Quais as alegações dos pesquisadores que não consideram os vírus como sendo seres vivos?

    No simpósio que segue, sociólogas e sociólogos do Brasil e do exterior responderam a quatro perguntas, elaboradas com a expectativa de indagar diferentes dimensões sociais da pandemia e os desafios que ela representa para a sociologia. Os convites foram feitos entre abril e maio de 2020, apenas poucas semanas após as primeiras mortes pelo novo coronavírus no Brasil, e as respostas publicadas originalmente no blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social nos meses subsequentes.

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    Como expressamos na ocasião, mais do que propor análises sistemáticas e fechar diagnósticos sobre a covid-19, o simpósio virtual Mundo Social e Pandemia visava formar um repertório de questões, provocações e referências de leitura que pudessem calibrar nossa bússola sociológica, funcionando como uma espécie de automonitoramento reflexivo da vida social dentro da pandemia. Um ano depois, as interpretações e sugestões levantadas sobre essa grave crise sanitária, humanitária e social seguem nos acompanhando, talvez até mais do que gostaríamos. E o simpósio reedita sua contribuição também como peça de defesa e comunicação pública da ciência frente à proliferação de negacionismos, aos ataques diretos contra a ciência e o desenvolvimento tecnológico em geral, bem como à sociologia como forma de autoconsciência crítica das sociedades modernas em particular.

    O convite para participação buscou contemplar a diversidade da comunidade sociológica brasileira e internacional, levando em conta gênero, geração e outros marcadores sociais, além de filiação institucional e áreas de pesquisa e atuação a fim de olhar a crise em curso e sua relação com a sociologia por ângulos distintos. Trazemos aqui, dispostas em ordem alfabética, as respostas de 70 sociólogas e sociólogos pertencentes a instituições de pesquisa de 18 países e cinco continentes.

    Destacamos que o simpósio foi possível graças a uma parceria entre a Sociedade Brasileira de Sociologia, a revista Sociologia & Antropologia e a Biblioteca Virtual do Pensamento Social. Reforçamos nossos agradecimentos aos/às colegas que encontraram tempo e energia para responder às perguntas, mesmo em meio a tantas demandas e num momento de tanta intensidade. Agradecemos também a todos/as que nos ajudaram nas indicações, especialmente a André Botelho, e na elaboração de alguns dos convites.

    QUESTÕES

    1. Sociólogos(as) e cientistas sociais, em geral, estão se mostrando mobilizados(as) para produzir e compartilhar interpretações sobre os efeitos sociais e políticos da pandemia. A teoria sociológica está equipada para enfrentar o desafio de compreender/explicar o fenômeno?

    2. Como sua área de pesquisa especializada pode contribuir para a reflexão sobre diferentes dimensões desse fenômeno?

    3. A pandemia estaria provocando mudanças sociais, políticas e/ou culturais profundas? Ou acelerando tendências já em curso? Se sim, é possível vislumbrar os contornos das sociedades pós-pandemia?

    4. Que obra(s) da sociologia e das demais ciências sociais podem nos ajudar a compreender e a conversar sobre os desafios em curso?

    RESPOSTAS

    Adalberto Cardoso

    1. Sim. Temos teorias em várias de nossas disciplinas capazes de dar conta dos efeitos multidimensionais da pandemia. As teorias das desigualdades conseguem explicar por que o impacto da covid-19 é diverso segundo as classes sociais e os estratos de renda, as regiões do país e do globo. As teorias sobre o mundo do trabalho explicam os efeitos do isolamento sobre o emprego, a renda, a ação coletiva de diferentes estratos dos trabalhadores ocupados. As teorias sobre a sociedade de risco há muito chamam atenção para o caráter sistêmico da destruição das condições de vida no planeta. A demografia está totalmente equipada para explicar o impacto da pandemia sobre as migrações internacionais, as curvas de crescimento demográfico, as projeções sobre envelhecimento numa situação em que a doença é mais fatal para grupos etários mais velhos. A história busca no passado experiências semelhantes (como a gripe espanhola no início do século XX) para tentar encontrar padrões de resposta social dos diferentes países, alternativas de cuidado, efeitos sobre as populações depois do controle das doenças, papel do Estado e das famílias e assim por diante. Como a pandemia afeta cada momento da vida de todos, em suas múltiplas dimensões, todas as ciências sociais (e também as da vida) têm seus pressupostos mobilizados e postos em xeque neste momento.

    2. A sociologia do trabalho vive um dilema neste momento. Estamos diante de um apagão estatístico que nos impede de medir os reais impactos da pandemia nos indicadores básicos que alimentam nossas pesquisas. Não há pesquisas domiciliares em andamento, o governo federal acabou com o Caged, que fornecia dados mensais sobre a dinâmica do mercado formal de trabalho, o Dieese está com sua capacidade de acompanhamento das greves e dos sindicatos fortemente comprometida etc. Resta-nos, entre outras coisas, o movimento processual na Justiça do Trabalho e pesquisas qualitativas realizadas por grupos de pesquisa em todo o país. Isso nos permite, por exemplo, acompanhar o modo como a Justiça do Trabalho, o MPT e o TST se vêm posicionando sobre o trabalho em plataformas digitais (Rappi, Ifood, Uber etc.), que no mundo todo tem sido objeto de grandes disputas judiciais, decisivas para estabelecer os direitos desses trabalhadores. Isso não é pouco − muito do que ocorre no mundo do trabalho passa pelo sistema judiciário −, mas não é suficiente. Não sabemos e não saberemos o impacto no desemprego, na renda, na rotatividade de mão de obra, na informalidade etc. O Estado planeja (quando o faz) no escuro, e nós não temos como apresentar diagnósticos dos processos em curso.

    3. Os efeitos variam muito de um país a outro. Temos o caso da Hungria, que aprofunda processo já em curso de concentração de poder nas mãos do presidente, hoje com faculdades ditatoriais na prática de governar sem ter que prestar contas a nenhum outro poder ou à população. Temos os casos de França e Itália, cujos presidentes vinham em processo de perda de popularidade e conseguiram reverter essa trajetória em razão da confiança da população no modo como conduziram o combate à doença, apesar do elevadíssimo número de mortos. E temos o caso do Brasil, cujo presidente perdeu popularidade ao colocar-se contra a OMS e a ciência de um modo geral, e aprofundar seu modo de gerir o país por meio do acirramento dos conflitos, num momento em que a cooperação é absolutamente necessária para salvar vidas e construir projetos para a sociedade pós-pandemia.

      Tradições culturais longevas impediram que a covid-19 explodisse na Coreia, por exemplo, país no qual a população se habituou a sair de casa com máscaras depois de viver epidemias consecutivas. Na Suécia a estratégia de herd immunity só foi possível em razão da confiança da população em suas instituições e a resposta voluntária de todos às recomendações quanto ao uso de máscaras, manutenção de distância social, proteção dos idosos, trabalho em casa quando possível etc. Estão pagando um preço alto por isso, é o país com o maior número de mortes na Escandinávia. Foi, porém, uma escolha acatada pela população, e o país deve estar entre os primeiros a ter sua população imunizada. No Brasil, ao contrário, a tradição é de desconfiança da população em relação ao Estado, em especial a população mais pobre. A indiferença moral das elites em relação ao destino dos mais vulneráveis se traduz no baixo valor conferido à vida humana, hoje expresso na pressão de grupos empresariais e de elites políticas governantes pelo fim da quarentena. Isto é, tradições culturais podem jogar contra ou a favor da perda de vidas, e devem ser esperadas mudanças comportamentais em toda parte enquanto a vacina não existir ou um remédio eficaz não for descoberto.

      A falta de informações sobre o desempenho da economia, do mercado de trabalho, do isolamento social real, da evolução real da pandemia (os dados no Brasil estão claramente subestimados) dificulta a formulação de prognósticos. De imediato, os países vão precisar reconstruir suas economias, e isso acontecerá de formas muito diferentes segundo os países e as regiões do planeta. Os países ricos terão margem para rever e reverter suas políticas de austeridade, em nome da reconstrução pós-guerra. Haverá cooperação entre os países europeus, e a União Europeia pode se fortalecer, se coordenar os esforços de reconstrução numa perspectiva não fiscalista, mas sim solidária com os países mais afetados. A China será parceira estratégica nesse aspecto, e pode sair dessa crise como nova potência hegemônica, competindo de igual para igual com os Estados Unidos na definição dos destinos do planeta.

      Os países mais pobres e mais dependentes (como o nosso) sofrerão mais e demorarão mais a se reerguer. São grandes as chances de uma depressão econômica grave, em razão da quebra de cadeias produtivas já muito debilitadas, destruição de milhões de empregos nos serviços, muitos não recuperáveis por ser criados por micro e pequenas empresas hoje de portas fechadas, com pouca ou nenhuma poupança. Nossa dependência da boa vontade das grandes potências será enorme. A capacidade governativa de cada país também será decisiva. Liderança, capacidade de gerar confiança, cooperação, solidariedade e engajamento na população, tudo isso será decisivo no primeiro momento, e infelizmente são qualidades ausentes no atual governo brasileiro. São grandes as chances de caos social sem precedentes, com a fome voltando como flagelo das maiorias.

      A consciência da fragilidade da vida na Terra pode levar à revisão de alguns dos fundamentos do capitalismo predatório que, na pandemia, mostrou seus lados perversos: a desigualdade abissal, a vulnerabilidade social e econômica de bilhões de pessoas, o individualismo regressivo fomentado pelo neoliberalismo, a substituição da solidariedade e da empatia pela competição e o conflito, a destruição da natureza. Há muitas iniciativas interessantes no horizonte, como as propostas voltadas para a redução da velocidade da modernidade, a revisão da obsessão pelo crescimento econômico a qualquer custo, a valorização de energias limpas, a construção de fundos de solidariedade para os países mais pobres, o virtual consenso em torno da ideia de uma renda mínima para todos fruto dos riscos de novas pandemias no futuro, a taxação da especulação financeira e outros.

      No momento o futuro é nebuloso, e essas iniciativas precisarão competir com mais do mesmo, isto é, o capitalismo não se voltará sobre si mesmo para se reinventar como sistema que não se baseie na exploração e na predação de pessoas e recursos naturais. No afã da reconstrução os países precisarão retomar os investimentos para voltar a crescer, agora sobre bases tecnológicas poupadoras de mão de obra, portanto geradoras de menos empregos. Há uma luta ideológica e prática à frente, e apenas o neoliberalismo prospera nos escombros, produtores de individualismos de todo tipo (salve-se quem puder). Outros projetos precisam negociar seus conteúdos entre os pares, criar solidariedade, ação coletiva, cooperação. Precisam de mais Estado. Dependeremos como nunca da capacidade do Estado de coordenar a ação coletiva de uma reconstrução baseada na solidariedade e, também, na compaixão.

    4. Sociedade de risco, de Ulrich Beck; Manipulados, de Brittany Kaiser; Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, de J. M. Keynes; A política como vocação, de Max Weber; The age of surveillance capitalism, de Shoshana Zuboff; A grande gripe. A história da gripe espanhola, a pandemia mais mortal de todos os tempos, de John M. Barry; Da guerra, de Carl von Clausewitz; A arte da guerra, de Sun Tzu; e The Marshall plan: fifty years after, de Martin Schain.

    Anderson Trevisan

    1. Como sabemos, quando as ciências sociais se constituíram, não foi por acaso: pensadores da época estavam inquietos com a crise da modernidade e suas consequências − aumento exponencial da população urbana, desemprego, miséria, onda de suicídios etc. Para tanto, criaram teorias que pudessem ajudar na compreensão dos fenômenos típicos da época, para os quais as ciências existentes não tinham ferramentas adequadas. Em que pesem os diferentes paradigmas constituídos nessa origem, todos tinham em comum a confiança de que seria possível pensar problemas sociais a partir de bases teóricas, fosse para os explicar, compreender ou transformar. Períodos de crise são especialmente férteis para as ciências sociais, que se veem obrigadas a produzir reflexões imediatas, quase sempre a partir de uma autorreflexão. A profusão de ensaios, artigos e pesquisas recentes sobre a pandemia é uma expressão do espírito das ciências sociais: o interesse em explicar teoricamente o mundo, transformando problemas sociais em questões sociológicas, podendo indicar caminhos e proposições para possíveis soluções. Acredito que essa capacidade de se reinventar a cada crise torna a teoria sociológica apta para enfrentar mais esse desafio. Sobretudo porque, em sua atualização, as ciências sociais começaram a desenvolver um olhar menos macro, de modo a perceber que os problemas e contradições sociais afetam de maneiras diferentes homens e mulheres, jovens e idosos, ricos e pobres, negros e brancos etc. Como dizem, o vírus não vê classe, cor, gênero, sexualidade ou idade, mas a sociedade vê, e daí a questão toma contornos que indicam os limites de uma explicação meramente biológica e apontam para contradições que apenas um olhar mais atento pode perceber. Com isso vem uma grande responsabilidade. Boaventura de Sousa Santos, em texto recente, aponta que os cientistas sociais não podem, sobretudo agora, escrever “sobre” o mundo, mas “com” o mundo, não pretendendo ser vanguarda, mas retaguarda, deixando de lado as disputas teóricas ideológicas para dar atenção às necessidades e inquietações dos cidadãos comuns, que precisam de quem lhes indique caminhos e possibilidades, algo que muitas vezes têm recebido de líderes religiosos radicais. Não é fácil essa tarefa, mas é muito necessária. Para isso, entretanto, é preciso que a teoria busque trabalhar com os problemas do dia a dia, permitindo-se levantar questões e hipóteses que serão atualizadas ou mesmo derrubadas a cada nova informação. Nesse sentido, precisaremos de humildade e, como já alertava Wright Mills, de boas doses de imaginação sociológica.

    2. Meu trabalho consiste em investigar a relação entre a cultura e a educação, tendo a arte e o cinema como materiais de pesquisa privilegiados. Enquanto ferramenta metodológica, é na sociologia da arte e do cinema que busco meu referencial (especialmente em Pierre Francastel e Pierre Sorlin), o que significa procurar, a partir dos filmes, elementos que permitam realizar uma discussão sobre problemas sociais. Existe uma quantidade gigante de filmes, tanto de ficção quanto documentários, que tematizam desastres, distopias, guerras, epidemias etc. Tais obras se tornam um laboratório fértil para se discutir a realidade, especialmente quando se leva isso para a sala de aula, algo que faço com frequência. Da mesma forma que se proliferam os ensaios teóricos sobre essa crise, há uma onda de material audiovisual sendo produzido, algo que a sociologia do cinema não poderia ignorar, sobretudo quando aplicada à educação. Os filmes são um caminho muito fértil de problematização da vida social, e isso é especialmente válido quando a pesquisa está relacionada com as ativi- dades de ensino, que é o meu caso, posto que trabalho com a formação de professores.

    3. Essa não é uma pergunta de resposta fácil, mas existe consenso entre os ensaios que tenho lido e apontam para certa inocência ao se pensar que a pandemia é uma grande novidade, como um meteoro que nos atingiu. Ainda que a pandemia seja causada por um vírus, não encontraremos nas ciências naturais uma resposta para suas causas ou consequências mais gerais, e sim nas ciências sociais, pois foram ações humanas, ligadas ao avanço do capitalismo e ao consumo desenfreado, que construíram o cenário para que essa pandemia se instalasse. Quer a chamemos de hipermodernidade, pós-modernidade, modernidade líquida, hipercapitalismo etc., a pandemia é um fenômeno de nossa época, é global e exige respostas globais. Não há, entre autoras e autores, respostas homogêneas quanto à sociedade pós-pandemia. Naomi Klein afirma que, superada a pandemia, sob a justificativa de recuperar a economia mundial, poderiam ser colocadas em prática políticas neoliberais que afetariam diretamente os menos favorecidos, com a diminuição de direitos trabalhistas e programas sociais, e privatizações de toda ordem. Além disso, sob a alegação da crise, protocolos ambientais poderiam ser desrespeitados por países como a China ou os Estados Unidos. A autora chama isso de doutrina do choque: em épocas de grandes desastres, guerras ou pandemias como esta, os grupos de elite exploram a confusão das pessoas e passam a difundir os aspectos positivos do que seria uma radicalização do neoliberalismo, atacando também a democracia. Por outro lado, Klein indica que épocas de grande crise podem oferecer a oportunidade para um “salto evolutivo”, com a criação de políticas sociais até então deixadas de lado, como a ampliação da saúde pública para todos, por exemplo. Boaventura de Sousa Santos faz uma reflexão parecida, ao dizer que, embora a pandemia atinja de forma desigual as pessoas, ela constrói uma espécie de “consciência de comunhão planetária” e que, mesmo com o distanciamento social ou isolamento, existe solidariedade (Gilles Lipovetsky, mais cético, afirma que o coronavírus é um sintoma do individualismo hipermoderno, e que mesmo quando ficamos em casa, não o fazemos por solidariedade, mas por interesse pessoal na autopreservação). Essa consciência coletiva é algo raro e, se a pandemia terá efeitos colatereis negativos para a sociedade, talvez ajude a criar também uma nova consciência planetária sobre o destino humano. Fato é que, nós, cientistas sociais, somos forçados a pensar sobre os acontecimentos no calor da batalha, e esse conhecimento construído em processo certamente tem falhas, contradições, imprecisões, e precisa ser retrabalhado à luz dos novos dados e novas discussões. É muito salutar o fato de que tantos intelectuais se estejam dedicando a pensar de forma coletiva sobre um mesmo tema. Tanto quanto os pesquisadores da saúde que fazem o mesmo para o desenvolvimento de medicamentos ou uma vacina, as ciências sociais estão cumprindo sua função em um movimento riquíssimo que, certamente, promoverá um conhecimento necessário e muito qualificado. Em que pese a capacidade de realizar projeções ou previsões sobre o futuro do mundo, no entanto, por ora não acredito que a sociologia possa dar alguma resposta concreta. Não podemos, porém, nos furtar à tarefa de seguir levantando questões.

