fronteira entre Espanha e França, que abarca a cordilheira dos Pirineus, observa-se que esta foi estabelecida após a Guerra Franco-Espanhola (1635-1659) e um conflito deflagrado no decorrer desta, a Guerra dos Segadores (1640 e 1652), que afetou o Principado da Catalunha. Em 7 de novembro de 1659 ocorreu a assinatura do Trado dos Pirineus, por meio do qual houve a divisão da Catalunha, sendo imposto o domínio francês nos condados do Roussillon, do Conflent, e em uma parte da Cerdanya (IBFC Raimundo Lúlio, 2018).

15Cabe destacar que o referido Tratado foi assinado na Ilha dos Faisães, na desembocadura do rio Bidasoa, fronteira entre a província espanhola de Guipúscoa e a província francesa de Labourd. Essa ilha tem uma superfície de aproximadamente 2 km² e sua soberania é compartilhada, desde então, entre os Estados espanhol e francês e as prefeituras de Irún e Hendaye, incumbidas cada uma delas de cuidar da ilha por seis meses a cada ano (IBFC Raimundo Lúlio, 2018). A delimitação definitiva da fronteira franco-espanhola só viria a ser formalizada com os Tratados de Bayonne entre 1856 e 1868.

16Já em relação aos Tratados de Utrecht, verifica-se que esses acordos foram firmados entre 1713 e 1715, na cidade de Utrecht, a fim de dar termo à Guerra de Sucessão Espanhola (1701-1714), na qual estavam em conflito os interesses de várias potências da Europa. A coroa espanhola era almejada por Felipe d’Anjou, neto do rei da França, Luís XIV, e por Carlos, da casa da Áustria. (Diário Universal, 2018).

17A disputa pelo trono real espanhol era composta, de um lado, pela França que apoiava Felipe d’Anjou, e de outro lado, pela Grande Aliança formada por Inglaterra, República Holandesa, Prússia, Portugal e pela casa de Saboia. Entretanto, a Grande Aliança teve sua força abalada quando Carlos foi eleito o imperador do Sacro Império Romano-Germânico, recebendo o nome de Carlos VI da Germânia, porque para os britânicos não era defensável que houvesse a centralização de tanto poder nas mãos do príncipe austríaco.

18Com efeito, o conflito pela sucessão do trono na Espanha foi resolvido em favor de Filipe V (1700-1746), o qual manteve a coroa espanhola e suas respectivas colônias, porém abdicou ao direito de sucessão à coroa francesa. Assim, houve a preservação da integridade do território francês e a Inglaterra foi beneficiada com importantes bases marítimas (Gibraltar, Minorca, Terra Nova e Acádia).

19Em meio ao cenário de conflitos e disputas entre as potências europeias as fronteiras do continente passaram a figurar em inúmeros tratados e em muitas das vezes não foi encontrada uma solução adequada no tocante ao estabelecimento de limites internacionais. Questões relativas a heranças da nobreza, territórios conquistados em guerras e áreas geograficamente estratégicas resultaram em fronteiras com limites descontínuos repletos de enclaves. Gibraltar, cujo território foi conquistado pelos britânicos em 1704, tendo a soberania oficialmente transferida em 1713, permanece como ponto de discórdia entre a Espanha e o Reino Unido.

20Londres utiliza Gibraltar como base militar, onde são atracados navios de guerra e submarinos não apenas britânicos, como de países aliados, a exemplo dos Estados Unidos. Localizado nos limites entre a África e a Europa, Gibraltar é um ponto estratégico para o controle e a observação de embarcações que entram e saem do Mediterrâneo. O “Rochedo”, com 427 metros de altura, tem uma composição geológica (monolito promontório de calcário) que possibilitou a instalação de edifícios e até o surgimento de uma pequena cidade (hoje com 32.194 habitantes), permitiu ainda a construção de túneis usados pelos britânicos durante períodos de guerra.

  • 2 Um paraíso fiscal consiste em um país ou território que oferece taxas mínimas de imposto para pesso (...)

21Atualmente, a economia gibraltina depende das atividades do porto, das bases da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e dos setores de serviços, de turismo e, fundamentalmente, do bancário. Gibraltar configura um paraíso fiscal2, sendo considerado local excelente para os ativos subprime, compondo a rede extraterritorial global da City de Londres. Essa rede extraterritorial controla territórios com jurisdições próprias, cuja rede bancária recebe fluxos financeiros de origem não declarada, pouco ou nada tributados, que se valem do sigilo em relação à pessoa física ou jurídica por eles responsável (Shaxson, 2014).

