O que significa carta de alforria para os negros?

26 de fevereiro de 2019

UM POUCO DE HISTÓRIA: Alforria

A palavra vem do árabe Al-hurruâ, e significa liberdade do cativeiro concedida ao escravo. Durante o século XVII, alforria passou a ser utilizada como sinônimo de “manumitir”, do latim manumittere, “libertar as mãos” dos escravos, ou seja, dar liberdade.

Existiam três formas legais de um escravo comprovar o seu estado de forro ou alforriado. A primeira era pela pia batismal, a segunda era pelo testamento do antigo senhor, que ao morrer concedia a alforria, e, finalmente, pela aquisição de uma carta ou “papel de liberdade”, assinada pelo senhor. Essa carta poderia ser registrada em cartório, em livro de notas, ou apenas ser usada como um documento particular.

A alforria também podia ser gratuita, comprada ou concedida sob condição. Para comprar a alforria muitos escravos assumiam maior carga de trabalho para juntar o equivalente a seu preço e pagar ao senhor. No entanto, mesmo tendo o escravo a quantia equivalente ao seu valor, o senhor não era obrigado a concedê-la. Afinal, por ser herança do direito romano e costume entre os portugueses, o ato de alforriar era considerado uma concessão senhorial. E, mesmo quando era gratuita, muitas vezes a efetiva liberdade só era admitida após a morte do testador e, portanto, sem garantias. Já nas alforrias na pia batismal, sempre de crianças, é mais difícil saber se havia ou não pagamento, mas presume-se que a maioria tenha sido gratuita. Isso porque a alta mortalidade infantil inibia parentes de crianças de gastar dinheiro com a liberdade de uma vida incerta e, por outro lado, fazia com que os senhores ficassem mais dispostos a concedê-la. Em alforrias registradas em cartório, havia um grande número de “coartações”, exigências a serem cumpridas para a obtenção da liberdade.

Alguns estudos mostram que poucos eram os escravos que tinham acesso à liberdade, sendo possível estimá-los entre 0,5% e 2% da população escrava. Sabe-se também que as alforrias por testamento libertaram mais escravos gratuitamente do que as realizadas com “cartas de liberdade”. Além disso, tradicionalmente, considerou-se que a maioria dos alforriados eram velhos enfermos, mas a historiografia atual mostra que as verdadeiras privilegiadas eram as mulheres. O preço delas era inferior ao dos homens e, por isso, muito mais fácil de ser pago. Tinham ainda maior possibilidade de estabelecer laços afetivos com seus senhores, pois atuavam como domésticas, amas-de-leite ou amantes. Além disso, por ser a mulher responsável natural pela reprodução da escravidão, era comum que a sua família centrasse mais esforços em alforriá-la. Dessa forma, seus filhos já nasceriam livres.

Os estudiosos do período colonial também apontam que os escravos urbanos e os das zonas mineradoras eram mais contemplados pela alforria do que os das áreas rurais. Os escravos urbanos tinham maior qualificação profissional e trabalhavam “ao ganho”, ou seja, em serviços pagos na cidade. Assim, ainda que o “ganho” fosse entregue ao seu senhor, os escravos urbanos tinham, em comparação aos escravos rurais, maiores oportunidades de acumular recursos. No caso dos mineradores, havia uma legislação específica que lhes permitia comprar a liberdade mesmo contra a vontade do seu senhor. Caso achassem um diamante acima de 20 quilates, seu senhor era indenizado com 400 mil réis. Já o escravo que denunciasse a sonegação de diamantes ao senhor seria libertado e receberia um prêmio de 200 mil réis (Lei de 1734).

Em relação à vida e situação social de homens e mulheres que foram contemplados com a alforria, os historiadores, de modo geral, registram a pobreza como característica predominante. Um dos motivos seria que, por terem juntado durante anos o valor correspondente a sua liberdade, nada mais lhes restaria. Mas pesquisas recentes mostram que, na verdade, existiam forros endinheirados, principalmente mulheres. Muitos, aliás, se tornaram proprietários de bens e de outros escravos.

FONTE: Boletim Territórios Negros, v. 6, n. 26. nov./ dez. 2006

26/11/2021

O que significa carta de alforria para os negros?

Neste mês de novembro, fui convidado pela diretoria de uma das escolas em que trabalho para falar com a equipe sobre meritocracia. Como é um tema que venho estudando, sobretudo por causa de minha pesquisa do doutorado que entre outras questões investiga as interferências das proposições neoliberais na educação, aceitei prontamente. Contudo, como estamos no mês de novembro, e temos a oportunidade de refletirmos melhor sobre as questões raciais, devido ao 20 de novembro, dia da Consciência Negra, propus que o encontro envolvesse a relação entre meritocracia e racismo. O tema foi aprovado pela diretoria, então passei a elaborar minha apresentação.

Durante esses dias de preparação, estive ainda mais atento às relações entre as promessas de liberdade e as realidades de escravidão. Há cerca de duas semanas, ao acessar uma rede social, me deparei com postagens de uma escola privada de uma cidade vizinha, divulgando estudantes do Ensino Médio já aprovados em vestibulares de instituições particulares. Nas cinco publicações realizadas pela escola, com cinco estudantes, quatro meninas e um menino, até a última data em que acessei a página, o primeiro elemento que chamou atenção foi que todos podem ser considerados brancos, para os padrões brasileiros. O segundo foi que quatro, dos cinco estudantes, foram aprovados em medicina, um dos cursos tradicionais priorizados pelas classes médias e alta. E, por fim, a mensagem que dizia: “Esforço, dedicação e comprometimento com a educação trouxeram a aprovação”.