    4. Não saberia indicar nada muito específico. No entanto, há algumas iniciativas que têm oferecido material muito interessante para o debate. Um deles é o Dossiê coronavírus e sociedade, da Boitempo Editorial, publicado em seu blog. Outra iniciativa é o boletim da Anpocs, Cientistas Sociais e o Coronavírus, atualizado semanalmente. Boaventura de Sousa Santos publicou recentemente pela Editora Alamedina, de Coimbra, o livro A cruel pedagogia do vírus. Fora isso, é sempre bom voltar aos clássicos da sociologia, como O suicídio, publicado em 1897 por Émile Durkheim, que oferece um modelo criativo de trabalho sociológico que lida com uma questão aparentemente ligada apenas à saúde mental individual a partir de um método rigoroso de análise sociológica, partindo do modelo epidemiológico. No mínimo, ajuda a desenvolver nossa imaginação sociológica.

    Andrew Linklater

    1. Vou restringir minhas observações à contribuição que a perspectiva sociológico-processual de Norbert Elias pode trazer para o entendimento da crise de saúde pública trazida pela covid-19. O alto nível de conformidade às estratégias de confinamento em muitas sociedades ilustra um tema central em seu estudo do processo civilizador, a saber, a existência de uma transformação de longa duração no equilíbrio de poder entre o autodomínio e o medo de constrangimentos externos enquanto fatores influenciadores da conduta humana. Elias analisou livros sobre costumes para demonstrar de que forma novos muros eram erguidos entre as pessoas como resultado da mudança nas concepções de propriedade social, reforçados em períodos posteriores por preocupações com higiene. As medidas de distância social no presente, incluindo a frequente lavagem das mãos, devem ser vistas nesse contexto, a saber: em uma perspectiva de longa duração e em conjunto com mudanças estruturais maiores, tais como a formação do Estado e sua pacificação interna, examinadas por Elias.

      As sociedades em questão adquiriram poderes imensos sobre a natureza, mas Elias repetidamente ressaltou a sua suscetibilidade a processos de tirania que elas não podem controlar. Um tema recorrente é que o maior poder societal sobre a natureza se desenvolveu lado a lado com o perigo crescente de sujeição a processos incontroláveis, como a guerra. Uma citação do livro Teoria simbólica mostra como ele nuançou o ponto: “a espécie humana ganhou ascendência sobre a maioria de seus rivais e inimigos potenciais do reino animal”. As sociedades humanas “mataram, encarceraram ou confinaram a reservas outras espécies animais, e estão apenas começando a se dar conta de que a dominação sobre outros acarreta alguma responsabilidade para si mesmas”. Além disso, a vitória está incompleta. No nível dos “vírus e bacilos”, argumentou Elias, “a luta continua”.

      Uma questão central para o autor é até que ponto sociedades podem transcender respostas a crises que sejam guiadas pelo medo, e até que ponto elas podem adquirir pontos de vista mais autônomos que aumentem suas chances de ter controle sobre processos não planejados. A relação entre perspectivas nacionais altamente comprometidas e orientações humanistas mais autônomas é crucial.

    2. Uma pesquisa recente foi realizada visando elaborar um livro sobre a ideia de civilização na política mundial e preparar as bases para um estudo dos símbolos em uma perspectiva de longa duração. Gostaria de fazer alguns comentários sobre as conexões entre esses projetos e a atual crise de saúde. O livro discute o argumento de Elias de que no curso do processo civilizador europeu os níveis de violência em geral declinaram, os níveis de autodomínio aumentaram, a identificação emocional entre pessoas foi ampliada e o planejamento social foi intensificado. Podemos, contudo, nos perguntar até que ponto essas quatro tendências estão evidenciadas na política mundial, utilizando os critérios fornecidos pelos escritos de Elias como base para que investiguemos as principais direções da mudança.

      Passando à questão dos símbolos, quaisquer mudanças no poder relativo de símbolos nacionais ou internacionais podem iluminar tendências globais gerais. Por exemplo, partidos nacional-populistas dos últimos tempos têm conseguido elevar os níveis de apoio a símbolos nacionais, acarretando um grande desafio a organizações internacionais, tais como a UE, associadas a uma hegemonia global frequentemente acusada de negligenciar os interesses de grupos vulneráveis e diminuir o papel das filiações nacionais. O simbolismo global permanece fraco, mas movimentos tais como Rebelião da Extinção criaram símbolos que ressoam em várias sociedades. Será importante analisar o simbolismo da crise de saúde: se tonará o vírus SARS_Cov_2 um símbolo de medos e ansiedades nacionais derivado da imprevisibilidade das interconexões globais? Ou um símbolo de ameaças à humanidade que possa comprometer novas solidariedades transnacionais? Em outras palavras, que papel a covid-19 desempenhará nas imagens futuras de uma civilização global ou na consolidação de diretrizes nacionais? Pesquisas recentes influenciadas pela sociologia do processo ressaltam que a luta pelo simbolismo da covid-19 pode ter um papel crítico no período por vir e que tentativas de controlar seu sentido podem ter um efeito profundo no equilíbrio de poder entre perspectivas nacionais e internacionais.

    3. Na conclusão de Mappae Mundi, Goudsblom e de Vries afirmam que os processos sobre os quais as sociedades pensam ter mais controle podem se tornar os mais imprevisíveis. Nesse sentido, talvez seja melhor focalizar critérios que possam ser usados para analisar quaisquer direções significativas de mudança nas figurações humanas. Conforme mencionado, os escritos de Elias fornecem critérios importantes. De especial importância para a análise de tendências globais é saber se o autodomínio nacional está aumentando ou diminuindo, se a identificação entre pessoas está alargando ou estreitando, e se o apoio ao planejamento internacional de proteção aos vulneráveis está crescendo ou decaindo. Esses critérios podem ser especialmente úteis para examinar os efeitos da covid-19 na ordem global. Eles apontam para a necessidade de focalizar até que ponto preocupações nacionais autocentradas direcionam acontecimentos e até que ponto solidariedades transnacionais estão ganhando força. É importante o equilíbrio de poder entre essas forças. O ponto, portanto, é a relativa importância das orientações nacionais e pós-nacionais em relação ao mundo como um todo. No período recente, movimentos nacional-populistas têm escarnecido do globalismo. Símbolos nacionais têm sido centrais para o ataque a organizações internacionais. Movimentos ambientalistas têm estado na linha de frente de contra-ataques ressaltando problemas que afetam a humanidade como um todo e requerem ação global. O tempo dirá se a covid-19 vai ser mais associada a pontos de vista nacionais ou globais, ou ao menos como o equilíbrio entre essas perspectivas se desdobrará. Essa é uma das questões centrais que merecerão atenção estreita da comunidade científico-social.

    4. Sociólogos do processo argumentaram pela adoção da perspectiva de longa duração para lidar com os arranjos sociais e seus desafios. Eles não ignoraram o impacto das epidemias nas figurações humanas. Stephen Mennell recentemente chamou atenção para um artigo magnífico sobre saúde pública e processo civilizatório de autoria do falecido Johan Goudsblom, publicado no The Milbank Quarterly em 1986. Esse ensaio discute como os padrões de autodomínio mudaram em resposta a epidemias. É fascinante no atual contexto a referência a expectativas de que na Idade Média os leprosos deviam manter-se à distância seis pés (1,82m) das pessoas saudáveis. Goudsblom associa essas suposições sobre padrões necessários de autodomínio ao curso geral do processo civilizador europeu. O artigo é uma introdução fabulosa à perspectiva de longa duração no mundo social, que é a marca distintiva da sociologia do processo. Ele convida os leitores a refletir sobre a relação existente entre o processo civilizatório e as atitudes ligadas ao corpo, à saúde e à higiene.

      O livro de Elias Envolvimento e alienação tem importância atual considerando que as pessoas lutam para orientar-se diante de novos desafios e perigos. Ali, o autor ressalta que frequentemente é o medo que domina as respostas às crises e, portanto, compõe as dificuldades humanas. A questão é até que ponto as sociedades podem adquirir um nível de alienação que contribua para um maior entendimento e controle dos processos que as dominam. De novo, é o equilíbrio entre forças complementares que importa. Nos últimos tempos, líderes nacional-populistas têm disparado escárnio sobre os especialistas. Trump, como se sabe, rapidamente rotula verdades inconvenientes como fake news. Tem havido uma corrupção do discurso público. Comunidades científicas são hoje amplamente vistas como provedoras de conhecimento autônomo, com potencial de ajudar as sociedades a encontrar seu caminho para além da crise. Grande parte do foco está na humanidade como um todo, antes que nos interesses de uma nação. Envolvimento e alienação oferece uma perspectiva de longa duração sobre tais tensões e sobre as dificuldades que as sociedades têm em perceber-se para além dos vínculos nacionais quando lidam com os desafios que demandam ampliar e aprofundar as interconexões globais.

    Antonio Sérgio Guimarães

    1. Estávamos todos despreparados, mas despreparados socialmente – em termos de sistemas de saúde, de proteção social e de articulação interdisciplinar. Em termos científicos disciplinares, não. Sabemos o que se pode saber. Ou seja, os condicionantes, ou a estrutura, que moldam a crise. Nossas economias e nossas sociedades há muito desafiam os limites naturais da vida. A crise não é só sanitária, pois coincide com o agravamento da crise financeira e o desequilíbrio econômico que se arrasta desde 2008. Por isso a crise sanitária pode assumir dimensão avassaladora; porque destruímos boa parte do sistema de saúde pública e de proteção social que vínhamos construindo desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Desmontamos políticas sociais que hoje seriam mais eficientes para nossa resistência. Em termos da ação social, faltam dados e, a rigor, não temos conhecimento suficiente hoje para entender o que se passou na Ásia e na Europa e o que está se passando conosco nas Américas. O jogo parece bastante incerto quando não podemos nem mesmo contar o número de mortos em tempo real. Sabemos que projeções são aspirações políticas mais ou menos controladas pela razão. Mas sabemos também que o mundo virtual ganhou uma enorme força e assistimos à emergência de movimentos sociais virtuais que minam a circulação de informações e a racionalidade. Os efeitos da covid-19 dependerão, antes de mais nada, das respostas que são dadas pelos agentes sociais nos campos da política, da economia, da cultura etc. As consequências variarão de país para país, de região para região, mas afetarão todos de algum modo. Indagamos o futuro a partir de questões presentes. Haverá um retorno ao estado de bem-estar social como ideal? Haverá um freio à desindustrialização ocorrida nos últimos 40 anos em benefício da globalização? A migração internacional e a grande circulação turística serão contidas?

    2. As consequências das desigualdades raciais, de classe e de gênero, de idade etc. sobre a capacidade de resistir à pandemia está sendo uma preocupação constante. O isolamento social agudiza problemas crônicos de violência contra mulheres, contra idosos, contra crianças. Mas essas desigualdades explicitam principalmente os limites das medidas de contenção à covid-19 e deixam às claras clivagens raciais, sociais e políticas, que podem muito bem ser exploradas em qualquer direção – seja para maior igualdade no futuro, seja para o aprofundamento dessas desigualdades. O exército virtual do presidente aposta no mote de que as pessoas têm que se arriscar para trabalhar a qualquer custo. Vende a ideia de que não se deve dar tanto valor à vida; de que sobreviverão os mais aptos fisicamente; de que somos desiguais e de que a vida é uma luta. Com isso se isenta das responsabilidades mínimas de um Estado-nação e mobiliza o ódio e a intolerância. Mas assistimos também à resistência dos governadores que procuram basear sua ação no que temos de capacitação científica e de boas práticas epidemiológicas. Isso de norte a sul. Assistimos, principalmente, a parcelas das classes médias darem-se conta de que as nossas mazelas sociais as afetam diretamente e, sobretudo, do erro tremendo que foi eleger um governo totalmente despreparado. Há uma mobilização também de lideranças comunitárias. Ou seja, o Brasil desigual pode assumir seu destino federalista, a organização dos subalternos encontrar novos desafios na defesa e preservação da vida, para além da luta pela ascensão social. A contrapelo dessa tendência, há um desmanche mais profundo e mais duradouro da proteção social e do sistema educacional e de ciência e tecnologia pelo governo brasileiro. Outras parcelas dessa mesma classe média estão dispostas a encarar o risco de morrer para evitar a desclassificação social ou para promover sua própria ascensão.

    3. Tudo dependerá da duração da pandemia ou da descoberta de uma vacina. Muitos líderes políticos hoje estão preocupados com a concentração industrial na Ásia; com a autonomia e o poder dos gigantes da internet; principalmente com suas consequências: a desindustrialização, o desemprego crônico, o desmantelamento da proteção social, a migração crescente, os movimentos terroristas religiosos ou de direita, a crise ambiental etc. No Brasil, essas não são as preocupações dos governantes, haja vista o desmanche do sistema de fomento público da ciência, do ensino, da saúde e das artes; coincide com a covid-19 o surgimento de um colonialismo voluntário e estúpido. As classes médias brasileiras, que nos últimos anos perderam seu brio nacionalista, talvez tenham agora a oportunidade de ver o modo como os republicanos nos Estados Unidos se contentam em gerenciar as desigualdades num estado permanente de selva social. Por isso, se a extrema-direita perder o poder nos Estados Unidos, teremos a possibilidade de ver a exploração populista da miséria perder força no Brasil. Talvez essas classes médias voltem a ter nas instituições dos estados de bem--estar social europeus um modelo de construção estatal e de vida social civilizada. Principalmente, voltem a acreditar que podemos ser um país original e autônomo. A globalização dos últimos anos, mais que enfraquecer nosso parque industrial, nos desmoralizou como nação – deixamos de acreditar nas instituições, nas lideranças, para atrelar nosso destino à dinâmica norte-americana. Quem ousa hoje falar em sociologia brasileira, como Guerreiro Ramos falava nos anos 1960? Evitar que a pandemia nos consuma significará saber dosar a soberania nacional com a cooperação internacional. Isso em todos os campos. Mas há uma possibilidade bastante realista “de o mundo de depois ser terrivelmente parecido com o de antes, mas um pouco pior”, para citar o chanceler francês Le Drian.

    4. É sempre bom reler Norbert Elias e refletir sobre o modo como a vida biológica e a vida social estão entremeadas em suas análises. Há uma série de questões a ser posta para a investigação sociológica. Por exemplo, a relação entre as comorbidades da covid-19 e as condições e os estilos de vida social devem despertar nosso interesse. Assim como a maior ou menor coesão social, a nossa relação com o reino animal e as práticas de distanciamento social já presentes em nossas sociedades, bem como aquelas que virão se estabelecer no póscovid-19. Mas é essencial retomar também a leitura dos desenvolvimentistas e dos pensadores “subalternos” e dos abolicionistas. Ler, ademais, a história social que foi feita no Brasil nos últimos 30 anos. Nossos maiores empecilhos como nação são e sempre foram as desigualdades sociais e raciais, que modulam as demais. Se a covid-19 pode ser uma armadilha para aprofundar o racismo e o elitismo de nossa sociedade, pode ser também uma oportunidade para melhor os conhecer.

    Bernardo Sorj

    1. Como acontece com tantos fenômenos novos do mundo contemporâneo, a teoria sociológica apresenta instrumentos capazes de explicar certas dimensões, enquanto outras fogem dos esquemas analíticos existentes. A quarentena é um fenômeno inédito para as últimas gerações de sociólogos em boa parte do mundo. Não convivemos nem experimentamos situações-limite de alguma forma similares, como situações de guerra, que desestruturam de forma radical o cotidiano das pessoas e o funcionamento habitual da sociedade. Como acontece com situações inéditas, os sociólogos navegarão entre a tendência a mostrar como padrões preexistentes se atualizaram, mas continuaram presentes durante a quarentena, e a ênfase nos fenômenos inéditos. Como sempre é o caso, ambos terão razão. A quarentena, por exemplo, será vivida de forma diferente de acordo com a situação econômica, mas o convívio prolongado dos casais com seus filhos no lar deverá produzir reações muito variadas do ponto de vista das relações de gênero. O impacto diferenciado do coronavírus em termos de faixas etárias relembrou a sociedade de que a idade tem dimensões biológicas, que a cultura da “eterna juventude” (em que tudo depende de fazer esportes e manter uma dieta adequada) tinha um lado de miragem, de uma cultura que vive em estado de negacionismo do ciclo biológico.