22Já no tocante aos territórios espanhóis na costa marroquina, cabe ressaltar que as origens longínquas da ocupação espanhola remontam a segunda metade do século XV, quando Castela ocupou Melilla (1496). Nos séculos seguintes as tropas espanholas iriam ocupar uma série de territórios no litoral norte do Marrocos (grande parte passou a ter a função de abrigar presídios). É importante lembrar que a cidade de Ceuta, conquistada pelos portugueses em 1415, passaria ao domínio espanhol após a União Ibérica (1580-1640) e o tratado de Lisboa (1668), que pôs fim à Guerra de Restauração portuguesa. Ao longo dos séculos, a Espanha registrou um histórico de conquistas e perdas territoriais durante sua presença na costa setentrional africana.

23No final do século XIX, a África era palco de disputas entre os impérios europeus e naquele contexto ocorreu a Conferência de Berlim (1884-1885), que regulamentou a ocupação do continente africano pelas potências europeias. Apesar de essa Conferência ter favorecido a implementação das fronteiras entre zonas de influência, alguns territórios considerados estratégicos continuaram sendo motivo de conflito entre potências europeias. Nesse contexto, em 1906 foi celebrada a Conferência de Algeciras, na qual o território marroquino foi repartido em zonas de influência atribuídas à França e à Espanha, que passaram nos anos seguintes a ocupar militarmente seus territórios.

24Não obstante o Tratado de Algeciras, os contínuos desentendimentos entre franceses, espanhóis e o sultão marroquino fizeram com que em 1912 fossem assinados os tratados de Fez e o Hispano-Francês, por meio dos quais foram estabelecidos o Protetorado Francês e o Protetorado Espanhol no Marrocos. No entanto, o controle espanhol sobre o conjunto do território só se consolidaria em 1926, após a vitória do exército da Espanha contra os rebeldes da região do Rife (Pennel, 2009). O fim do Protetorado Espanhol, entre 1956 e 1958, garantiu a independência ao Marrocos, porém, a Espanha permaneceu com o controle de pequenos territórios no litoral norte do país (Ceuta, Melilla, Peñón de Vélez de la Gomera, Ilha del Perejil, Peñón de Alhucemas, Ilha de Alborán, Ilhas Chafarinas).

Os enclaves e áreas de disputa na fronteira norte da Espanha

25Em tempos de paz, no âmbito do Estado-nação, as fronteiras têm três funções essenciais, quais sejam: legal, fiscal e de controle. A função legal implica que no interior de um polígono que delimita o território nacional predomine um complexo de instituições jurídicas que comandam a existência de uma sociedade política. Por sua vez, a função fiscal tem por escopo a defesa do mercado interno do Estado-nação. Por seu turno, a função de controle visa vigiar bens e pessoas que cruzam a fronteira do Estado-nação (GUICHONNET; RAFFESTIN, 1974).

26Richard (2009), em seu trabalho sobre a União Europeia (UE), assevera que nenhum trecho das fronteiras externas do bloco tem somente uma função particular, como a de barreira ou de a de interação. Segundo o autor, o que de fato existe é a combinação de diversas funções e formas ao mesmo tempo, visto que o efeito limitador de um trecho de fronteira pode variar conforme a escala ou o domínio considerado.

Histórico dos enclaves na fronteira setentrional espanhola e as disputas geopolíticas

27Ao se analisar a fronteira setentrional da Espanha observa-se a existência de dois enclaves espanhóis situados em território francês, quais sejam: Quinto Real e Llívia. Enquanto o primeiro está localizado nos Pirineus ocidentais, Llívia está localizada na Cerdanya, no sopé dos picos mais altos da Cordilheira do Pirineus orientais.

28A Cerdanya foi, por muito tempo, a única passagem na rota natural, seguindo os cursos do rio Segre e do rio Tet, que permitia cruzar a cordilheira dos Pirineus com conforto e facilidade tanto para os exércitos quanto para o transporte de mercadorias, e Llívia e sua colina configuravam um ponto chave de controle da estrada. A primeira ocupação de Llívia data de 1200 a. C.