É evidente que estudo e construção de carreiras no mundo do trabalho exigem esforço, dedicação e comprometimento, mas isso está longe de explicar porque uma parte consegue realizar seus estudos de maneira consistente e tantos outros têm dificuldades para seguir estudando e entrar em cursos concorridos e/ou caros nas universidades. Mensagens como essa divulgada pela escola fortalecem o discurso meritocrático que atribui as conquistas, e também os fracassos, aos indivíduos, não considerando devidamente as realidades que envolvem aspectos econômicos, políticos, afetivos e culturais que favorecem determinada fração em detrimento da maioria da população que não consegue acessar o ensino superior e enfrenta toda sorte de dificuldades para conseguir seu “lugar ao sol”, garantindo bons salários e prestigio social.

Em entrevista publicada em 2019, por ocasião do lançamento de seu primeiro livro parte de uma trilogia sobre a escravidão, o jornalista e historiador Laurentino Gomes argumentou, a partir de suas fontes, que a expectativa é de que somente 5% dos escravizados se rebelavam contra a condição à qual estavam submetidos por meio de fugas para os quilombos. Uma das explicações para isto é que as celebradas conquistas das cartas de alforria funcionavam como um instrumento de manutenção da escravidão, visto que a parcela que conseguia tal feito servia como uma referência desejada pelos outros tantos negros e negras que continuavam como escravos.

Se a colocação de Gomes pode impactar, já que nas escolas e pelos meios de comunicação fomos estimulados a exaltar as alforrias, isso não é tão surpreendente quando traçamos um paralelo com a realidade atual. E para isso é essencial lembrar que o sistema capitalista que promoveu a transformação de milhões de pessoas em mercadoria no sistema escravista, continua a existir de maneira hegemônica, também transformando tudo que pode em mercadoria, mesmo que sob aparências mais sofisticadas. Atualmente, discurso meritocrático se insere nessa tarefa. A insistência da mídia burguesa em querer transformação de pessoas e trajetórias, como a de Rachel Maia, considerada a primeira mulher negra brasileira CEO de uma multinacional, autora do livro Meu caminho até a cadeira nº 1, em personalidade, em referência para a negritude, parece exemplar.

A meritocracia, assim como o apelo ao empreendedorismo, exaltando a ilusória retórica de que se você quiser você consegue, afinal, só depende de você, porque o sol nasceu para todos e com resiliência e perseverança certamente alcançará o sucesso, traz mais um capítulo na história da difusão de ideologias que mantém a dominação de brancos sobre negros, do Norte sobre o Sul em termos globais (e existe Sul no Norte e Norte no Sul, como bem desenvolve Boaventura de Souza Santos), da burguesia abastada sobre a classe/raça de trabalhadores pobres. 

Um dos intelectuais negros mais citados hoje, o camaronês Achille Mbembe, analisa que a condição que historicamente foi aplicada aos negros – exploração, violência, exclusões –, caminha para tornar-se a realidade de enormes contingentes de trabalhadores pelo mundo, devido à lógica do capitalismo neoliberal: “Já não há trabalhadores propriamente ditos. Só existem nômades do trabalho. Se ontem, o drama do sujeito era ser explorado pelo capital, a tragédia da multidão hoje é já não poder ser explorada de modo nenhum, é ser relegada a uma ‘humanidade supérflua’, entregue ao abandono, sem qualquer utilidade para o funcionamento do capital. (...) vem se consolidando a ficção de um novo sujeito humano, ‘empreendedor de si mesmo’, moldável e convocado a se reconfigurar permanentemente em função dos artefatos que a época oferece” (MBEMBE, 2018. p. 15-16).

A questão, para enfatizar, não é refutar a labuta daqueles que superam adversidades e conseguem uma vida digna e reconhecida. Tampouco desvalorizar as diferentes formas de resistência e negociação dos oprimidos ao longo da história. Mas sim, compreender que os mantras meritocráticos, assim como as comemoradas alforrias, compõem uma lógica de inclusão excludente, se consideramos a coletividade, quanto à aceitação e possibilidade de usufruir de vantagens capitalistas sustentadas pelas desigualdades. Uma educação antirracista, que tanto precisamos desenvolver, deve ser uma educação que esteja atenta às mais variadas formas de dominação e que possa questionar as promessas de liberdade diante das realidades de escravidão.

Para saber mais
GOMES, Laurentino. Infelizmente, a história da escravidão é contada por pessoas brancas. Acesse aqui. 

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Paris, n-1 edições, 2018.

Texto originalmente publicado na edição de 26 de novembro do Jornal Pensar a Educação em Pauta.

(Foto: Acervo pessoal/Cleiton Tereza)

O que significa alforria para os escravos?

adjetivo Diz-se de um escravo que se tornou livre; emancipado, liberto, forro.

O que é uma carta de alforria e sua importância para os negros que viviam no Brasil no século XIX?

a carta de alforria era a prova da liberdade de um escravo, introduzindo-o na vida precária de uma pessoa liberta numa sociedade escravista. No século XIX, a carta transferia o título de propriedade (o cativo) de senhor para escravo. Em certo sentido, os escravos literalmente compravam-se ou eram doados para si mesmos.

Como os negros conseguiram a carta de alforria?

É importante descrever que, geralmente, o escravo conseguia a sua carta de alforria depois de juntar muitos trocados, dinheiro e ouro roubado nas minas onde tinham que trabalhar. A palavra alforria da expressão árabe “Al Horria” que significa “a liberdade”.

Qual era o objetivo da carta de alforria?

A carta de alforria era um documento através do qual o proprietário de um escravo rescindia dos seus direitos de propriedade sobre o mesmo. O escravo liberto por esse dispositivo era habitualmente chamado de negro forro.