    2. [Optou por não responder]

    3. A pandemia deverá agravar tendências preexistentes, com consequências políticas difíceis de prever: 1) Como acontece com grandes crises econômicas, o saldo será o aprofundamento da desigualdade social e, em particular, o número de pessoas desempregadas e empobrecidas. Além dos efeitos econômicos imediatos, as empresas aproveitarão para fazer cortes de pessoal e salários, e acelerar o crescimento do comércio virtual aprofundando a crise do comércio varejista off-line. 2) Aprofundamento da polarização político-cultural entre setores da sociedade que aderem à produção de conhecimento e informação associada ao campo científico e jornalístico, e aqueles que consideram seus líderes políticos, que promovem uma política de desinformação e intoxicação, única fonte de informação confiável. 3) Deverá aumentar o sentimento de “colapso do futuro” preexistente. Se por um lado ele pode favorecer mais sensibilidade frente a temas como a crise ambiental, também alimentará visões de mundo religiosas e/ou que idealizam o passado, gerando um saudosismo passível de ser aproveitado por grupos reacionários. 4) Difícil prever como a maior conflitividade social se expressará em termos políticos, mas a crise exigirá dos partidos de centro-esquerda um reposicionamento mais à esquerda ao mesmo tempo em que enfrentarão o dilema de ter que, em muitos países, se unir ao centro-direita para excluir partidos de extrema-direita dos pactos de governo. Os contornos e dinâmicas políticas das sociedades pós pandemia deverão ser diferentes em cada país e região. 5) A eficácia do uso de sistemas eletrônicos para controlar o movimento das pessoas e diminuir a disseminação do vírus acelerou o uso de sistemas de vigilância pelo Estado e legitima os novos métodos de vigilância da população, até mesmo em sociedades democráticas. 6) A crise levará a um aprofundamento do confronto entre a China e os Estados Unidos, desestabilizando ainda mais o sistema internacional, aumentando as pressões sobre o resto dos países para escolher um dos lados. 7) A maior intervenção do Estado na economia deverá levar a teoria sociológica a rever a visão dominante nas últimas décadas, influenciada pelo impacto do neoliberalismo e da globalização, na qual o Estado foi reduzido a um instrumento dos grupos dominantes. Devemos ter uma visão mais ampla do Estado, que, sem excluir a dimensão dos interesses de classe, considere que as fontes de poder, as funções e a legitimidade do Estado não são redutíveis à promoção de interesses de classes.

    4. Para entender o momento atual podem ajudar as seguintes leituras: 1) A trilogia de Michael Mann, The sources of social power, que trata o poder do Estado como uma dimensão não redutível dos sistemas sociais. 2) Eric D. Weitz, Weimar Germany: promise and tragedy, e em geral livros sobre o período entreguerras, pois, apesar de óbvias diferenças, existem também similitudes e lições relevantes para os tempos atuais. 3) Livros sobre economias de guerra, para entender o momento econômico atual e seus possíveis desdobramentos, como o de Alan Steele Milward War, economy and society, 1939-1945. 4) Estudos de psicologia social sobre os efeitos de confinamento individual e impacto da guerra nas populações.

    Bila Sorj

    1. O acompanhamento do desenrolar do debate público sobre a pandemia, principalmente pela mídia, permite constatar que sociólogos e cientistas sociais estão sendo muito pouco procurados para falar sobre o tema. De fato, as vozes que comparecem são dos epidemiologistas, infectologistas, intensivistas etc., considerados representantes da ciência. Isso dá a impressão de que podemos enfrentar esta crise sem considerar as abordagens sociológicas. Na verdade, os cientistas sociais estão muito ativos na produção de análises sobre a pandemia, mas suas interpretações circulam sobretudo no interior dos círculos acadêmicos, nas revistas científicas e blogues especializados. É uma pena que as ciências sociais não ocupem um espaço mais amplo, conversando com uma audiência leiga. Os sociólogos têm muito a dizer sobre tudo o que se move na sociedade.

    2. Uma das lições da pandemia é a necessidade urgente de se estudar a hierarquia social das ocupações, de acordo com nossos valores e em relação a sua real utilidade. As ocupações que se tornaram emblemáticas na crise são sobretudo aquelas desempenhadas por mulheres e ligadas às atividades de cuidado: são as enfermeiras, as auxiliares de enfermagem, as cuidadoras de idosos, crianças e deficientes, as faxineiras, além das médicas e médicos os grandes protagonistas na pandemia. Além disso, a estratégia de combate à doença conta basicamente com o suporte do trabalho das mulheres no âmbito familiar. Essas ocupações são muito pouco reconhecidas e, consequentemente, mal remuneradas. David Graeber, antropólogo americano, em seu livro Bullshit jobs, nos convida a pensar o que diferencia um “trabalho essencial” de um trabalho “sem sentido”. Para saber o que configura um “trabalho essencial”, afirma ele, basta imaginar quais seriam as consequências sociais de seu desaparecimento. A crise alentou uma percepção, até agora pouco enraizada na sociedade, de que as ocupações essenciais são aquelas que nos permitem continuar vivendo.

    3. Creio que é muito cedo para avaliarmos os efeitos da crise. Em geral, os sociólogos são cautelosos na hora de produzir prognósticos sobre os deslocamentos do mundo social. É necessário mais tempo para podermos vislumbrar o que vem por aí. As incertezas econômicas e de saúde e a condição de confinamento podem levar as pessoas a se questionar sobre o tipo de vida que levam e o tipo de sociedade em que vivem. Dessa reflexão pode surgir uma percepção da importância de certos bens e da inutilidade de outros, até agora tão valorizados. Pode emergir um forte desejo de mudança de modelo econômico, de redução das desigualdades sociais, de valorização dos serviços públicos e da segurança social, temas que estão aparecendo, com vigor, na mídia. Depois de viver alguns meses numa situação de perigo iminente, porém, as pessoas também podem desejar voltar ao já conhecido, ao “normal”, e tendências autoritárias podem vir a se fortalecer.

    4. Joan C. Tronto, Who cares?: how to reshape a democratic politics; Arlie Russell Hochschild, The commercialization of intimate life: notes from home and work; Pascale Molinier, Le travail du care.

    Celi Scalon

    1. A sociologia tem fundamentos que permitem uma reflexão qualificada sobre o fenômeno da pandemia de covid-19; conceitos como globalização, risco, desigualdade, vulnerabilidade, redes, para citar apenas alguns, podem embasar a compreensão do contexto atual. Qualquer análise nesse sentido, no entanto, demanda também ousadia e inovação. Essa não é uma situação nova para nossa disciplina. Como diz Weber, a sociologia tem o dom da eterna juventude, porque sua produção é marcada pela renovação, condição básica para o entendimento de processos que são dinâmicos e estão em constante mutação. A sociologia é a ciência da mudança; por isso, lidar com fenômenos novos e desafiadores está em sua própria natureza. Estamos diante de um processo único de mundialização, de cooperação/competição e de solidariedade que expõe as desigualdades crescentes nas sociedades contemporâneas que já vinham sendo apontadas desde a crise de 2008.

    2. A pandemia da covid-19 tornou evidente características extremas das desigualdades não só aquelas registradas dentro dos Estados-nação, mas especialmente as que existem entre eles. Mostrou a fragilidade do argumento liberal-meritocrático e a importância de um sistema de bens públicos, que chamamos de estado de bem-estar social, promotor não só de equidade, mas também de solidariedade. Tornou-se comum ouvir que o vírus não distingue pobres e ricos, o que é um fato, mas os sistemas de saúde distinguem. Em países em que o sistema de saúde público convive com o privado, ficou claro o recorte de classe e racial das vítimas da covid-19. É importante mencionar, também, que a crise econômica atingiu os estratos menos privilegiados de forma muito mais aguda do que os estratos superiores da pirâmide social – isso é fato em todos os países.

    3. A covid-19 certamente trará mudanças significativas para as relações sociais, aprofundando processos em curso e, também, mudando o curso de alguns processos. No primeiro caso, posso mencionar que a crise econômica que se estabelece com a pandemia vai aprofundar as desigualdades na distribuição de bens e riquezas que já vinham se avolumando, e também pode reforçar tendências nacionalistas e xenófobas, que vinham sendo manifestadas por alguns segmentos sociais em todo o mundo. Refletindo sobre o revés de processos em curso, ou seja, no que mudam de direção, creio que haverá mais desconfiança em relação aos processos de globalização, em especial da divisão de trabalho entre países, que era uma marca do século XXI. Cabe, ainda, apontar as consequências para a pirâmide demográfica, uma vez que o vírus causa maior fatalidade entre os mais idosos; desse modo, a tendência de envelhecimento das populações, em especial na Europa, pode ser interrompida, com perda de indivíduos nos coortes mais velhos de idade. Um saldo positivo desta crise deve ser a maior adesão a um modelo de estado de bem-estar social, que reforce o papel das instituições públicas em atividades essenciais para a população em geral, como saúde, pesquisa e educação. Está havendo uma revalorização da ciência, da saúde, da educação, bem como de auxílios como renda básica e apoio a pequenos empreendimentos. Em todos os países, parece haver uma crítica construtiva que aponta os limites do modelo liberal e privatista.

    4. Creio que todas as obras que tratam das desigualdades econômicas e sociais pós-crise econômica de 2008, em especial as que tratam de temas como riqueza, não se limitando a simples análises de distribuição de renda; consumo; urbanização/metrópoles; imigração e políticas públicas. E, sem dúvida, as obras de Ulrich Beck que apresentam e discutem o conceito de sociedade de risco.

    Clara Maria de Oliveira Araujo

    1. Penso que em parte, está. As modalidades de trabalho remoto, as formas de participação política virtuais e ainda a emergência das formas não convencionais de interação social e afetiva são alguns dos aspectos que se exacerbaram nesta pandemia, e em relação aos quais as ciências sociais vêm dedicando espaço nas últimas décadas. Vale ressaltar que a sociologia tem incorporado mais as noções de contingência, “imprevisibilidade” e incerteza, como constitutivas da vida social. Isso inclui, também, eventos e processos definidos como “naturais”, mas que são objetos indiretos de intervenção humana. Como exemplos temos o problema ambiental e as mudanças climáticas. Nesse sentido, analiticamente, podemos estar preparados para investigar esta experiência.

      A intensidade e o ineditismo de aspectos da pandemia, porém, constituem novos desafios para o conhecimento sociológico. Em cerca de três meses a característica contingente e quase simultânea do evento obrigou metade da população a alterar, de modo radical, os padrões de sociabilidade, produção, convivência e lazer. A despeito da natureza provisória dessas práticas, provavelmente sua intensidade e as incertezas terão desdobramentos na vida das pessoas. Citemos, por exemplo, o compartilhamento, em nível global e quase simultaneamente, das experiências de isolamento social, os novos e diversos usos do espaço doméstico ou ainda o trauma diante da privação dos rituais de passagem, sobretudo aqueles envolvendo a morte. As ciências sociais têm se desenvolvido muito com base em recortes temáticos, o que nos ajudará a compreender múltiplas faces do fenômeno; mas, para compreendê-lo em toda a sua extensão, serão necessárias análises macrossociológicas da pandemia, das ações globais para detê-la e de suas consequências. Nesse caso, o método comparativo será fundamental, mas articulado com reflexões teóricas. Tenho dúvidas se os referenciais teóricos e instrumentos empíricos usados para explicar a modernidade em seus diferentes momentos e traços poderão ser simplesmente aplicados para compreender o que virá no pós-pandemia.

    2. Estudo as relações de gênero e seus efeitos sobre as relações sociais em geral. Nesta pandemia várias notícias mostram o acirramento das desigualdades de gênero. O aumento dos registros de violência doméstica contra as mulheres é um exemplo. As manifestações de estresse e depressão neste período mais frequentes nas mulheres, segundo a mídia, são outro exemplo. A sobrecarga de trabalho doméstico, ainda outro. O confinamento e o fato de o local de moradia se tornar lócus de diversas atividades de produção e reprodução – trabalho remoto, consumo, lazer – expõem ainda mais esse problema. Mulheres, mais do que homens, mencionam o aumento da carga de trabalho, em especial se têm crianças, pois a suspensão de atividades escolares e de creches e o isolamento aumentam a necessidade de propiciar cuidado, lazer e atenção. Há também o efeito sobre o próprio emprego, até porque as mulheres estão concentradas em trabalhos mais precários, que tendem a ser mais afetados. O trabalho remoto, a partir de casa, foi disseminado e merece pesquisas sobre como tem sido realizado por mulheres e homens. Há, portanto, vários indícios de que os efeitos e os desdobramentos na economia e no ambiente familiar poderão não ser iguais. Por exemplo, o acesso a tecnologias facilitou mais ou menos o trabalho doméstico? E na política, será que homens e mulheres com poder político e de gestão se comportaram de modo idêntico em suas decisões associadas com a pandemia? Sem dúvida haverá que investigar as dinâmicas entre espaços públicos e vida privada antes, durante e depois da pandemia. As feministas são pioneiras em alertar para a interdependência humana como algo universal e para a incompatibilidade entre essa condição e os padrões capitalista e neoliberal vigentes. Há que acompanhar se e em que medida tais questões poderão merecer outro status na agenda pública após essa experiência.

    3. De início parece-me que vem acelerando tendências, mas há muito o que observar. A pandemia tem obrigado boa parte da humanidade a conviver com cotidianos muito distintos daqueles com os quais vem convivendo nos últimos 200 anos. A separação entre público e privado, entre casa e trabalho, espaço de produção e de reprodução constitui um traço identificador do que se convencionou chamar de modernidade. De forma abrupta, cerca de metade da humanidade – segundo estimativas da mídia – se vê obrigada a circunscrever muitas das atividades realizadas em diversos espaços às fronteiras físicas da casa; e a desenvolvê-las em situação de distanciamento social e de interações profissionais, afetivas e políticas virtuais. Algumas são mudanças em curso que foram aceleradas, como por exemplo os encontros virtuais com amigos e familiares, assim como trabalhos em certas ocupações. Mas a ausência forçada de encontros presenciais, o uso diverso e constante do espaço doméstico e o exercício da deliberação política de modo virtual, por exemplo, não eram aspectos tão proeminentes no mundo pré-pandemia.

      É possível vislumbrar uma sociedade menos presencial e mais virtual, com a intensificação de nossa percepção de proximidade e distanciamento não mais tão marcada pela presença física. Mas essa é questão de investigação da sociologia desde o início da década de 1990. Por outro lado, a crise econômica decorrente da pandemia e a necessária ação pública estatal para enfrentá-la podem alterar de forma mais profunda a percepção sobre o mercado e sua atual natureza predatória. A desigualdade social que estrutura a sociedade capitalista tenderá a se agravar no curto prazo. E as questões do acesso e da distribuição social dos bens e dos mecanismos políticos que facilitam ou dificultam tais acessos, ou seja, da desigualdade, tenderão a ser centrais no debate público. No momento, é possível vislumbrar uma coletividade mais crítica a essa situação. Resta investigar qual será a extensão e profundidade dessas mudanças.

    4. Na sociologia clássica, destaco duas obras que me parecem importantes para compreendermos características e sentidos mais amplos de mudanças sociais. A de Émile Durkheim A divisão do trabalho social possibilita compreender a ideia de cooperação e interdependência, sem a qual não há sociedade; o clássico Manifesto comunista, escrito por Karl Marx e Friedrich Engels, nos faz perceber a natureza dinâmica e fluida da vida social, incluídas instituições que, aparentemente, são sólidas e percebidas como imutáveis. No meio-termo entre clássico e contemporâneo sugiro o livro de Norbert Elias O processo civilizador, que nos mostra a força dos hábitos, mas também como contextos mais amplos de mudanças políticas ou econômicas respondem pelo que designamos de modo genérico cultura. Na teoria contemporânea algumas obras podem ser muito úteis para o momento. Sugiro a leitura de As consequências da modernidade, de A. Giddens, que apresenta um diagnóstico atual das dimensões estruturantes da vida moderna e contemporânea, além de abordar dois aspectos que mencionei na primeira resposta: a ação humana como produtora de transformações e conhecimento e as incertezas e contingências que surgem dessa ação. Outra sugestão é o livro de Göran Therborn, Los campos de extermínio de la desigualdade – uma análise sociológica primorosa sobre as estruturas atuais de desigualdades. Com perspectiva mais feminista sugiro a obra de Silvia Federici intitulada O calibã e a bruxa, uma análise histórica sobre o trabalho das mulheres no capitalismo, suas responsabilidades com as atividades do cuidado e a importância do trabalho invisível e não pago feito por elas para a reprodução do capital.

    Craig Calhoun

    1. A teoria sociológica é um campo vasto de recursos, e não uma série de instruções precisas para produzir explicações. Isso é crucial para entender a covid-19. Obviamente, a covid-19 é uma questão biológica e de saúde individual, mas igualmente óbvio é o fato de ela ser uma doença infecciosa transmitida pelo contato social. Fatores sociais como a desigualdade, a forma como o trabalho é organizado e a moradia é construída modelam seus efeitos. Assim como o fazem as respostas socialmente organizadas – interromper ou não viagens, deixar de comer fora ou acabar com reuniões públicas. E como o fazem as infraestruturas socialmente organizadas, como sistemas de comunicação que permitem a alguns – principalmente os mais privilegiados – trabalhar de casa enquanto sistemas de entrega fornecem comida e suprimentos – para quem os pode comprar.