29Apesar de sua importância na época romana, a Iulia Lybica (atual Llívia) perdeu suas funções de gestão e se tornou uma fortaleza de primeira ordem na fronteira setentrional visigoda, como Wamba. Em 672 d. C., o rei de Todedan subiu o rio Segre com seu exército para controlar o Castrum Libyae. A partir de 711 teve início a conquista árabe da Península Ibérica, que durou quinze anos e em 726 alcançou o sul do atual território da França, atingindo Llívia. Em 731, os habitantes da cidade, juntamente com os de Medinet El-Bab – Ciudad de la Puerta – e o líder berbere Menussa se rebelaram contra a hegemonia dos clãs árabes em al-Andalus (nome que os árabes deram à Península Ibérica na Idade Média). As disputas entre al-Andalus e o Reino dos Francos redefiniriam os limites territoriais nos Pirineus. Desde Llívia, a Catalunha começou a ser forjada, com a cidade chegando a se tornar a capital do condado da Cerdanya, Em 795, Llívia passou a ser parte da Marca Hispânica (território entre a fronteira político-militar do Reino dos Francos e al-Andalus), uma zona-tampão, que ao contrário de outras marcas carolíngias não possuía uma estrutura administrativa unificada própria. Com a morte do último conde da Cerdanya, Bernat Guillem, em 1117, a soberania de Barcelona foi aprovada (Llívia, 2018).

30Em 1178, com a fundação da cidade de Puigcerdà, nas proximidades de Llívia, a importância administrativa desta última foi perdida, mas não a estratégica. Em 1660 foi assinado o Tratado de Llívia pelos representantes do rei Felipe IV, da Espanha, e do rei Luís XIV, da França. Por meio desse Tratado trinta e três povoados situados no vale do rio Querol e na fronteira com o Capacir e Conflent se tornaram parte da França. Todos eles passaram a pertencer ao lado norte dos Pirineus, pois segundo os negociadores franceses, em especial Pierre de Marca, arcebispo de Toulouse, essa divisão dos Pirineus era uma fronteira natural e antiga entre a Galia e a Hispania romanas.

31Contudo, em razão de um erro técnico, Llívia (imagem 1) continuou a ser um enclave espanhol dentro do território francês por ter o título de vila e não de povoado, sob a condição de que nunca fossem construídas fortificações ao seu redor. Atualmente, Llívia configura um município localizado a 153 km ao norte da capital de sua província, Girona, com uma área territorial de 12,84 km², possuindo, em 2018, uma população de 1291 habitantes e uma densidade populacional de 98 hab/km² (Llívia, 2018).

Imagem 1 – Llívia: vista da entrada da cidade, na fronteira franco-espanhola

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Fonte: Camilo Pereira Carneiro, 2018.

32Por sua vez, na porção ocidental dos Pirineus, as origens da disputa pela área do Quinto Real, também denominada Los Alduídos, se perderam ao longo do decurso histórico. A causa principal de tal conflito era a competição por terras de pastagem. Durante a Idade Média, toda a área estava dentro do Reino de Navarra, porém, como a autoridade real no interior dos Pireneus era fraca, os vales se transformaram em uma rede de unidades políticas autônomas que lidavam com assuntos internos e interagiam entre si, semelhantemente a pequenas repúblicas (Strauss, 2015).

33A linha de cristas formava uma fronteira administrativa entre a Alta Navarra, que incluía os três vales meridionais, e a Baixa Navarra, que incluía Baigorry, mas a fronteira no local do Quinto Real não era bem especificada – o que significava que os limites entre cada vale e o Quinto Real eram igualmente incertos. Em 1512, a Alta Navarra foi conquistada pela Espanha e a Baixa Navarra permaneceu independente até que a França a absorveu, em 1589, mas as áreas de pastos do Quinto Real sobreviveram a essas mudanças políticas sem serem designadas a nenhum dos dois países (Strauss, 2015).

34A ocorrência de uma disputa de fronteira no Quinto Real foi inevitável: a área estava localizada ao lado de vários vales, cujos moradores procuravam usar sua terra; estava em uma fronteira política, primeiro entre diferentes regiões do Reino da Navarra e posteriormente entre a França e a Espanha, o que tornava o controle relevante em âmbito estatal. Além disso, essa área estava distante dos centros nacionais de poder, o que tornava difícil seu controle efetivo. Qualquer um dos países poderia desencadear uma disputa e a presença simultânea dos aparelhos estatais fez com que qualquer conflito ali fosse extremamente difícil de resolver.

35A primeira documentação a respeito de uma disputa sobre o Quinto Real data de 1400, quando um tribunal da Navarra arbitrou um caso envolvendo reivindicações rivais pelos vales de Erro e Baigorry, embora houvesse indícios de conflitos e resistência à autoridade real já em 1200. Um relatório preparado para o rei espanhol em 1752 refere-se a “compromissos (militares) contínuos e distúrbios” no Quinto Real desde 1237 (Strauss, 2015).