      Para entender tudo isso, precisamos de insights durkheimianos sobre solidariedade e anomia; insights marxistas sobre contradições sociais, desigualdade de classe e ideologia; insights weberianos sobre racionalização e burocracia; insights feministas sobre o trabalho de cuidado social e onde ele está visível e invisível na ordem social; insights duboisianos ou em teoria crítica racial sobre as complexidades da identidade, consciência, poder e inclusão social; teoria da dependência ou do sistema-mundo para enxergar os padrões globais. Na verdade, é bom que diferentes perspectivas produzam explicações em disputa, já que elas iluminam diferentes aspectos dos objetos que tentamos entender e nos encorajam a pensar com mais afinco no todo. É claro que às vezes as explicações estão erradas, são testadas e descartadas. Em geral, porém, elas são fragmentos de um panorama maior que ainda não somos capazes de ver com clareza. Então, sim, a teoria sociológica está equipada para a tarefa – se a usarmos criativamente e mesmo a ela acrescentando.

    2. Para entender a crise da covid-19 – tanto pela doença quanto pelas respostas a ela – é necessário pensar de uma só vez a respeito da organização social em larga escala e de forma mais local e nas relações interpessoais. Tendemos a separar esses níveis como se fizessem parte de questões diferentes. Algumas pessoas estudam o sistema-mundo moderno e algumas estudam comunidades locais. Vejamos as redes pelas quais a doença se espalhou. Normalmente e de forma correta apontamos para a globalização e os padrões de transmissão internacional. Os padrões locais e mesmo domésticos são, todavia, igualmente importantes. As conexões entre os diferentes níveis são cruciais. E nós subestimamos o quanto elas mudaram e estão mudando. A expressão “distanciamento social” se tornou comum para descrever a prática da manutenção de distância física entre pessoas que, em outras condições, interagiriam face a face. Ele pode ser algo frustrante, doloroso e solitário. Não é possível para todos. E lembra às pessoas o quanto elas valorizam interações sociais das quais frequentemente não faziam muita questão. Procurar saber de amigos e família passou a ser uma nova rotina diária. Tentamos deixar de nos distanciar socialmente até quando estamos distantes fisicamente.

      A perturbação nas relações interpessoais diretas nos fazem ver sua importância. Por exemplo, as universidades mudaram abruptamente suas aulas para o ambiente online. Isso trouxe os seus próprios problemas, e há muito debate a respeito do que se perde na mudança do cara a cara para o online. Mas isso também é uma demonstração do fato de que nós temos ferramentas para nos conectar a distância. Acadêmicas e acadêmicos usam o e-mail e ferramentas de videoconferência para os mesmos objetivos; assim como movimentos sociais, que não são apenas grupos de protesto, mas organizações. Sociedades modernas são grandes demais para se costurar apenas com relações diretas pessoais.

      Ao mesmo tempo que a pandemia nos faz valorizar comunidades locais e espaços públicos, ela também nos demonstra a importância de relações sociais indiretas. Mercados, sistemas de transporte e meios de comunicação são os veículos óbvios para esse tipo de ligação de longa distância. E eles podem ser o suporte de uma variedade de diferentes estruturas de relações sociais. A Amazon e outras grandes corporações não são simplesmente “o mercado”. A organização dos mercados em si se transformou. Não à toa eles se tornaram menos centrados em locais físicos – centros comerciais deram lugar a lojas, depois a shopping centers e agora a uma “economia logística” que usa armazéns e sistemas de transporte, mas conta com bem menos conexão face a face. Isso tem relação próxima com a priorização da eficiência sobre a resiliência. Por exemplo, quando carregamentos saindo de Wuhan, na China, foram interrompidos para conter o vírus, fábricas de automóveis na Coreia tiveram que paralisar a produção porque faltavam peças. Mais significativo ainda, talvez, seja o fato de que sistemas de saúde e hospitais sofreram escassez de equipamento de proteção para seus trabalhadores porque, em vez de estocar, dependiam de compras just in time na economia logística.

    3. Na maioria dos aspectos a pandemia está acelerando tendências em curso, mas ela também pode ser um ponto de ruptura. Ela coloca pressões imensas sobre governos democráticos que já vinham enfraquecidos pelas lutas contra o populismo – e pela junção de corrupção e condescendência das elites que ajudaram a moldar o populismo. É bem provável que ela intensifique ainda mais a concentração de renda entre os riquíssimos que o neoliberalismo, a financeirização e o capitalismo global ajudaram a produzir. Muitos líderes estão adotando o nacionalismo beligerante, não apenas ao culpar uns aos outros, mas ao permitir o declínio da cooperação e de instituições globais. Os danos podem vir a longo prazo. Nós podemos acabar nos mantendo dependentes de sistemas de larga escala compostos por relações indiretas, mas com bem menos capacidade de governá-los para o bem público. É claro que também podemos observar um cenário de solidariedade nacional reforçada e fortalecida, mas há poucos países em que os cidadãos estão se mobilizando efetivamente nesse sentido.

      Uma das grandes perguntas é como confrontar a pandemia – e a resposta global desigual – e se essa forma também modificará o nosso combate às mudanças climáticas. Eu não tenho essa resposta, mas me parece provável que no curto prazo a emergência econômica privilegiará aqueles que afirmam que a garantia de empregos passa na frente de salvar o meio ambiente ou reduzir as emissões de carbono. No longo prazo, contudo, a experiência da pandemia pode fornecer suporte àqueles que salientam que não precisamos exclusivamente de crescimento econômico, mas de uma economia diferente.

    4. Bem, um monte. É crucial trazer a ciência social para a compreensão pública agora, assim como para a produção de explicações melhores no longo prazo. No SSRC (Social Science Research Council), liderei esforços para encorajar a “ciência social em tempo real” com engajamentos analíticos imediatos. Alcançando milhões pela internet e um pouco menos que isso por múltiplos livros, abordamos assuntos que iam dos ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos e a securitização global que a eles se seguiu ao furacão Katrina, e os impactos da desigualdade e falta de planejamento que ele expôs à crise financeira de 20082009, que enfatizou as fortes pressões para que tudo voltasse ao normal e consequentemente ao fracasso em abordar problemas mais profundos. É crucial apontar para o fato de que a iniciativa contava com a mobilização de conhecimento em ciências sociais e análise, não apenas com a expressão de opiniões.

      É importante aprender com estudos sobre HIV/aids, Ebola e SARS. Unprepared, de Andrew Lakoff, é excelente a respeito do que aprendemos e não aprendemos em termos de preparação em saúde desde a Guerra Fria. Também é importante, entretanto, estudar “condições sociais preexistentes” que, como condições médicas preexistentes, determinam resultados. Existem livros recentes importantes, como o de Thomas Pikkety sobre o capital, Shoshana Zuboff sobre o capitalismo de vigilância e os de Andrew Lakoff. Eu recomendaria especialmente um retorno a The great transformation, de Karl Polanyi, para compreender não a doença infecciosa, mas como o poder, interesses materiais e a ideologia se combinam para moldar respostas desumanas para o sofrimento humano.

    Cristiano Monteiro

    1. As crises sempre fizeram despertar a imaginação sociológica e, com elas, a questão sociológica fundamental da mudança social. Entre ações e estruturas (e as alegadas “sínteses”), o cardápio de teorias disponíveis é variado e não vão faltar opções para os praticantes do ofício que certamente, ou inevitavelmente, vão se dedicar a interpretar os efeitos sociais e políticos da pandemia durante um bom tempo a partir de agora. Das opções teóricas disponíveis, as teorias institucionalistas estão especialmente interessadas em processos de continuidade e mudança. Um dos conceitos centrais utilizados por essas teorias, “dependência de trajetória”, poderá inspirar muitos trabalhos sobre a pandemia e seus efeitos, avaliando a resiliência de arranjos institucionais variados, passando por políticas públicas, padrões de relacionamento entre grupos sociais e trajetórias de desenvolvimento, entre outros. Originalmente, essa abordagem foi proposta por economistas interessados no uso de tecnologias específicas: eventos fortuitos levam uma tecnologia a ser adotada e, à medida que os agentes passam a usá-la, há “retornos crescentes” no uso dessa tecnologia que aumentam gradativamente o custo para adotar uma tecnologia alternativa, mesmo que esta seja mais eficiente, até que ocorre o “aprisionamento”, estabelecendo a “dependência de trajetória”. As abordagens sociológicas, por sua vez, preocupam-se menos com a questão da eficiência e mais com a dimensão do poder, ao mesmo tempo em que tendem a focalizar mais os arranjos institucionais e menos a forma como agentes atomizados utilizam tecnologias ou recursos específicos. Assim, os “retornos crescentes” envolvem acúmulo de poder por parte de grupos diversos, e o “aprisionamento” envolve a cristalização, por meio de regras formais e informais, de relações de dominação e recursos variados de poder. De qualquer forma, para ambas as versões da abordagem, a mudança ocorre apenas diante de um choque exógeno, que constitui uma “conjuntura crítica”, a partir da qual a trajetória pode ser alterada.

    2. Uma crise como a da pandemia da covid-19 aparece como potencial choque para muitos processos de dependência de trajetória, e, a partir de agora, muitos estudos que se orientam por esse arsenal teórico deverão se guiar pela hipótese de que esta é uma conjuntura crítica, avaliando as mudanças que poderão surgir a partir dela. Dentro do relativamente amplo e diversificado campo da sociologia econômica, seus praticantes inclinados à perspectiva da economia política estão entre os que lançam mão das teorias institucionalistas, incluindo o conceito de dependência de trajetória. Análises sobre processos macrohistóricos, como os modelos de desenvolvimento e as “variedades de capitalismo”, com suas implicações para setores econômicos, mercados específicos (o mercado de trabalho entre ele) e políticas públicas, fazem parte dos objetos de pesquisa contemplados. Uma síntese dos resultados alcançados está na constatação de que a globalização, somada a escolhas feitas por atores políticos relevantes, levou à constituição de uma trajetória crescentemente orientada para um modelo econômico mais liberal, com fortalecimento dos agentes financeiros e grandes corporações, enfraquecimento do poder de barganha dos trabalhadores e, do ponto de vista da solidariedade social, aumento da desigualdade. Os países em desenvolvimento, a América Latina especialmente, têm acompanhado esse movimento, com nuanças locais: um ciclo mais ou menos amplo de adesão à agenda de liberalização na década de 1990, “chacoalhado” (mas não necessariamente abandonado) na década de 2000 e revigorado na década atual. Todas essas tendências mais macro assumem feições particulares conforme a região, o país, a organização setorial ou, de baixo para cima, conforme a capacidade de mobilização e enfrentamento dos atores locais, o que justifica a ideia de modelos de desenvolvimento e “variedades de capitalismo”, sempre no plural. Os estudos em curso sobre cada um desses recortes levarão em consideração o impacto da pandemia ou, a partir de agora, abre-se uma agenda de pesquisa nova sobre as reconfigurações dessas diferentes dimensões tendo a pandemia como ponto de partida.

    3. Dentre as inúmeras trajetórias em curso passíveis de interpretação pela lente da dependência de trajetória, destaco duas para as quais a pandemia pode representar uma conjuntura crítica, sugerindo uma hipótese otimista para uma e uma hipótese pessimista para outra. No primeiro caso, sobre a trajetória de liberalização da economia ou, mais genericamente, sobre o neoliberalismo, essa conjuntura crítica pode abrir espaço para uma agenda política mais sensível ao problema da desigualdade social e aberta ao maior envolvimento do Estado na atividade econômica, em detrimento da crença na lógica de mercado e na agenda neoliberal. Até então, predominou o diagnóstico de que, com a globalização, a financeirização da economia e a pressão sobre os governos nacionais por austeridade levaram a um quadro em que, com poucas exceções, perderam os trabalhadores, as comunidades e o meio ambiente. As consequências disruptivas desse modelo para o tecido social são potencializadas pela pandemia, enquanto as estratégias e instituições mais eficientes para o seu enfrentamento passam por caminhos que vão no sentido oposto ao “cada um por si” do livre mercado. Como resultado, reabriu-se o debate sobre políticas redistributivas até mesmo entre os economistas do mainstream, incluindo a defesa da renda mínima e o abandono (mesmo que temporário – até quando?) da austeridade fiscal em prol do aumento do “gasto público” como estratégia para superar a crise, o que dá lastro à hipótese de reversão da trajetória de desenvolvimento pela via neoliberal.

      No polo das más notícias, a globalização significou mudanças importantes na dinâmica do capitalismo, com o fortalecimento das grandes corporações e das instituições financeiras, ao lado da reorganização da produção e do trabalho por meio de “cadeias globais de valor” ou “redes globais de produção”, abordagens que se complementam na análise desse fenômeno. Essa reconfiguração do capitalismo instaurou uma nova divisão internacional do trabalho, em que grandes empresas passam a operar em uma lógica transnacional, explorando “vantagens comparativas institucionais” oferecidas pelos diferentes países ou territórios. Assim, constituem-se elos mais ou menos nobres nessas cadeias/ redes, pressionando agentes locais (governos, comunidades e trabalhadores) a oferecer melhores condições, do ponto de vista das empresas, para as integrar. Grosso modo, instauram-se dois tipos de estratégia de inserção: de um lado, a busca ativa por melhores posições nessa divisão internacional do trabalho, aumentando o investimento em ciência e tecnologia, criando oportunidades para absorver e produzir conhecimento e ampliar a qualificação da mão de obra; de outro, a “corrida ao fundo do poço”, isto é, a atração das redes de produção via redução de custos, com o rebaixamento da remuneração dos trabalhadores e da regulação ambiental e as mais variadas concessões às grandes empresas. A conjuntura crítica representada pela pandemia pode reforçar as assimetrias entre regiões/países vencedores e perdedores, aumentando a pressão sobre trabalhadores, comunidades e os recursos naturais no caso dos perdedores.

    4. Nos últimos anos, livros de autores importantes da sociologia econômica, como Colin Crouch (por exemplo, The strange non-death of neoliberalism) e Wolfgang Streeck (por exemplo, Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático), puseram ênfase no que poderíamos chamar de vitória do neoliberalismo, argumentando sobre a progressiva captura das políticas públicas e a própria lógica de funcionamento do Estado, cada vez mais direcionado aos interesses das grandes corporações e do capital financeiro. Assim, suas obras são fundamentais para a compreensão dos desafios relacionados à primeira hipótese, de uma possível reversão da trajetória de liberalização. Uma pista para a possibilidade de construção de vias alternativas se encontra no livro de Kathleen Thelen Varieties of liberalization and the new politics of social solidarity, que analisa países desenvolvidos selecionados e demonstra que há diferentes combinações de ampliação da lógica do mercado com mais ou menos desigualdade, reforçando a perspectiva das dinâmicas políticas específicas de cada país, tendo como variável independente as coalizões políticas formadas pelos atores relevantes.

      Já do ponto de vista da dinâmica de organização do capitalismo contemporâneo em “cadeias globais de valor” e “redes globais de produção”, os livros de Gary Gereffi (Global value chains and development: redefining the contours of 21st century capitalism) e Neil Coe e Henri Yeung (Global production networks: theorizing economic development in an interconnected world) sintetizam o desenvolvimento dessas abordagens complementares ao longo das últimas décadas. Do ponto de vista da inserção da América Latina nessa dinâmica, com algum destaque para o papel do Brasil, o livro de Ben Schneider Hierarchical capitalism in Latin America: business, labor, and the challenges of equitable development é obra que foi muito criticada pelos cientistas sociais brasileiros interessados na questão do desenvolvimento, mas que merece ser (re)lida, diante da dependência cada vez mais acentuada do país à produção de commodities e partes menos nobres de grandes cadeias globais, que encontra explicação no modelo teórico do autor.

      Vale mencionar que nem todos esses trabalhos aprofundam a questão da dependência de trajetória em seus modelos. Alguns dos autores, por sinal, já escreveram criticamente sobre o conceito. Não obstante, são trabalhos que ajudam a conformar as análises com base nas quais as hipóteses são construídas, sendo uma boa porta de entrada para os interessados em discutir seus desdobramentos a partir da perspectiva da sociologia econômica.