36A duração do conflito foi atribuída, em parte, à ausência de controle militar efetivo por parte da Espanha e da França. Assim, a disputa que começou como um conflito local envolvendo os habitantes de vales do mesmo reino foi transformada em uma disputa internacional entre duas grandes potências quando a Espanha e a França passaram a controlar a Navarra, repartindo entre si seus territórios. Embora ambos os países tenham feito reivindicações sobre o Quinto Real, nenhum deles mostrou muita disposição para aplicá-las militarmente.

37A variedade de níveis em que a disputa ocorreu – estatal, regional e local – também contribuiu para sua continuidade. A multiplicidade de atores e interesses envolvidos retardou o processo de resolução de problemas, pois os participantes do conflito minaram os esforços uns dos outros. No final do século XVIII, os habitantes dos vales tentaram impedir que a França e a Espanha estabelecessem uma fronteira definitiva no Quinto Real, de acordo com um relatório interno do governo francês: “a população, unida em assembleias gerais, discutiu maneiras de colocar obstáculos no caminho da delimitação projetada da fronteira” (Strauss, 2015).

38Essas animosidades foram ilustradas por um episódio que ocorreu quando a guerra estourou entre a França e a Espanha em 1793; depois que soldados espanhóis ocuparam a área no lado norte (francês) da linha de cristas, habitantes franceses armados da vila principal enfrentaram as tropas militares francesas que foram enviadas para a área para combater o avanço da Espanha.

39A notável sequência de fracassadas tentativas de fazer fronteira em Quinto Real incluiu decisões do tribunal espanhol em 1538 e 1580, bem como tratados e outros acordos e iniciativas em 1614, 1615, 1627, 1656, 1665, 1687, 1702, 1717, 1762 e 1785, e 1827. O colapso de muitos desses esforços resultou da feroz oposição dos vales ao tentar preservar sua autonomia da invasão do Estado. Essa oposição transcendeu a luta entre os próprios vales. O Tratado de Bayonne, de 1856, colocou fim a séculos de disputa entre a Espanha e a França pela pequena área correspondente ao Quinto Real, cujos pastos foram contestados por exércitos nacionais, governo regional e milícias de aldeias simultaneamente. A disputa foi resolvida colocando a área no lado espanhol da fronteira, mas concedendo à França direitos exclusivos por meio do pagamento de um arrendamento perpétuo, uma solução que satisfez ambos os Estados (Strauss, 2015).

Andorra: status único de um país na fronteira franco-espanhola

40Localizado nos Pirineus, entre a França e a Espanha, Andorra é o sexto menor país da Europa, com uma área territorial de 468 km² e uma população de 85.660 habitantes. O sistema de governo desse Estado é uma democracia parlamentarista O PIB andorrano é estimado em 3,33 bilhões de dólares, com uma renda per capta de 49.900 dólares, considerada elevada (Worldatlas, 2018).

41A principal atividade econômica desenvolvida em Andorra é o turismo para a prática de esqui, responsável por aproximadamente 80% de seu PIB. A produção agrícola nacional é limitada, pois apenas 2% de suas terras são aráveis, estimulando a importação da maioria dos gêneros alimentícios. Muito embora Andorra não seja membro pleno da União Europeia (UE), o euro é sua moeda oficial. O país impõe um controle próprio sobre as fronteiras de seu território (imagem 2), apesar de não exigir visto para os visitantes de outros Estados.

42Entre 1278 e 1288 o país passou a ter uma diarquia exercida pelo bispo de Urgell e pelo conde de Foix, à época Roger Bernart III. Dessa maneira nasceu o Principado de Andorra. Em 1589 Henrique IV, rei da Navarra, conde de Foix e senhor de Andorra se tornou rei da França, outorgando, consequentemente, à coroa francesa os direitos de suserania compartilhada dos condes de Foix. Por conta da Revolução Francesa, entre 1793 e 1806, as relações entre Andorra e a França foram rompidas, contudo, Napoleão restabeleceu a tradição feudal e os direitos de suserania compartilhada da França sobre o principado.

43Andorra permaneceu governada por uma diarquia formada pelo chefe de governo francês e pelo bispo de Urgell até que no final do século XX, em 14 de março de 1993, o principado teve a sua primeira constituição promulgada. Com isso, Andorra se tornou um Estado independente de direito. A Constituição redefiniu as competências das instituições que geriam o país que continuou a ser uma diarquia: o bispo de Urgell e o presidente da República Francesa são co-príncipes em nível de igualdade e a título pessoal. Contudo, o Presidente de Governo é o chefe de governo do país.