    Danilo Martuccelli

    1. Todo depende de la caracterización que se haga de la pandemia. En sí misma, nada de muy sorprendente. Epidemias de origen viral se han dado varias veces en la historia, en algunos casos dejando profundas huellas en la memoria colectiva (como la peste en el siglo XIV o la gripe española a comienzos del siglo XX). Pero estos antecedentes no ayudan a comprender esta pandemia que es el fenómeno colectivo más enigmático que nos ha tocado vivir desde hace mucho tiempo. En esto reside el gran desafío para la teoría social. Comprender el enigma de la reacción que el virus ha suscitado. Muchos de los artículos que se han publicado en estos meses esquivan esta problemática y se centran en otros factores (las articulaciones entre globalización y epidemia; papel de los expertos; crisis o no del capitalismo etc.). Todo esto es muy importante. Pero creo que el gran desafío del evento para la teoría social es de otro calibre y reside en lo enigmático mismo del fenómeno. Ni a nivel de sus imprevisibles consecuencias, ni acerca de lo bien fundado de la decisión de los confinamientos y parar con ello la actividad social y económica del mundo, sino de “por qué” se llegó a ello. Para comprenderlo será necesario ir más allá de lo evidente (el argumento de la única buena estrategia…) para escrutar posibles razones irracionales, inconscientes, simple error. Irracionales: una extraña tentación de poder y de destrucción colectiva de todo aquello que constituía el corazón del orden social (capital, trabajo, acumulación…). Error: una decisión precipitada y alarmada, inducida por el pánico, que se reveló incontrolable en sus efectos y difícilmente reversible. Para analizar lo que sucedió habrá que revalorizar la contingencia y recordar a todo momento que siempre es posible actuar de otra manera.

    2. La sociología de la modernidad y la reflexión macro-sociológica pueden ser herramientas idóneas para intentar comprender el enigma de este evento. ¿Qué sucedió? ¿Detrás de las decisiones gubernamentales, asistimos a una revancha del poder de los Estados-nación contra el capitalismo digital globalizado o al advenimiento definitivo de una sociedad de protocolos globalizados (las mismas soluciones expertas aplicándose en todos lados sin consideración de los contextos)? A nivel de la dominación, ¿no explicita la pandemia el declive de las jerarquías y creencias en beneficio de los controles fácticos? Pero este tipo de indagaciones no debe llevar a obliterar cuestiones fundamentales: escrutar no tanto las decisiones sanitarias en sí mismas, en medio de una irresponsable imprevisión colectiva, sino los yacimientos imaginarios de las decisiones. ¿Existe hybris más grande de poder que la de paralizar simultáneamente “toda” la actividad mundial? ¿Por qué se decidió en un mundo tan ordinariamente indiferente a las vidas humanas (inmigración, hambre, asesinatos, exclusión) realizar un esfuerzo de tal talla y con tales consecuencias en nombre de “la” vida? ¿Cómo “la” vida y el confinamiento pudieron esgrimirse como imperativos frente a las exigencias del capitalismo, pero también las escuelas, las deudas, la sociabilidad, la violencia conyugal? ¿Qué revela el temor colectivo a la muerte que este evento puso en escena? ¿Qué jerarquía de miedos estructura nuestras sociedades – la muerte, la violencia, el hambre, la catástrofe etc.? ¿Qué papel y peso – indirecto – tuvo en las decisiones tomadas el malestar que tantos individuos resienten cotidianamente a propósito de sus condiciones de vida? Para afrontar el enigma, habrá que abrirse a razonamientos contraintuitivos, deshaciéndolos de todo funcionalismo conspirativo: ¿no terminará siendo la pandemia, involuntariamente, una fuente de legitimación de “esa” vida que hasta ayer asfixiaba económica, social y ecológicamente?

    3. Todas las sociedades reprimen un hecho fundamental: en contra de lo que las evidencias cotidianas parecen imponer, todo es posible. Como lo muestra la historia, muchas y muy diversas composiciones de la sociedad son posibles. La verdad de este abismo ha sido abierta con una violencia inusitada por la pandemia. Más allá por eso de las probabilidades que tal o cual cosa suceda (retorno a la muy vieja normalidad, reorientación del capitalismo digital, mayor intervención estatal, New Green Deal, economía regenerativa, explosión del autoritarismo etc.), la pandemia debería permitir replantear desde un punto de vista político la jerarquía de los valores colectivos. Si la conciliación práctica de diferentes principios en tensión es la regla en las sociedades modernas, la pandemia invita a mejor esclarecer nuestras jerarquías colectivas alrededor de la libertad, la igualdad, la solidaridad, la geopolítica, el bienestar o la vida. No deberían ser discusiones abstractas de filosofía política, sino debates muy concretos, aunque de índole existencial, en los que será necesario hacer transparentes las consecuencias de las decisiones. Pero la pandemia también invita a repensar esta vez en la sociología la concepción misma de lo social desde ángulos distintos que la efervescencia, la muchedumbre o la densidad, e incluso las interacciones, analizando que tendencias en la digitalización o las teleactividades se confirmarán y cuáles serán revertidas, qué nuevas jerarquías de distancias y de presencias se forjarán, qué mutaciones tendrá la visibilidad. Sin embargo, lo más probable es que ante el abismo al que confrontan estos esfuerzos, se intentará con mayor o menor mala fe y falsa conciencia regresar a las concepciones y soluciones del pasado. La inercia roerá todos los cambios. Comenzando por el más obvio e importante de todos: el replanteo de las relaciones entre la sociedad y la naturaleza.

    4. El intelectual colectivo del siglo XXI es el periodismo y la pandemia lo ha mostrado una vez más. El puñado de intelectuales altamente publicitados a nivel global que ha escrito sobre el tema no ha brillado, ninguno(a) de ello(a)s, por la inteligencia de sus análisis. En el lenguaje estructuralista en los años 1970, cada uno de ello(a)s tenía demasiados intereses ideológicos en querer convencer a los lectores de la pertinencia de sus obras y miradas anteriores para abrirse realmente al evento y sus enigmas. La inteligencia analítica estuvo en otro lado: en el encomiable trabajo colectivo de miles de periodistas a través de muy distintos soportes. Su trabajo fue tanto más importante que la puesta en cuarentena de la deliberación democrática y la muy fuerte limitación de las libertades fundamentales les dio un rol de salvaguarda de la democracia como nunca lo habían tenido. El periodismo es cada vez más la gran matriz de enunciación, de aparición y de inteligibilidad de la vida social: impone tanto el análisis distante de los sucesos (en tercera persona) como el testimonio ante los hechos (en primera persona), un formato corto y a lo más de algunas páginas o minutos, impone argumentaciones en las cuales las afirmaciones priman sobre las demostraciones, todo esto marcado por una reactividad constante. El trabajo de comprensión del mundo se reorganiza desde el artículo o el podcast. Por supuesto, esto no supone el fin del libro en las ciencias sociales (¡ojalá!), pero impone nuevos desafíos analíticos. Reconociendo el hecho que ante una crisis de esta envergadura la inteligencia del evento estuvo fuera de nuestras disciplinas, hay que tratar de extraer las consecuencias que se imponen. La primera de todas: incentivar, desde los años de formación de los científicos sociales, la imagina- ción teórica por encima de las escolásticas y el metodologismo.

    David Le Breton

    1. Nenhuma teoria sociológica é capaz de compreender ou explicar sozinha a pandemia e suas consequências sociais e culturais. Múltiplas abordagens são possíveis para tratar de dimensões específicas do fenômeno de forma não excludente. Elas podem ser políticas, orientadas em termos de classe social ou de grupos de influência, por exemplo. A abordagem em geral é mais explicativa quando pertence a uma filiação predominantemente durkheimiana. Outras, por contraste, têm uma perspectiva compreensiva e centrada sobretudo nos atores em cena, nos significados e valores que eles atribuem ao evento. Da minha parte, pertenço claramente à linha compreensiva herdada de Max Weber ou de Simmel que se cristalizou na Escola de Chicago e no interacionismo simbólico. Mas nenhuma abordagem pode ter a arrogância de ser a única a dizer o que está acontecendo.

    2. Minhas pesquisas foram projetadas ao centro da crise sanitária e do confinamento, e eu fui muito solicitado por conta disso. Meu trabalho se dedica à antropologia do corpo, ao rosto, ao silêncio, às emoções, ao sentido, ao riso e mesmo ao desaparecimento de si! A crise sanitária perturba profundamente nossos ritos de interação. Os gestos de barreira impõem distância em relação ao corpo do outro ao considerar suspeita uma presença muito próxima e mais ainda em relação ao aperto de mão ou os beijos que impõe o contato. Além disso, a máscara introduz um embaraço imenso. Ao desfigurar o rosto, ela desfigura o laço social. Em nossas sociedades contemporâneas, o rosto é o lugar do reconhecimento mútuo. Por meio de sua nudez somos reconhecidos, nomeados, julgados, associados a um sexo, uma idade, uma cor de pele, somos amados, desprezados, ou anônimos, dissolvidos na indiferença da multidão. Conhecer o outro implica lhe dar a ver e compreender um rosto cheio de sentido e valor, e fazer no eco de seu próprio rosto um lugar igual de significação e interesse. A reciprocidade das trocas no seio do laço social implica identificação e reconhecimento mútuo dos rostos, suporte essencial da comunicação. As mímicas indicam a ressonância de nossas palavras, elas são as reguladoras da troca. Essa dissimulação necessária do rosto se junta à interferência social e à fragmentação de nossas sociedades. Por trás das máscaras perdemos nossas singularidades, mas também uma parte da nossa licença existencial de olhar os outros ao nosso redor. Cada um de nós está isolado em meio ao espaço público. Nos movemos por trás dos nossos muros que são a máscara e os gestos de barreira. O laço social se torna um arquipélago de indivíduos distanciados uns dos outros.

    3. O mundo inteiro entrou numa fase de liminaridade na qual faltam as instruções de uso. Um período de transição ainda a ser domado a fim de que possamos preparar novas ritualidades da vida cotidiana ou da interação com os outros, já que os gestos de acolhida foram destruídos pelos imperativos higiênicos. Os códigos antigos não funcionam mais, e ainda não temos certeza daqueles que virão. Os códigos nos faltam e será necessário os reinventar. A economia foi varrida, e não voltará tão cedo ao seu patamar anterior. Às ameaças à saúde seguem as ameaças ao emprego, além daquelas à paisagem de lojas e empresas nas vizinhanças em que vivemos. De maneira geral, os mundos contemporâneos avançam resoluta e cegamente em direção a um futuro que escapa a todas as previsões, mas a respeito do qual se fazem avaliações dos riscos que ele guarda em termos do choque das tecnologias sobre a qualidade de vida, a desregulação do clima, a poluição, as ameaças de riscos tecnológicos ainda maiores etc. Metade do planeta esteve confinada. A crise sanitária nos lembra da estreita interdependência de nossas sociedades, da impossibilidade de fechar nossas fronteiras. E tampouco as fronteiras biológicas entre os componentes dos inúmeros mundos vivos, entre o animal e o humano, ou com o ambiente em seu conjunto. Tudo está ligado. Estamos imersos na matéria viva do mundo, substância entre substâncias sem que fronteiras delimitem verdadeiramente a humanidade dos reinos animal e vegetal, por exemplo. O cosmo está em nós como nós estamos no cosmo. Tudo está em tudo, como dizia Anaxagoras. O surgimento do coronavírus é uma nova volta no parafuso do emaranhado dos mundos num mesmo mundo cada vez mais estreitamente tecido e cuja arquitetura não cessa de se fragilizar. Um paradoxo, além do mais, é que ao reduzir a circulação automóvel e aérea, ao paralisar incontáveis atividades poluentes, o vírus conseguiu uma espécie de respiração ecológica para o planeta, notadamente para o reino animal. Um estudo finlandês mostra que, apenas na Europa, 12.000 vidas foram salvas pelo confinamento e, consequentemente pelo desaparecimento da poluição ambiental, dezenas de milhares de crianças escaparam da asma. Além disso, a diminuição do tráfego de automóveis salvou dezenas de milhares de pessoas que seriam vítimas de acidentes mortais. Esse é o paradoxo inacreditável das nossas sociedades pós-modernas. A crise sanitária é um exemplo de coincidência de opostos. O pior nos chama a ter lucidez a respeito do mundo por vir, nos dá um ensinamento infalível. É um teste trágico que produz soluções para um mundo mais solidário e feliz. Após anos de indiferença extrema em relação às reivindicações sociais do mais desfavorecidos, essa pandemia nos lembra da necessidade antropológica da partilha. Somos interdependentes para o melhor e o pior.

    4. O coronavírus levou ao fracasso provisório do neoliberalismo, paradoxalmente fazendo necessário o apoio do Estado às populações mais afetadas pela crise sanitária. Os serviços públicos se revelaram um suporte da maior importância à manutenção das atividades fundamentais da vida cotidiana. Estamos em um período de suspensão, e é difícil saber qual lição os Estados e a economia tirarão dele. Restaurar o humanismo social violentamente atacado no mundo todo por um capitalismo triunfante e cínico é um imperativo, para revitalizar o gosto pela vida, proteger a diversidade ecológica do planeta e dar apoio aos mais vulneráveis. Nesse sentido, estamos na encruzilhada para romper com uma economia obcecada pelo lucro que multiplica a miséria social e a destruição a curto prazo do planeta. Essa crise sanitária é uma travessia provisória da noite, do luto, da angústia, mas do outro lado nos espera uma forma de renascimento. Estamos num cruzamento de caminhos, a atitude dos políticos será determinante: a crise sanitária pode engendrar um salto humanista, uma atenção ecológica maior com o planeta, uma preocupação social para a luta contra as desigualdades e injustiças. Me parece que a antropologia dos mundos contemporâneos é a abordagem mais sensível, aquela que leva em conta a dimensão do sentido e dos valores que impregnam nossas existências individuais e coletivas. Ao tratar da condição humana enquanto algo que está sempre inscrito num contexto social e cultural preciso, ela fornece orientações essenciais à elaboração de um laço social mais fértil. Ela nos informa aquilo que dá coesão ao laço social, que o faz propício e que alimenta nos atores o gosto de viver com os outros.

    Elisa Reis

    1. A perplexidade e a própria urgência experimentada no momento magnificam as dúvidas e incertezas com que nos deparamos. Certamente muitas das especializações da sociologia são chaves adequadas para pensar aspectos variados da crise, e isso tem sido feito com sucesso em diversas áreas. Admiro e aprendo com as reflexões dos colegas sobre o acervo de nosso conhecimento sociológico e o modo como ele contribui para analisar e interpretar o impacto da pandemia.

      Acredito que a sociologia política pode aportar conhecimentos valiosos nos planos local, nacional e global. As dúvidas sobre o presente e as controvérsias que envolvem as previsões sobre o mundo pós-covid-19 já começam a frequentar, por exemplo, a literatura produzida pela sociologia política de cunho histórico-comparativo. Sabemos também que as macrointerpretações de crises cumprem elas próprias funções sociais, fornecendo não só aos especialistas, mas também aos leigos, interpretações que proveem lentes para o entendimento do mundo em que vivemos.

    2. Alguns dos temas de pesquisa que me são caros podem se prestar a diálogos estimulantes envolvendo questões específicas sobre a crise atual. Pessoalmente, porém, tendo em conta as grandes incertezas do momento, tenho refletido sobretudo a respeito de como podemos contribuir na busca de respostas para os problemas sociais urgentes e os emergentes no futuro próximo. Pergunto-me como as ciências sociais podem compartilhar o conhecimento especializado sobre tais problemas com colegas de outras ciências. Nesse sentido, uma questão que tem me mobilizado é: como podemos compartilhar conhecimentos para identificar problemas inerentes à vulnerabilidade social e possíveis respostas a eles?

      Já sabemos que com a atual crise sanitária e humanitária os problemas preexistentes serão agravados. Também sabemos que novos grupos vulneráveis e novas formas de vulnerabilidade estão sendo produzidos pela pandemia. Identificar, analisar e pensar soluções para velhas e novas vulnerabilidades demanda estreita colaboração entre colegas das ciências sociais e naturais. Se é verdade que a especialização permitiu avanços notáveis em todas as áreas do conhecimento científico, o grande desafio que os problemas contemporâneos têm nos colocado é como integrar de forma efetiva contribuições de diversas disciplinas. Nesse front, o que salta aos olhos é o caráter tentativo com que todas as ciências abordam os problemas ora em pauta.

    3. O grau de incerteza com que todos nos deparamos é algo que por um lado coloca em questão o próprio modo como pensamos e lidamos com cada um de nossos nichos disciplinares. Por outro lado, a própria incerteza e o caráter de urgência dos problemas em curso devem nos motivar a renovar o compromisso com o esforço metódico e sistemático de avançar o conhecimento. Da mesma forma que no âmbito das ciências experimentais convivem debates e disputas, no contexto das ciências sociais as discordâncias devem ser tratadas de forma explícita, e o diálogo levado à frente de forma sistemática. Como em todas as áreas da ciência, existem entre nós disputas, controvérsias, diálogos. A credibilidade da ciência reside, em grande parte, precisamente no fato de que o que produzimos é alvo de constante discussão e crítica. Sabemos que o alcance de nossas interpretações e explicações é sempre parcial, limitado e destinado a ser superado, mas faltar com esse compromisso seria negar tanto a ciência como vocação como a vocação da ciência.

    4. Destacar obras específicas de especial relevância para o momento atual é extremamente difícil dado o amplo escopo da crise atual. Cito, apenas a título de exemplo, três das muitas contribuições que me inspiram neste momento: A grande transformação, de Karl Polanyi; In care of the State: health care, education and welfare in Europe and the USA in the Modern Era, de Abram de Swaan; e Why trust science?, de Noami Oreskes.

    Elísio Estanque

    1. Creio que a sociologia detém um conjunto de ferramentas capazes de ajudar a compreender este mundo em convulsão, agora devido à pandemia da covid-19. Enquanto especialidade acadêmica vocacionada para compreender as sociedades complexas, a sociologia possui, desde Marx, Durkheim e Weber, os instrumentos teóricos, conceituais e metodológicos que lhe permitem desenvolver estudos sistêmicos (ou intensivos) sobre a realidade que está neste momento a abalar o mundo. No entanto, não sendo uma ciência exata, as diferentes perspectivas e correntes teóricas que marcam o pensamento social conduzem naturalmente a diagnósticos e conclusões distintas e porventura conflituantes entre si. Os paradigmas do pensamento contemporâneo nas ciências sociais – entre as escolas clássicas, o positivismo, o marxismo, o weberianismo etc. e entre os contemporâneos, o construtivismo, o pós-modernismo, a crítica pós-colonialista etc. – continuam a influenciar a análise sociológica. Em especial, perante um problema social tão grave e tão dramático como este, é inevitável que a urgência da intervenção permita que os critérios acadêmicos sejam contaminados pelas opções ideológicas dos seus intervenientes, além de que a análise objetiva e sistemática dos fenômenos requer algum distanciamento temporal, ou seja, estudar o fenômeno enquanto estamos no centro do furacão dos acontecimentos é impossível. Tal não significa, contudo, que a nossa intervenção, enquanto cientistas sociais, e o contributo que poderemos disponibilizar para a compreensão dos efeitos sociais desta pandemia (e das medidas de confinamento) não sejam importantes. São sobretudo importantes se considerarmos que muitas das tendências em curso na economia, no mundo tecnológico, no campo laboral ou na esfera política, por exemplo, já estão em curso há décadas. As mudanças desencadeadas a partir do impacto da covid-19 não ocorrem no vazio, mas sim incidem sobre dinâmicas e estruturas preexistentes. Desde logo no plano da inovação, digitalização, teletrabalho e expansão das redes virtuais esta pandemia está sem dúvida a servir de catalisador, e é provável que o alcance desses meios na sociedade se torne mais evidente no curto prazo. A sociologia, porém, não faz futurologia.

    2. Nas áreas temáticas em que venho desenvolvendo meus trabalhos nas últimas décadas (relações de trabalho, classes sociais, movimentos sociais) haverá seguramente muitas transformações, e em alguns casos elas já se fazem sentir. A crise econômica brutal, o disparar das taxas de desemprego, a aceleração da digitalização e das plataformas de prestação de serviços, a multiplicação de atividades em que as redes de comunicação a distância são decisivas, o aumento das redes de ativismo virtual, campanhas de solidariedade e intervenção cívica etc., etc., são alguns dos domínios a ser atingidos no imediato e no curto prazo. Desconhecem-se ainda as consequências no médio prazo, tal como se desconhecem o real alcance e a duração da pandemia na escala global. Vivemos um momento de grande perplexidade quanto ao futuro. Perante, entretanto, o volume de população atingida (na data de hoje 17.04.2020, a plataforma Johns Hopkins revela 2.169.062 contaminados – 08:16am em Brasília – e 146.071 mortes de covid-19) e atendendo ainda às orientações de alguns líderes “negacionistas” (Bolsonaro e Trump são os piores exemplos), é previsível que também no plano político haja consequências importantes no rescaldo desta pandemia viral.

    3. Em muitos aspectos, como referi, trata-se de uma aceleração de tendências já em curso desde pelo menos o início do milênio. Porém, desconhecem-se ainda os efeitos de tudo isto na questão ambiental. O susto coletivo que estamos a passar, o confinamento prolongado, com o ressurgir das prioridades mais simples e básicas criam todo um novo clima psicológico, que favorece uma restruturação de subjetividades e do sentido identitário das comunidades. Comunidades virtuais desterritorializadas e reinventadas? É possível que ganhem maior expressão; mas também que os apelos da terra, da agricultura familiar, da economia solidária venham a relançar o mundo rural de um modo inovador. Evidentemente que as opções ideológicas alinhadas com o neoliberalismo (e em geral combinadas com populismo de direita) tendem a minimizar o problema e a dar prioridade às atividades econômicas, aparentemente menosprezando as implicações de suas decisões no aumento da mortalidade. Aqui se jogam modelos econômicos opostos e, em especial na Europa, está em jogo o futuro da União Europeia, ou o seu eventual desmantelamento ou o possível reforço do Estado providência, sobretudo considerando a intervenção salvadora dos recursos públicos no auxílio a esta calamidade. Além dos milhares de mortes de coronavírus, haveria certamente muita gente a morrer de fome nas ruas (ou no isolamento familiar) não fossem as medidas urgentes adotadas por vários Estados europeus de auxílio aos trabalhadores e pequenas empresas que entraram em lay-off ou simplesmente encerraram. No contexto da UE, acredito que, apesar das dificuldades e resistências de alguns países do norte, haverá medidas de mutualização das dívidas públicas dos Estados membros. Por outro lado, dependendo do balanço final que venha a ser feito e tornado perceptível pelos cidadãos, é previsível que os líderes populistas (nomeadamente nos EUA e Brasil) venham a ser politicamente penalizados e/ou eventualmente destituídos.

    4. Boaventura de Sousa Santos acaba de publicar um novo livro em que difunde suas posições de textos de reflexão relacionadas com a pandemia, e obviamente no âmbito do quadro teórico que vem desenvolvendo há várias décadas fundado na premissa das tensões norte-sul global e nos vetores que considera definirem o sistema global de hoje (capitalismo, patriarcado e colonialismo). É seguramente uma leitura estimulante, porque estimulante e criativo é o seu pensamento crítico; aqui fica a referência: A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina (publicado no Brasil pela Boitempo Editorial). Além disso, recomendaria a releitura de obras já clássicas de crítica do mercantilismo capitalista, por exemplo, Karl Polanyi, A grande transformação (1944), que continua atual em muitas matérias e que, em diálogo com Marx, nos ajuda a um entendimento das perversidades da mercadorização capitalista. Acrescentaria ainda três referências que, creio, vão ao encontro dos problemas atuais: Erik Olin Wright, How to be an anti-capitalist in the 21st century; Klaus Dörre, S. Lessenich e H. Rosa, Sociology, capitalism, critique; e Sonia Livingstone e J. Sefton-Green, The class living and learning in the digital age.

    Fabrício Monteiro Neves

    1. A teoria sociológica é frutífera em crises. Os clássicos Weber, Marx e Durkheim desenvolveram teorias sobre a crise do mundo antigo e a emergência de um novo tipo de sociedade, a moderna capitalista. Todos, a sua maneira, inovaram, mesmo utilizando teorias anteriores para apresentar um diagnóstico daqueles eventos que os acometiam. A teoria sociológica, portanto, já possui instrumentos para pensar a crise e ensaiar futuros possíveis porque, como eu disse, a sociologia é filha da crise, mas tudo isso terá que ser repensado a partir dos desdobramentos reais que a pandemia nos oferecer. Façamos quatro exercícios: a teoria do conflito já está demasiadamente avançada para compreender, no futuro, processos conflituosos que emergirão, provavelmente em função da escassez de recursos e das mudanças políticas e íntimas; isso nos leva a discutir teorias da desigualdade, já que classes, grupos e elites serão, provavelmente, reconfigurados; o interacionismo simbólico privilegia em seus estudos relações cotidianas face a face − contudo, na possibilidade de um mundo de relações remotas, as ideias de cotidiano e interação significativa deveriam ser repensadas; teorias do risco relacionam expectativas de catástrofes globais com respostas a elas, principalmente por parte da ciência e da tecnologia, as quais poderão instaurar seus regimes técnico-cognitivos com argumento de saúde e segurança. Desse modo, é preciso fazer avançar a teoria sociológica para contemplar fenômenos novos, que fogem ao seu escopo atual. A crise abre essa possibilidade.

    2. A teoria sociológica e os estudos sociais da ciência sempre caminharam lado a lado. No primeiro caso, a teoria dos sistemas é um meio para se conceituar de forma articulada a sociedade mundial, por oferecer instrumentos para pensar a expansão global da covid-19 e as distintas respostas dadas à pandemia. Grande parte dos processos que a pandemia mobiliza está enraizada nos limites dos Estados nacionais, os quais não respondem igualmente a fenômenos dessa magnitude. Assim, uma perspectiva sistêmica ressaltaria a relação entre os diferentes sistemas sociais a partir das perturbações causadas pelo vírus nos distintos contextos da sociedade mundial. Supostamente, o sistema da saúde tem assumido o centro dos processos sociais, mas isso reflete a realidade de todos os lugares? A pergunta remete aos estudos sociais da ciência e da tecnologia, uma vez que é importante se questionar como o sistema científico tem operado neste cenário de crise. Podem-se utilizar abordagens sobre controvérsias científicas a partir dos estudos das novas vacinas e medicamentos, como, por exemplo, a controvérsia da cloroquina. Ligada ao tema anterior encontra-se a discussão do uso de redes sociais para informação, o que lança nova luz sobre debates acerca da pós-verdade, aconselhamento técnico e confiança. Importantes neste momento também são estudos sobre a desigualdade na ciência, ressaltando que alguns laboratórios e universidades teriam mais recursos para responder à crise; abordagens sobre a participação pública na ciência, de modo a mostrar o engajamento público com questões científicas que o vírus mobiliza; perspectivas sobre o imaginário sociotécnico que se constitui a partir da presença do vírus; divulgação e educação científica, pensando nos meios de traduzir ao público mais geral termos e teorias esotéricas; além de investigações sobre a relação de humanos e animais, para pensar em termos mais simétricos as distintas agências que são articuladas na relação sociedade/ natureza.

    3. As crises são momentos de contingência social máxima, porque suspendem o corriqueiro, o cotidiano e o recorrente. É muito difícil projetar qualquer cenário em um contexto no qual as convenções, valores e expectativas estão ainda se assentando. Isso não é necessariamente o vírus que causa, mas sua relação com a ordem social anterior. O impacto da crise só pode ser compreendido a partir dos meios de comunicação, informação e transporte, tal como se configuraram, mais ou menos, de 50 anos para cá, a partir dos hábitos corporais, das rotinas de higiene, das formas das relações humanas nos mais variados contextos da sociedade global, do arranjo entre as nações, dos interesses políticos e econômicos, enfim, da maneira como essas dimensões da vida social recebem e processam a pandemia. A tecnologia tem sido mobilizada em muitas situações da pandemia, e, provavelmente, inovadoras formas tecnológicas emergirão neste cenário ainda incerto. As políticas econômicas adotadas trarão impactos fiscais no Estado, que, em situação posterior, tende a políticas de austeridade ainda mais severas. Programas de renda universais em implantação pelo mundo tendem, no entanto, a criar novos interesses políticos, com ampla capacidade de mobilização, inaugurando novos ciclos de demandas sociais. A resposta ao vírus transformará todas essas dimensões, profundamente ou de forma imperceptível.

    4. Por óbvio, teorias sobre o risco são porta de entrada; duas me ocorrem: Niklas Luhmann, com Risk: a sociological theory, lançado em 1991, e Ulrich Beck, com Risk society: towards a new modernity, de 1986. Para compreender as relações geopolíticas desiguais e suas dinâmicas, Immanuel Wallerstein, com o já clássico The modern world system, de 1974. Sobre relações entre ordem e desordem, pureza e impureza, higiene e desigualdades, continua atual Pureza e perigo, de 1966, de Mary Douglas. Livros sobre virtualização das relações humanas, como Desejos digitais: uma análise sociológica da busca por parceiros on-line, lançado em 2017 por Richard Miskolci e Love and other technologies: retrofitting eros for the information age, de Dominic Pettman. Sobre a dinâmica da pós-verdade, embora em tom jornalístico, é interessante o livro de Matthew D’Ancona Pós-verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake news. Sobre controvérsias científicas, ainda é clássica a série O golem, de Harry Collins e Trevor Pinch, composta por três volumes (ciência, tecnologia e medicina).

    François Dubet

    1. Penso que a pandemia nos remete ao que podemos chamar de sociologia clássica. Com efeito, a principal questão que se coloca é a da integração e da solidariedade social em face do vírus. Essa questão se precipita sobre diversos temas. O primeiro é o da integração funcional das sociedades nas quais a divisão do trabalho é uma questão de sobrevivência: em que as diversas atividades sociais são úteis à sobrevivência coletiva? Descobrimos que as profissões pouco valorizadas eram na verdade mais úteis à vida social que aquelas que são, no entanto, mais prestigiadas. A segunda questão é a da cultura cívica numa epidemia que obriga todos a “se comportar bem” para proteger a si e aos outros. Por fim, a última questão é a do exercício do poder nas sociedades democráticas, da relação com a ciência e as fake news. A sociologia não explica a pandemia, mas analisa as respostas das sociedades, que variam sensivelmente de acordo com os níveis de integração social e coesão democrática. As respostas de Suécia, Canadá, Estados Unidos, Brasil, China e vários outros países deverão ser estudadas, e com isso aprenderemos muito sobre a natureza das sociedades, sobre sua “solidez”.

    2. Minhas próprias pesquisas não tratam da sociologia dos riscos e da saúde. Estou mais interessado nas desigualdades sociais e suas transformações nas sociedades pós-industriais da América do Norte e da Europa ocidental. Na maioria desses países, especialmente os mais liberais, as desigualdades sociais aumentaram, mas, o que é mais fundamental, elas mudaram de natureza. Passamos de um regime de desigualdades definidas em termos de classes sociais para um regime que eu chamo de desigualdades múltiplas: os indivíduos são definidos por uma variedade de desigualdades relativamente heterogêneas. Somos “desiguais enquanto” trabalhadores, mulheres, homens, jovens, velhos, com ou sem diploma, negros ou não, minoria sexual… A lista é infinita, e cada um vive as desigualdades como experiência singular e como forma de desprezo.

      Essa experiência de desigualdades não encontra expressão política organizada pelos partidos de esquerda e pelos sindicatos, porque cada um se compara aos mais próximos de si e se sente vítima. Há hostilidade aos que estão acima e aos que estão abaixo. Consequentemente, o ressentimento e o ódio levam aos movimentos populistas, que opõem um povo supostamente unido às elites supostamente homogêneas e aos estrangeiros. Evidentemente, essa configuração social e política é particularmente inquietante e perigosa em face da pandemia, que exige confiança nos outros, na solidariedade, na “razão” e na ciência, em vez de denúncia de bodes expiatórios.

    3. Na França, a pandemia provocou uma dupla reação. A primeira é um desejo de solidariedade e igualdade que veio com a revelação da utilidade coletiva de um grande número de atividades. Muitos também compreenderam que a mundialização descontrolada era perigosa e, de maneira mais geral, que as sociedades humanas deveriam contar com a natureza. Existe também uma vontade de redução dos excessos do consumo e um reforço da consciência ecológica. Esses são os aspectos positivos da pandemia. Há, contudo, uma reação muito mais perigosa diante das consequências econômicas da pandemia: desemprego em massa, empobrecimento geral e multiplicação dos conflitos e acusações. Se essa tendência prevalecer, podemos ter que nos preocupar com violências sociais como as dos gilets jeunes, aumento da insegurança, ódio dos estrangeiros e de outros países… Nesse caso, as sociedades mais democráticas podem sair da crise com regimes autoritários. E, assim, voltaríamos à sociedade de antes, mas piores.

      Parece-me que, hoje, os atores políticos têm responsabilidades consideráveis. São eles que escolherão entre a solidariedade e o ódio. Me preocupo com a possibilidade de que muitos escolham o ódio. O mesmo raciocínio pode ser feito em nível internacional. Ou inventamos outras maneiras de regular a mundialização, ou caminhamos em direção à guerra econômica, como parecem querer hoje Trump e o governo chinês. E, por que não, em direção à guerra tout court. O pior, entretanto, não é sempre necessário.

    4. Há algumas décadas a sociologia é uma disciplina em queda. Perdeu sua influência política, não atrai mais os melhores estudantes, desintegrou-se em uma infinidade de objetos e pontos de vista. Está satisfeita com uma crítica rotineira das desigualdades e discriminações… Não influencia mais as elites fora do campus. Não é apenas por causa do neoliberalismo que a economia se tornou a ciência social mais importante, mas pelo rigor de seus métodos, por sua imaginação e, muitas vezes, por sua vontade crítica de propor soluções para problemas que não são somente econômicos, como os da educação, saúde, meio ambiente, democracia… Há economistas de direita e economistas de esquerda, mas todos estão de acordo sobre os princípios da sua ciência, enquanto os sociólogos multiplicam studies e frequentemente falam apenas consigo mesmos e com os pequenos grupos dos quais são especialistas e, muitas vezes, porta-vozes.

      Acredito que a pandemia pode ser uma oportunidade para a sociologia, se a nossa disciplina encontrar uma parte da sua vocação: a de ser uma teoria dos conjuntos sociais, da sociedade, do funcionamento, dos sistemas e dos conflitos. Hoje, nós precisamos de teorias da sociedade que sejam também filosofias políticas e morais, dizendo como “manter” as sociedades, como podem ser relativamente justas e habitáveis; sociologias engajadas mais do que sociologias que hesitam entre a expertise e a denúncia da injustiça do mundo, o que não é uma revelação. É necessário reler Durkheim, Marx e Weber e, talvez,… Parsons. Da mesma maneira que os sociólogos construíram teorias das sociedades modernas, devemos hoje retomar esse trabalho porque nós temos a escolha entre sociedade ou barbárie.