Imagem 2 – Controle na Fronteira entre Andorra e Espanha

O que foi criado para diminuir os conflitos entre Portugal e Espanha?

Fonte: Camilo Pereira Carneiro, 2018.

44Desde 1993, Andorra é membro da Organização das Nações Unidas (ONU), o que implica o reconhecimento internacional do país, e desde 1994 é membro do Conselho da Europa (Andorra, 2018). Assim como outros micro Estados europeus, como Mônaco e Liechtenstein, desde o início do século XX Andorra configura um paraíso fiscal. O setor financeiro andorrano configura a segunda fonte de ingressos da economia nacional, contribuindo com 16% do PIB (Andorra Info, 2018).

45Apesar de Andorra ter sido por vários anos um paraíso fiscal não cooperativo, tal realidade começou a se modificar a partir de 1º de janeiro de 2018, pois uma lei favorável ao intercâmbio de informações sobre contas bancárias de não residentes do Principado passou a vigorar, após ter sido aprovada pelo Parlamento andorrano (AFP, 2018).

Política europeia para as fronteiras

46Os Estados membros da Comunidade Econômica Europeia (CEE) assinaram, em 1986, o Ato único Europeu, que passaria a vigorar no ano subsequente. O tratado delimitou as metas e bases para a criação de uma comunidade europeia sem fronteiras. Nesse sentido, assevera-se que as zonas de fronteira compõem a dimensão espacial na qual se materializam desafios e tensões entre a continuidade e a mudança (Grieco, 1996).

47No âmbito da UE, algumas tensões abarcam organismos do bloco e populações fronteiriças. Apesar da atenção a elas concedida com as políticas para as fronteiras, as iniciativas instituídas a partir de Bruxelas são marcadas pela limitada e frequentemente inexistente participação das comunidades fronteiriças (Carneiro, 2019). A esse respeito Kavanagh (2018) pondera que o desaparecimento da fronteira acarretou consequências negativas para alguns povos que viviam nas zonas de fronteira no interior europeu. Essa situação foi notada na raya Espanha-Portugal, na qual a abertura das fronteiras ocasionou a perda da principal atividade lucrativa e fonte de “trabalho” dos moradores da região: o contrabando. Isso porque os residentes fronteiriços organizam boa parte de suas vidas com base na relação com os imigrantes.

48Muito embora a implementação da UE tenha possibilitado aos países europeus, por meio de um processo gradual e persistente, a criação de mecanismos aptos a darem andamento a um programa de interação, embasado na concepção da construção de uma Europa não mais sob a perspectiva nacionalista e das divergências políticas, mas sim orientada para a concretização da redefinição dos espaços econômicos, que ingressam em um processo de redefinição das fronteiras nacionais (Menezes; Pena Filho, 2006), tem-se notado que a xenofobia voltou a ser disseminada no continente no século XXI.

O Espaço Schengen

49Em 1995, o Acordo de Schengen (derivado do acordo de 1985, firmado ainda no âmbito da CEE, que abarcava primordialmente cinco Estados: França, Alemanha, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo) e sua Convenção de Implementação foram promulgados somente com alguns signatários, mas dois anos mais tarde, durante a Conferência Intergovernamental de Amsterdã, todos os Estados-membros da UE, excetuando-se o Reino Unido e a Irlanda, assinaram o acordo (Carneiro, 2019).

50Antes do Acordo de Schengen ter sido firmado as populações não podiam circular totalmente livres de uma parte a outra da fronteira. O enfraquecimento relativo das fronteiras internas da União Europeia (UE) foi o resultado do enfraquecimento da função clássica de controle da fronteira. Isto é, as fronteiras internas da UE passaram do estatuto de corte ao de costura (Leoup; Moyart, 2006). Esse fato pode ser percebido ao se cruzar as fronteiras de países membros do acordo, como no caso da fronteira entre França e Espanha, em que não há nenhuma barreira física impedindo a circulação de veículos e pessoas (imagem 3).

Imagem 3: Fronteira Espanha-França

O que foi criado para diminuir os conflitos entre Portugal e Espanha?

Fonte: Camilo Pereira Carneiro, 2018.

  • 3 Mesmo que o controle regular nas fronteiras tenha sido abolido, os cidadãos residentes nos Estados (...)