    Gilberto Hochman

    1. Será difícil responder à emergência sanitária sem ciências sociais, e estas não podem silenciar diante da pandemia. As humanidades em geral, e as ciências sociais em particular, têm arsenal teórico e conceitual para a compreensão da pandemia como fenômeno social, político e econômico. Há dois roteiros possíveis para interpretação desse fenômeno tão interconectado: a compreensão das epidemias na sua dimensão fundamentalmente social baseada na reflexão desde os clássicos das ciências sociais e um movimento mais provocador, mas não por isso superior, de compreensão interconectada entre os fenômenos biológicos e sociais, por uma parte dos estudos sociais da ciência e da tecnologia. Da teoria sociológica clássica ao STS, o desafio para muitos é interpretar os efeitos sociais e políticos da crise, mas também participar de diversos modos, e criticamente, das respostas públicas à covid-19, sejam elas comunitárias ou estatais. O dicionário público da pandemia é o das ciências sociais: afastamento, contágio, crise, cuidado, desigualdade, distopia, insegurança, interação, isolamento, limpeza, máscara, medo, morte, ocultamento, políticas, práticas, resistência, resiliência, risco, ruptura, entre dezenas de outros vocábulos. Portanto é inescapável que cientistas sociais devam participar da comunicação pública da ciência da covid-19 que, nos limites de suas expertises profissionais, remete diretamente aos seus arsenais teórico-conceitual e metodológico.

    2. A história importa para a análise de políticas públicas de saúde? Essa é uma pergunta sobre a qual tenho refletido na trilha de economistas e sociólogos da política, e minha resposta tem sido, nas últimas duas décadas, incisiva e insistentemente positiva, ainda que longe de unanimidades e grandes audiências. Tanto o substantivo “história” como o adjetivo “histórico” passaram a frequentar mais o meu vocabulário corrente assim como desse campo de análise, ainda que se saiba que a história esteve mais presente na formação e nos caminhos das ciências sociais. É no campo disciplinar da sociologia que esse diálogo tem sido mais constante e persistente, de onde deriva a expressão “virada histórica das ciências sociais”, a constatação de uma “era de ouro” ou uma “segunda ou terceira onda” da sociologia histórica. Essas questões estão presentes em minha linha de pesquisa, que versa sobre gênese, natureza e desenvolvimento de políticas sociais no Brasil contemporâneo, uma continuidade de análises que discutem o papel da saúde na construção de Estado. A preocupação teórico-conceitual é compreender quando, por que e como, em um determinado contexto histórico, surgem arranjos coletivos, nacionais e compulsórios para proteger populações de riscos e cuidar de agravos (como analfabetismo, desnutrição, doença, envelhecimento, pobreza, morte etc.) e os compensar, bem como quais são as suas consequências sociais e políticas. Diz respeito, portanto, ao processo de constituição de autoridade pública em que epidemias são eventos únicos, trágicos e dramáticos que exacerbam os efeitos negativos da interdependência social (como interdependência sanitária) e, potencialmente, as possíveis saídas (ou arranjos) individuais e coletivas para minorar, solucionar e prevenir.

    3. Em uma perspectiva histórica, desde meados do século XIX epidemias e pandemias provocaram respostas na direção do crescimento da autoridade pública na coordenação de entes federativos e na articulação com outros Estados nacionais e organizações internacionais. E essa seria, portanto, a expectativa do Brasil pós-pandêmico; todavia, como veremos na resposta seguinte, uma análise da sociologia histórica não autoriza previsões apenas otimistas sobre nosso futuro.

    4. Retomar a análise de Norbert Elias (O processo civilizador) sobre a sociogênese do Estado pode ajudar a produzir um esquema analítico e uma interpretação sobre o surgimento de arranjos coletivos de proteção social e produção de bem estar a partir da emergência e dos impactos das epidemias. Em primeiro lugar, um elemento-chave para a compreensão da coletivização do bem-estar é a ideia de configuração de Norbert Elias definida, em Introdução à sociologia, como um padrão estruturado e mutante de dependências recíprocas entre seres humanos. Seria um instrumento conceitual para se escapar do antagonismo indivíduo versus sociedade, e a interdependência de indivíduos, grupos e instituições, a condição prévia para a formação e identificação de uma configuração. Na passagem do mundo tradicional para o moderno (industrialização, urbanização) ocorreu um alargamento da complexidade das cadeias de interdependência que se tornaram opacas e incontroláveis por parte de qualquer indivíduo ou grupo. Isso impossibilitaria explicar uma configuração a partir das propriedades dos seus componentes, segundo Elias. Nessa perspectiva o desenvolvimento e a dinâmica histórica dessas cadeias de interdependência social geram consequências sociais não antecipadas ou mesmo não desejadas por qualquer indivíduo/grupo que as compõe. E, ao mesmo tempo, são resultados do entrecruzamento das motivações e ações desses mesmos indivíduos e grupos. Um segundo ponto a ser ressaltado é que a caracterização e a análise de configurações complexas só podem ser feitas por meio dos elos de interdependência que as constituem. Os elos de interdependência demandariam formas de coletivização do cuidado com adversidades temporárias ou permanentes; são os efeitos externos negativos, isto é, as consequências indiretas das deficiências e adversidades de uns indivíduos sobre outros que são imediatamente atingidos (apesar de não sofrerem desses agravos). Por exemplo, a ameaça da doença de alguns sobre os demais membros da sociedade que poderia potencialmente produzir uma consciência sobre essa mesma interdependência. Desse modo, a epidemia seria o paradigma da interdependência social uma vez que, a princípio, ninguém poderia dela escapar. O caminho das respostas coletivas (estatais ou voluntárias) às epidemias é, todavia, objeto de pesquisa sociológica e histórica. Historicamente não foram trajetórias unidirecionais e, por isso, de difícil previsibilidade na experiência atual pandêmica da covid-19. Como indiquei em The sanitation of Brazil – nation, State and public health, epidemias no século passado produziram formas públicas e perenes para lidar com os agravos, mas, sociologicamente, as respostas podem ser variadas e, apesar do meu desejo, não apontam necessariamente para expansão do Estado no campo da saúde.

    Göran Therborn

    1. De forma geral, a maior parte da sociologia e das ciências sociais parece pouco preparada para compreender e explicar a pandemia do coronavírus. Que teoria sociológica é convocada pela pandemia? Duas, antes de tudo, nenhuma delas muito desenvolvida. Uma é a teoria, e um corpo de descobertas de pesquisa, da interface entre o social e o biomédico, como interagem e afetam um ao outro. Ela demandará uma perspectiva empírica mais ampla do que a biopolítica governamental foucaultiana, mais relacionada aos estudos anglo-saxões em saúde pública e à medicina social sueca. Focalizada nas inter-relações entre desigualdade social, doenças e riscos de saúde predominantes, trajetórias de vida e saúde, má saúde e mortalidade. A epidemiologia, que se desenvolveu numa investigação sociomédica pioneira feita por acadêmicos britânicos como Michael Marmot e Richard Wilkinson, não tem sido nem uma subdisciplina reconhecida da sociologia, nem uma vizinha transdisciplinar de primeira ordem. A outra teoria convocada e, a meu ver, também em falta é uma teoria compreensiva, multidimensional do mundo contemporâneo. A análise do sistema-mundo de Immanuel Wallerstein foi uma contribuição histórica, mas ela não foi desenvolvida para incluir o ecossistema planetário, o que agora é necessário. A mesma limitação, além de outras, vale para a literatura sobre globalização.

      A experiência da covid-19 é a maior experiência consciente global na história humana. Algumas outras epidemias foram mais devastadoras, por exemplo a gripe “espanhola” originada no Kansas, EUA – até o dia 7 de maio a contagem de mortos da covid-19 ainda é menos de dois terços das morte anuais por malária. Temos, no entanto, uma experiência simultaneamente comum, ainda que diferenciada, em (até agora) 212 países e territórios no mundo. A pandemia reúne uma sociedade global sem precedentes, interdependente, interconectada, interativa e dividida, trancada por dentro e por fora.

    2. Nunca me interessei muito por autopromoção, então essa questão é de certa maneira difícil ou constrangedora de responder. Penso, contudo, que duas áreas, entre várias de uma carreira razoavelmente longa, são pertinentes para a situação atual. Em primeiro lugar a sociologia global; enquanto um anti-imperialista comprometido desde os nove anos de idade (a guerra da Coreia) sempre tive curiosidade e comprometimento globais. Academicamente, isso resultou em várias contribuições multidimensionais para a compreensão do nosso mundo, como, por exemplo, os trabalhos The status syndrome, de Michael Marmot, e The spirit level, de Richard G. Wilkinson e Kate Pick. Apesar disso, interesses ecológicos e climáticos recentes não foram integrados, e a economia política e geopolítica o foram majoritariamente em fragmentos ocasionais, apenas. Em segundo lugar, meu trabalho sobre desigualdade, especialmente The killing fields of inequality e uma série de artigos em livros e revistas, fez um esforço explícito para incluir saúde e mortalidade – o que eu chamo de desigualdade vital – em discursos e práticas de (des)igualdade. Ele desenvolve uma concepção tridimensional da desigualdade humana, derivada de uma concepção de três dimensões do ser humano e inspirada por, se não exatamente seguindo, Amartya Sen.

      Um organismo vivo suscetível a dor e prazer, saúde e doença, e a uma expectativa de vida variavelmente delimitada, sujeito a desigualdade vital determinada socialmente; uma pessoa reflexiva, com ou sem autonomia, que pode ser ignorada ou reconhecida, respeitada ou humilhada, que pode ser privilegiada ou discriminada, sujeita a desigualdade existencial; um ator que persegue objetivos, com recursos variados, de renda e riqueza, de contatos sociais, de poder, em resumo, sujeito a desigualdade de recursos. As três dimensões interagem e se interconectam, mas cada uma tem um peso específico em diferentes períodos do curso de vida humano, suas dinâmicas particula- res e diferentes trajetórias de desenvolvimento, e, portanto, têm de ser combatidas de diferentes formas. O mais importante é trazer para o mainstream da sociologia assuntos referentes ao desenvolvimento, à vulnerabilidade e resiliência humanas, à saúde e doença.

      A análise de classe, outro interesse importante para mim, também teve sua relevância confirmada pela pandemia e sua divisão social específica: a classe média alta trabalhando na segurança de seus lares; os trabalhadores “essenciais” alimentando-a e dela cuidando, bem como de seus pais, enquanto correm risco de contágio; os trabalhadores comuns desempregados ou dispensados, os trabalhadores diaristas e vendedores sem poupança e perdendo seu sustento; e acima de todos esses a burguesia cobrando seus aluguéis em segurança e planejando suas explorações pós-pandemia.

    3. A pandemia está majoritariamente salientando, aprofundando e acelerando processos já em curso. Processos de alargamento da desigualdade vital intranacionais e de desigualdade de recursos em geral, de fim (desde a crise financeira de 2008) da globalização neoliberal orientada pelos mercados, e da sua substituição por um mundo geopolítico mais centrado nos Estados, tendendo em direção a uma guerra entre Estados Unidos e China, fria ou de fato. Essa aceleração certamente levará a um mundo diferente depois da pandemia.

      O mundo pós-pandêmico provavelmente incluirá dois cenários. Um deles seria um mundo de 1945, ávido por um fim do pesadelo da pobreza, desigualdade e violência e uma oportunidade para construir um mundo melhor, menos desigual, menos injusto, mais democrático. É o que está no horizonte de um esclarecimento igualitário emergente de toda uma falange de economistas renomados, incluindo Thomas Piketty e pelo menos quatro ganhadores do prêmio Nobel, e por um amplo espectro de forças sociais progressistas, entre elas minorias esclarecidas da burguesia como por exemplo o London Financial Times.

      O outro cenário provável lembraria aquele da Euro-América de 1932. As forças da desigualdade, xenofobia, ódio nacionalista e violência não foram derrotadas, e em alguns lugares ou países foram fortalecidas pela crise. De outro lado, forças igualitárias e pacíficas também foram reforçadas pelo fracasso do neoliberalismo hegemônico. Num cenário de 1932, depois da pandemia, haverá duas opções contrastantes, a reforma pacífica, democrática e igualitária – escolhida então pelos EUA e Escandinávia – ou o nacionalismo violento e odioso, uma estrada tomada naquela ocasião pela Alemanha e quase todos os países do leste europeu.

    4. Não penso que haja um programa de literatura sociológica relevante esperando nossa leitura. Em vez disso, penso que é mais importante nos perguntar que trabalhos precisam ser escritos. Haverá uma série de trabalhos sobre as causas, respostas e consequências da pandemia. O espalhamento do contágio e sua severidade diferiu amplamente entre lugares, Estados e continentes. Por quê? Isso não parece algo que a virologia, sozinha, possa explicar. A sociologia tem contribuições cruciais a fazer.

      Os diferentes timings do reconhecimento e reação e as variadas formas de quarentena, implementação, testagem e cuidado serão explorados nas linhas das culturas políticas, políticas sociais e do caráter de instituições de cuidado. A avaliação das respostas econômicas governamentais nos levará às profundezas da economia política. As consequências socioeconômicas da pandemia terão de ser traçadas de volta às estruturas dos negócios e mercados de trabalho (o escopo do “trabalho informal”), aos sistemas de direitos sociais e a classes, etnias, gêneros e estruturações religiosas das sociedades. No curso das investigações, novos desenvolvimentos teóricos serão feitos.

      Uma boa aposta nos efeitos intelectuais da pandemia é a de que haverá um impulso da ciência social-biomédica e desenvolvimentos de uma sociologia planetária multidimensional, do poder, privilégio, pobreza e vulnerabilidade, integrando a natureza, do viral ao climático, culturas, as revoluções digitais, mercados e cadeias de suprimentos, geopolítica, e os padrões da subsistência e dos cursos de vida humanos.

    Habibul Haque Khondker

    1. Entre as ciências sociais, pode ser que a sociologia esteja singularmente preparada para lidar com a crise da covid-19 por três motivos. O primeiro é que a sociologia compreende uma perspectiva ampla, um olhar holístico para a sociedade que outras disciplinas especializadas podem às vezes deixar de lado. A crise da covid-19 é uma crise de saúde pública. Em saúde pública, a saúde é claramente um assunto científico, um tema com o qual os cientistas lidam usando dados, evidências e experimentação. O “público” em saúde pública está nos domínios da sociologia. Uma perspectiva mais ampla oferecida pela sociologia está mais apta a capturar o aspecto público da resposta à covid-19.

      Em segundo lugar, a sociologia tem uma subárea, nomeadamente a sociologia dos desastres, que se dedica a lidar com o exame de desastres e crises. O conhecimento acumulado nessa área, tradicionalmente dedicada ao exame de desastres de um só evento, pode ser usado na exploração de crises multinível como a da covid-19. Mesmo a subárea da sociologia médica pode ser utilizada nesse sentido. Em terceiro lugar, teóricos sociais como Ulrich Beck dedicaram atenção, décadas atrás, à crise como aspecto das sociedades modernas ou da modernidade avançada. Tal enquadramento teórico pode ser utilizado na compreensão da covid-19, especialmente de suas consequências de mais longo prazo.

    2. Minha atual área de pesquisa é a da globalização e estudos globais. A covid-19 produz uma crise claramente global que demanda uma abordagem igualmente global para sua compreensão, e sua solução provavelmente virá de pesquisas e compartilhamento de informações baseados em cooperação e acordos dessa natureza. Aqui meu conhecimento dos processos globais poderá ser útil na compreensão do espalhamento e das várias consequências da crise da covid-19. Anteriormente, pesquisei na área da sociologia dos desastres. Meu interesse de pesquisa, a fome, pode ser vista como uma crise prolongada com estágios separados. As pandemias podem ser abordadas de uma perspectiva da sociologia dos desastres. Muitos conceitos dessa área podem ser usados no estudo dessa pandemia. Também tenho interesse continuado em sociologia comparada. Atualmente estou envolvido num estudo comparativo das respostas à crise da covid-19 em diversos países asiáticos.

    3. Esta pandemia será um divisor de águas. Em um nível, ela está criando novas situações e inaugurando novas tendências e práticas; em outro, está exacerbando problemas econômicos e sociais já existentes. A pandemia demanda um novo contrato social ao revelar fissuras profundas na sociedade tanto em termos de classe quanto étnicos. Nos EUA (especialmente em Nova York e outras grandes cidades), um número desproporcionalmente alto de vítimas pertence às comunidades latinas e afro-americanas. Essas comunidades em situação de desvantagem econômica compõem também o maior número dos trabalhadores da linha de frente da crise – motoristas de ônibus, de transportadoras, policiais e trabalhadores da saúde que sofreram as consequências evidentes nas taxas de mortalidade. Os grupos em desvantagem econômica também não tiveram cobertura de planos de saúde, e suas condições econômicas foram obstáculos ao acesso a boa nutrição e estilos de vida saudáveis. Enquanto por um lado um novo contrato social entre governantes e governados é necessário, por outro também o é uma definição nova e significativa de uma boa sociedade baseada na ideia de justiça social. A desigualdade extrema é um impedimento à criação de uma sociedade justa e estável.