51A instituição do Espaço Schengen causou um enorme impacto na realidade das fronteiras internas na UE, ao possibilitar a livre circulação de pessoas através dos Estados signatários de seu acordo, eliminando a obrigatoriedade de apresentação de passaportes no cruzamento das fronteiras3. Segundo Didelon e Blanchard (2001) o enfraquecimento e o relativo desaparecimento das fronteiras internas da UE foram o resultado de sua própria política regional. Essa política foi criada com o objetivo de apagar o peso das antigas fronteiras e de reconstruir territórios em processos geralmente artificiais e distantes de preocupações das populações dos espaços transfronteiriços (CARNEIRO, 2019).

52No entanto, ressalta-se que as fronteiras exteriores da UE passaram a sofrer um processo de enrijecimento direcionado à retenção de populações, principalmente daquelas provenientes de Estados africanos e asiáticos, as quais migram em busca de melhores condições de vida, denotando uma total contradição com relação aos valores que embasam a identidade europeia e os princípios disseminados no interior do bloco (Didelon; Blanchard, 2011). Tal processo de enrijecimento das fronteiras externas da UE culminou na criação da Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas (FRONTEX).

FRONTEX: a preocupação com as tradicionais funções de segurança e defesa da fronteira

53O advento da União Europeia (no âmbito do novo regionalismo), no final do século XX, fez com que a tradicional noção de fronteira, cujo caráter original era o limite rígido, separador, passasse a ceder espaço para uma noção de zona de integração (Costa, 2008). No entanto, a nova visão atribuída à fronteira, sobretudo a partir da integração regional, não deixou de dar enfoque para a defesa, uma vez que as fronteiras sempre serão alvos de ações de defesa.

54Em 2004, em razão do recrudescimento das fronteiras externas da UE, foi criada uma agência responsável pelo controle das fronteiras do Espaço Schengen: a FRONTEX. Sediada em Varsóvia, a agência tem como incumbências: coordenar a cooperação entre os Estados-membros na gestão das fronteiras externas; auxiliar na formação de guardas de fronteiras nacionais; realizar análises de risco, dentre outras (União Europeia, 2018).

55Ao longo dos últimos anos tem ocorrido um aumento do número de pessoas que migram em direção ao continente europeu, as quais são vítimas de violências de todos os tipos, de perseguições religiosas ou políticas, de catástrofes ambientais, da miséria e da fome, sobretudo, em razão da ocorrência de conflitos como a Primavera Árabe (2010-2012) e de guerras civis em Estados localizados no Grande Oriente Médio (Afeganistão, Iraque, Síria e Iêmen) e na África.

56É importante registrar que os referidos conflitos, cujos desdobramentos resultaram no surgimento de grandes fluxos migratórios direcionados à Europa, foram causados por fatores internos (governos ditatoriais impopulares, guerras civis, perseguições religiosas, altas taxas de desemprego e inflação, etc.) e externos (interferência geopolítica de potências como os Estados Unidos e de Estados-membros da UE, dentre outros). Isto é, alguns países europeus têm parcela de responsabilidade na instabilidade política e na crise socioeconômica de países africanos e asiáticos que são emissores de imigrantes e refugiados para seus territórios (Carneiro, 2019).

57A política de fronteiras voltada aos limites externos da União Europeia é muito diferente daquela direcionada às fronteiras internas (baseada no Acordo de Schengen). Nesse sentido, o limite internacional entre a UE (Espanha) e o Marrocos (imagem 4), por exemplo, retrata as velhas funções de controle e separação exercidas pela fronteira. Naquela fronteira, em função dos rigorosos procedimentos de fiscalização, os motoristas enfrentam longas horas de espera em engarrafamentos na entrada das aduanas localizadas entre Ceuta (Espanha) e o Marrocos.

Imagem 4 – Fronteira entre a União Europeia e o Marrocos: cerca fronteiriça em praia de Ceuta

O que foi criado para diminuir os conflitos entre Portugal e Espanha?

Fonte: Camilo Pereira Carneiro, 2018.

58A ênfase nas tradicionais funções da fronteira é comprovada pelos números divulgados pela FRONTEX sobre os gastos da UE para impedir o ingresso dos fluxos migratórios direcionados à Europa. Em 2005, ano no qual essa agência começou a funcionar, seu orçamento era de 6 milhões de euros. Montante que aumentou nos anos posteriores e já perfazia aproximadamente 320 milhões de euros em 2018, quando a FRONTEX contava com 530 funcionários (Nielsen, 2018).

Conflitos contemporâneos na fronteira meridional da Espanha: Gilbraltar e o Brexit

59Em atenção ao estudo sobre o processo de integração dos países europeus, evidencia-se que, desde o início, a relação entre o Reino Unido e a Comunidade Econômica Europeia (CEE) (sucedida pela UE), foi caracterizada por desacordos. Para os britânicos o processo de integração europeu tinha a única finalidade de estabelecer uma área de livre comércio. De fato, a Europa britânica consistia em uma área de livre comércio sem uma instituição política, enquanto a França (sob a presidência de Charles de Gaulle) almejava a criação de uma Europa política real (plano Fouchet).

60Segundo Charles de Gaulle, o Reino Unido era o “Cavalo de Tróia” dos Estados Unidos na Europa. Os britânicos tinham divergências com a CEE que não foram sanadas com o advento da UE, como as questões da Comunidade Britânica e do Mercado Agrícola Comum (Carneiro, 2019). As controvérsias históricas não solucionadas resultaram em um plebiscito ocorrido em 23 de junho de 2016, no qual os britânicos votaram a favor da saída do Reino Unido da União Europeia. Em 29 de março de 2017, o Reino Unido notificou formalmente o Conselho Europeu de sua intenção de deixar a UE, acionando o artigo 50 do Tratado de Lisboa, de 2007. O país permaneceu como membro da UE, com os direitos e obrigações até a conclusão do processo de saída do bloco (Schulz et al, 2016), que ocorreu em 31 de janeiro de 2020.

61O Brexit foi o primeiro caso em que um Estado-membro se retirou da UE. O fato causará impactos nas zonas de fronteira do Reino Unido com territórios da UE, como, por exemplo, Irlanda do Norte e Gibraltar (território ultramarino britânico), além de impactar a realidade da fronteira entre Espanha e Gibraltar, cruzada diariamente por cerca de 10 mil trabalhadores espanhóis (imagem 5) (Abellan, 2018). Em Gibraltar os cidadãos espanhóis, historicamente, têm servido de mão de obra barata e executam trabalhos braçais, sendo empregados de empresas e de cidadãos britânicos (fato comprovado na pesquisa de campo realizada pelos autores em julho de 2018).

62Na região do Estreito de Gibraltar, a origem do passaporte cuja uma hierarquia social, sendo nítida a importância maior atribuída à nacionalidade britânica em relação à espanhola e a maior valorização da espanhola em relação à marroquina, por exemplo. Isso pode ser atestado no número de trabalhadores braçais marroquinos que trabalham no sul da Espanha, como no número de trabalhadores braçais espanhóis que buscam melhores salários em Gibraltar.

63O trânsito de pessoas e veículos na fronteira de Gibraltar é facilitado pelos acordos entre Madri e Londres (o Reino Unido não é signatário do Acordo de Schengen) e existem documentos que permitem trabalhadores espanhóis transitarem mais rapidamente através das aduanas. Não obstante, ressalta-se que a tensão entre a Espanha e o Reino Unido acerca da soberania sobre Gibraltar é um elemento potencializador de conflitos. Em dezembro de 2018, com o Reino Unido ainda dentro da União Europeia, ocorreu um incidente registrado por cidadãos que estavam na costa gibraltina, no qual um navio da marinha da Espanha adentrou as águas de soberania britânica sem autorização e tocando o hino nacional espanhol em seus alto-falantes. Esse não foi o primeiro embate entre a Espanha e o Reino Unido, pois as ações espanholas em Gibraltar são frequentes. Em novembro do referido ano, um navio da Marinha Real britânica já havia disparado um flare de alerta após um navio da Guarda Civil espanhola ter ficado muito próximo do submarino nuclear HMS Talent (Poder Naval, 2018).

Imagem 5 – Posto de Controle na Fronteira entre Gibraltar e Espanha

O que foi criado para diminuir os conflitos entre Portugal e Espanha?

Fonte: Camilo Pereira Carneiro, 2018.

64Inobstante tais acontecimentos, a Espanha e o Reino Unido conseguiram firmar um pré-acordo bilateral sobre Gibraltar em 21 de novembro de 2018. Os dois governos acordaram um pacote de medidas provisórias que passou a reger a relação entre o Estado espanhol e o território ultramarino britânico quando este, em conjunto com o Reino Unido, saiu da UE. Trata-se de um conjunto de quatro memorandos de entendimento e um tratado fiscal. Os memorandos abarcam as quatro áreas mais sensíveis entre a Espanha e o penhasco britânico, sendo que uma das mais incontroversas foi relativa ao tabaco. As autoridades gibraltinas se comprometeram a aumentar o preço do produto para que não seja rentável contrabandeá-lo para a Espanha (Abellán, 2018).

65Outros temas correspondem: aos trabalhadores transfronteiriços espanhóis; a compromissos ambientais a serem assumidos por Gibraltar (pois a Espanha se queixa dos despejos ilegais e de outras irregularidades atribuídas ao território ultramarino britânico) e; à questão tributária. Gibraltar assumiu alguns compromissos para reduzir a concorrência fiscal que faz com a Espanha. Cabe ressaltar que com o Brexit a Espanha passou a poder intervir diretamente em qualquer decisão que envolva o relacionamento entre o Reino Unido e Gibraltar com a UE (Abellán, 2018).

Considerações finais

66As fronteiras configuram um instrumento fundamental na preservação da soberania do Estado. Não apenas aquela fronteira que cumpre a função de limite rígido, separador, como também aquela fronteira que cumpre o papel de zona de integração. Nesse sentido, no caso espanhol, a soberania estatal se faz presente tanto na fronteira setentrional, que apresenta um grande nível de interações e de livre circulação de pessoas, trabalho e mercadorias, como na fronteira meridional, que reflete os resultados de políticas públicas que enfocam prioritariamente as funções tradicionais da fronteira.

67Historicamente, as fronteiras terrestres da Espanha têm sido marcadas por disputas envolvendo países limítrofes que resultaram no surgimento de diversos enclaves, cuja relevância está ligada a interesses geopolíticos e geoeconômicos dos Estados nacionais que variam de acordo com o momento histórico. O presente artigo trouxe uma análise histórico-geográfica das fronteiras terrestres espanholas, enfocando mais precisamente os casos dos enclaves de Ceuta, Melilla, Llívia e Gibraltar, além de analisar áreas fronteiriças em disputa como Quinto Real e Olivença e o caso do Principado de Andorra.

68As disputas fronteiriças têm tido desfechos diferentes ao longo do tempo, variando, em maior ou menor intensidade, da continuidade dos conflitos e das reivindicações territoriais (casos de Olivença, Gibraltar, Ceuta, Melilla e ilhas da costa marroquina) até soluções como a partilha da soberania (caso de Andorra) ou a cessão territorial mediante pagamento de arrendamento do direito sobre o próprio território (caso de Quinto Real).

69Em relação às políticas fronteiriças da UE, cabe ressaltar que na fronteira a nacionalidade do passaporte pode facilitar ou dificultar o trânsito dos indivíduos que os portam. Nesse sentido, o rigor das ações da Frontex é sentido pelos imigrantes e trabalhadores de países não-membros da UE e do Espaço Schengen. Por outro lado, há facilidades de trânsito para os portadores de determinados passaportes (notadamente o britânico e os de países do Acordo de Schengen).

70Por fim, nas análises de todas as questões fronteiriças apresentadas ao longo do texto ficou comprovado que o Estado nacional segue como ator de primeira ordem no sistema internacional. Cabendo destaque à questão de Gibraltar, resolvida bilateralmente por Espanha e Reino Unido, sem a intermediação de uma organização supranacional como a União Europeia (em um momento em que o Reino Unido ainda fazia parte do bloco).

O que foi criado para evitar conflitos entre Portugal e Espanha?

O Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494, teve como objetivos: pacificar a disputa entre Portugal e Espanha pelo domínio das terras encontradas no Atlântico Sul; estabelecer um limite entre os dois reinos para a exploração da América.

Como foi resolvido o conflito entre Portugal e Espanha?

O Tratado de Tordesilhas foi um documento assinado em junho de 1494, na vila espanhola de Tordesilhas. Os protagonistas foram Portugal e Espanha, que delimitaram, através de uma linha imaginária, as posses portuguesa e espanhola no território da América do Sul, chamado de “Novo Continente”.

Qual o nome do acordo feito entre Portugal e Espanha?

O Tratado de Tordesilhas, nome designado por ter sido assinado na povoação castelhana de Tordesilhas, foi assinado em 7 de Junho de 1494 pela Castela (parte da atual Espanha) e por Portugal, ele estabelecia limites dos territórios descobertos chamados "Novo Mundo" entre os dois países (as duas potências marítimas da ...

Quais foram os tratados assinados entre Portugal e Espanha?

O Tratado de Santo Ildefonso (1777) confirmou o Tratado de Madri e devolveu a Portugal a ilha de Santa Catarina, ficando com a Espanha a Colônia de Sacramento e a região dos Sete Povos. O Tratado de Badajós entre Portugal e Espanha (1801) incorporou definitivamente os Sete Povos das Missões ao Brasil.