    4. Sociólogas e sociólogos precisam se juntar à luta argumentando que a sociologia não é mais mera espectadora da crise. A pesquisa Everything in its path (1978) de Kai Erikson, que discute os efeitos de uma enchente no interior de Nova York, fornece um molde para a pesquisa sobre capital social comunitário e confiança. Sobre como a pandemia afetou a comunidade e como a sociedade pode se reconstruir com base em um novo contrato social. É importante recuperar a confiança, que é um elemento-chave para a explicação das diferentes respostas e performances governamentais. O capital social, um sentimento compartilhado de pertencimento, um espírito de cooperação, interdependência e mutualismo são de grande valia e precisam ser incluídos no diálogo e nas discussões. A ideia de responsabilidade pública é crucial. Em muitos países as lideranças falharam em atender ao desafio colocado pela ocasião.

      A discussão de uma nova economia política deve ser construída sobre uma nova definição de desenvolvimento econômico. Os trabalhos de Amartya Sen serão de grande valor na redefinição do que se entende por desenvolvimento econômico. Trabalhos recentes de Mariana Mazzucato como Rethinking capitalism: economics and policy for sustainable and inclusive growth lançarão perspectivas úteis sobre essas conversas. Num artigo recente, ela identificou três crises: a ambiental, a econômica e a de saúde pública. Todas estão interligadas e precisam ser abordadas de maneira holística.

    Hartmut Rosa

    1. Na minha compreensão da teoria social, sigo a concepção daquilo que Charles Taylor chamou de princípio da melhor descrição possível. Isso significa que é nossa tarefa e responsabilidade tentar compor a melhor descrição ou interpretação possível do que está acontecendo no mundo, fazendo uso de todas as fontes disponíveis: dados empíricos, estatísticas, observações fenomenológicas, discursos de jornalistas e políticos, além de teorias sociais e filosóficas. E, fazendo isso, acho que podemos contribuir bastante para a compreensão da crise atual. O que observamos, além do sofrimento humano causado em parte pelo vírus e em parte por nossas reações a ele, é uma ruptura abrupta e uma desaceleração sem paralelo histórico nas cadeias globais de produção e interação, e isso nos oferece a possibilidade de um olhar mais aprofundado para as formas pelas quais as sociedades modernas realmente funcionam. Durante muito tempo houve uma divisão entre as teorias sociológicas e políticas da modernidade: para as últimas, a sociedade moderna é predominantemente uma sociedade política: cabe aos governos (democráticos) regular a relação entre as esferas da economia, ciência, cultura etc. e dar forma aos enquadramentos sociais em meio aos quais vivemos. Por contraste, para os que seguem Niklas Luhmann, a sociedade moderna é em primeiro lugar diferenciada funcionalmente de maneira que a ciência, economia, política, religião etc. são todos sistemas mais ou menos autônomos que não podem ser governados politicamente. Com o advento do coronavírus, de repente vemos que em algumas semanas a ação política pode reconquistar supremacia e ganhar controle sobre atividades de todas as esferas. De acordo com Carl Schmitt, quem tem poder para convocar o estado de emergência é o verdadeiro soberano. Há pouca dúvida de que a política, neste momento, reconquistou sua primazia sobre os mercados. A maior parte dos teóricos sociais até hoje pensava que, na modernidade, isso só poderia acontecer em tempos de guerra.

    2. É muito revelador olhar a situação pela perspectiva da teoria da aceleração. Vemos uma desaceleração historicamente única da mobilidade física e material, assim como da vida sociocultural. Parece que freios gigantescos foram acionados nas rodas incessantes da produção, do movimento e da aceleração. Por mais de 200 anos, o mundo experimentou um processo (desigual e por vezes forçado) de dinamização: nós literalmente colocamos o mundo em movimento num andamento cada vez mais intenso. Ao observar o movimento geral de pessoas e bens e materiais circulando o globo, é possível ver uma curva impressionante de crescimento que virtualmente não conhece quebras, pausas ou limites significativos. Basta olhar os números: desde 1800, a produção econômica e o consumo mundiais, o uso e esgotamento de recursos naturais, o uso de energia, a massa total e o número de pessoas em movimento aumentaram incessantemente. Até guerras foram causa de aceleração e mobilização. Agora, porém, o mundo está se encaminhando para uma interrupção. Não por meio de uma crise econômica, uma guerra ou desastre natural. O vírus não está corroendo nossos aviões, destruindo nossas fábricas ou nos forçando a ficar em casa. É a nossa ação política que faz isso. Por que isso é tão notável? Porque nos últimos 50 anos experimentamos um sentimento crescente de impotência diante das forças “invisíveis” dos mercados financeiros e da economia global que produziram um horrendo desastre ecológico (climático) e uma aterrorizante desigualdade social. Duzentos anos de crítica fundamental não puderam fazer nada contra os motores de acumulação do capital; mas agora eles estão parados. Conseguimos! Essa é uma experiência de autoeficácia coletiva: sim, podemos direcionar, ou ao menos parar, o mundo! Mas, é claro, parar o sistema não é criar uma forma diferente de sociedade. É mais algo como causar um acidente. O tempo dirá se também somos capazes de dar esse segundo passo!

    3. Por um lado, a crise certamente intensifica tendências e problemas que já existiam. Por exemplo, a tendência rumo à digitalização da vida social. De fato, ela produziu uma divisão aguda entre um mundo físico e material “quarentenado” e um mundo digital que acelera seus fluxos e atividades. Por outro lado, no entanto, estou bem convencido de que o coronavírus cria possibilidade histórica única de uma mudança de paradigma social. Nas formas de operação normal da sociedade as atividades sociais são determinadas por regras e rotinas de longa duração; os atores sociais estão profundamente acoplados a longas e complexas cadeias processuais que determinam suas ações. Em sociedades complexas e dinâmicas, quebrar essas cadeias e abandonar as rotinas consolidadas são atitudes muito arriscadas e imprevisíveis. Por isso, a sociedade opera primariamente num modo de dependência em relação a elas. Agora, porém, as cadeias de produção e interação estão interrompidas, as rotinas falham e, em muitos sentidos, não há mais regras. Essa é exatamente a situação em que uma mudança de caminhos ou paradigmas pode ocorrer: é um ponto de “bifurcação”: podemos tentar voltar aos velhos caminhos o mais rapidamente possível ou tentamos algo novo. Numa situação como esta, não há modelos sociológicos ou econômicos capazes de prever o curso de ação futuro: é uma situação em que não importa a previsão, mas a ação (política): o futuro está em aberto!

    4. Sobre este último aspecto [abordado na resposta anterior] – o fato de a especificidade dos seres humanos ser justamente sua capacidade de quebrar as cadeias causais de interação e rotinas, e começar a vida de novo, de se tornar atores criativos e inventivos –, recomendo o livro seminal de Hannah Arendt A condição humana, em que ela desenvolve o conceito de natalidade para descrever esse fenômeno. Para entender a lógica da atual situação social como uma fase revolucionária em que uma mudança de paradigma pode ocorrer, eu voltaria ao trabalho A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn, que analisa o modo como os processos rotineiros da “ciência normal” podem ser interrompidos em tempos de crise e dar passagem a novos caminhos revolucionários. Kuhn toma esse modelo do mundo político e o aplica à ciência, mas ele já foi reaplicado a análises da vida social por Sheldon Wolin, Gary Gutting e outras e outros. Finalmente, o que eu realmente acho mais impressionante é a forma pela qual o sociólogo francês da velocidade, Paul Virilio, previu um mundo de “inércia polar” 40 anos atrás. Ele predisse um mundo em que a mobilidade física e material é reduzida a quase zero enquanto os fluxos de dados e informação viajam na velocidade da luz. É um mundo de paralisação hiperacelerada: o coronavírus nos deixa bem perto disso!

    Hiro Saito

    1. Penso que a teoria sociológica capaz de dar conta desse desafio tem que ser cosmopolita, pública e reflexiva. Para entender os impactos políticos e sociais da pandemia de covid-19, precisamos abraçar o que Ulrich Beck chamou de cosmopolitismo metodológico para investigar a multidão de redes, mecanismos e processos pelos quais a pandemia reverbera ao longo de limites nacionais. Ao mesmo tempo, essa sociologia cosmopolita tem que ser publicamente orientada, abordando diretamente as questões urgentes para as preocupações dos cidadãos, em vez de se orientar por debates disciplinares específicos abrigados num ambiente acadêmico. Para avançar essa sociologia pública e cosmopolita, precisamos ser reflexivos de nossas próprias práticas – nomeadamente as próprias instituições, como universidades e associações profissionais, às quais essa produção sociológica está acoplada. Por exemplo, de que maneira podemos incluir questões públicas no processo de condução de pesquisa sociológica sobre os impactos da pandemia? E que público(s) deve(m) ser incluído(s) quando os impactos da pandemia são totalmente transnacionais? Para praticar uma sociologia pública e cosmopolita, portanto, precisamos reimaginar e transformar as estruturas de nossa própria produção de conhecimento.

      Em resumo, a pandemia abriu espaço para que sociólogas e sociólogos acelerem o avanço da teoria sociológica numa direção cosmopolita, pública e reflexiva. Mas esse avanço só será possível se sociólogas e sociólogos ao redor do mundo aumentarem seus esforços coletivos para derrubar as barreiras entre sociologias nacionais, entre universidades e o público, entre teoria e prática.

    2. De maneira consistente em relação à minha resposta à primeira pergunta, meu projeto de pesquisa atual busca contribuir com a reflexão sobre o papel das universidades na atenção aos desafios da pandemia e de outros problemas globais urgentes, como a mudança climática, crises de refugiados e desigualdades econômicas. Especificamente, tenho examinado as transformações organizacionais das universidades nas décadas mais recentes diante do crescimento da comercialização e internalização do ensino superior no mundo. A questão que me motiva é a que diz respeito a como proteger e avançar a missão universitária de produzir conhecimento como um bem público global e servir como um foco de debates críticos em esferas públicas transnacionais. Essa missão pública, eu acredito, é crucial para atender aos desafios lançados pela pandemia e por outros problemas globais. Meu projeto de pesquisa, portanto, tem como objetivo identificar efeitos positivos e negativos do crescimento da comercialização e internalização em sua relação com a missão pública das universidades e então explorar políticas e práticas possíveis e capazes de potencializar os efeitos positivos.

      Em outras palavras, por meio desse projeto de pesquisa, tenho o objetivo de proceder da reflexividade à “performatividade”. Ao melhor entender as transformações em curso nas universidades enquanto infraestruturas da produção de conhecimento no mundo contemporâneo, espero apontar para caminhos pelos quais é possível fazer intervenções efetivas para direcionar as transformações numa direção mais pública e cosmopolita. Essa será uma contribuição indireta mas decisiva, no longo prazo, para a construção das nossas capacidades coletivas e institucionais para compreender diferentes dimensões da pandemia e de outros problemas globais.

    3. Certamente, os contornos das sociedades pós-pandemia dependem fundamentalmente de como cidadãos, governos, corporações e outros atores relevantes se mobilizarão para avançar suas visões em disputa para o futuro. Apesar disso, gostaria de sugerir que a dialética entre nacionalismo e cosmopolitismo pode nos ajudar a entender possíveis contornos em termos da questão da solidariedade enquanto base da integração social, inclusão política e identidade cultural.

      Em Singapura, por exemplo, a pandemia demonstrou o quanto essa cidade-estado global depende de trabalhadores estrangeiros no setor da construção civil e como eles são maltratados – esses trabalhadores “descartáveis” se abrigavam em dormitórios lotados que se tornaram o elo mais fraco no esforço de contenção da pandemia em Singapura. Isso, contudo, também criou uma abertura para os cidadãos e propositores de políticas públicas do país debaterem com seriedade como melhorar as condições de trabalho e moradia de estrangeiros em território nacional, de forma consistente com o cosmopolitismo que expande o escopo da solidariedade para além da nacionalidade. Momentos semelhantes de solidariedade cosmopolita são incipientes em outras cidades globais que dependem em larga escala de trabalhadores estrangeiros.

      De maneira igualmente importante, a pandemia também revitalizou o nacionalismo enquanto fonte de solidariedade. Por um lado, ela expôs como sistemas de saúde em muitos países estavam quebrados; particularmente os pobres, minorias étnicas e outras populações marginalizadas foram mais afetadas pela pandemia e suas ramificações econômicas, já que faltaram os recursos médicos e financeiros. Por outro lado, o drama daquelas populações marginalizadas estimulou cidadãos e propositores de políticas públicas a debater como fazer suas nações mais inclusivas em momentos de solidariedade nacional induzidos pela pandemia – “estamos juntos nessa”. Esses momentos cosmopolitas e nacionais de solidariedade, todavia, podem muito bem ser desfeitos pelo globalismo neoliberal, pelo populismo de direita e outras contraforças. É por isso que os contornos das sociedades pós-pandêmicas dependem em última análise das lutas políticas entre atores relevantes, nós, sociólogas e sociólogos, incluídos.

    4. Penso que os trabalhos de Ulrich Beck e Bruno Latour podem ser da maior ajuda porque iluminam as dimensões empírica, normativa e performativa dos desafios em curso. Para começar, a teoria do risco mundial de Beck, assim como seu cosmopolitismo metodológico, nos permite compreender a pandemia de covid-19 em conjunto com outros riscos globais, como crises financeiras e conflitos geopolíticos. Embora seja urgente entender a pandemia por si só, também é essencial examinar como suas causas e consequências se interseccionam com aquelas dos outros riscos globais. Isso porque, no espírito da teoria crítica cosmopolita de Beck, a pandemia pode e deve ser vista como um pivô de primeira ordem na metamorfose da sociedade de risco mundial em direção ao coletivo cosmopolita capaz de abordar diretamente riscos globais, dos quais o mais importante é a mudança climática.

      De maneira semelhante, os escritos de Latour nos ajudam a posicionar a pandemia no contexto da mudança climática enquanto horizonte de todos os problemas globais. Embora a pandemia tenha devastado a vida e o sustento de muitas pessoas, ela demonstrou como a qualidade do ar e da água pode melhorar quando o transporte terrestre, aéreo, cadeias de suprimentos globais e muitas outras pegadas ambientais humanas são reduzidas – “ganhar” a luta contra a pandemia não pode ser algo que nos autorize a suspender a luta contra a mudança climática. Igualmente importante é a forma como Latour nos ajuda a compreender o papel de cientistas e outros produtores de conhecimento na construção e resolução da pandemia e de outros problemas globais. Ele nos convida então a abraçar nossa própria performatividade na composição entre participantes, ambientes e procedimentos relevantes para que verdadeiros diálogos “cosmopolíticos” sobre as mais urgentes questões do mundo contemporâneo possam acontecer.

    Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior

    1. A pandemia da covid-19 tem dimensões profundamente associadas aos últimos desdobramentos do processo de globalização econômica e da transnacionalização do capital, em curso desde os últimos 25 anos do século XX. O grande avanço dos meios de comunicação e de transmissão instantânea de dados a longa distância; o incremento nos meios de transporte e o aumento da velocidade e ampliação da capacidade de deslocamentos de cargas, especialmente a partir do uso de contêineres em navios e aviões (processo conhecido como conteinerização); as ampliações das possibilidade de fragmentação dos processos produtivos em regiões e países diferenciados; a liberalização e financeirização da economia e a flexibilização e/ou desregulamentação crescentes das normas e leis trabalhistas e ambientais em diversos contextos nacionais provocaram um crescimento acelerado e sem precedentes da circulação de informações, mercadorias, pessoas e, consequentemente, doenças.

      A irresolvida crise econômica acentuada no final da primeira década do século XXI já vinha dando sinais de novos picos antes de a pandemia se apresentar. Apesar da sua pujança, de sua grande capacidade de produção de riquezas, dos enormes avanços tecnológicos, o sistema capitalista mundial, em suas variadas configurações regionais, vinha apresentando sinais críticos que se aprofundam e tornam-se mais evidentes com a pandemia: gigantesca concentração mundial das riquezas associada ao empobrecimento cada vez maior de pessoas, grupos sociais e povos em todo o planeta; ampliação mundial do desemprego e das limitações de acesso a meios de sobrevivência; recorrentes problemas e desastres ambientais; enormes ondas migratórias. Ao nível da ação política, todo esse processo ocorre paralelamente a uma expressiva retomada do espaço público por forças políticas de extrema-direita, cuja compreensão e mesmo suas formas de denominação (extrema-direita, populismo de extremadireita, neofascismo, fascismo do século XXI) são objetos de controvérsias nas ciências sociais e históricas.

      Como campo específico do conhecimento acadêmico, a sociologia se constituiu em momentos de crises, em grande medida associadas a períodos de predomínio do liberalismo enquanto orientação política e econômica. Autores e autoras considerados clássicos da sociologia, desafiados pelos aspectos inesperados da realidade, buscaram ir além dos modos dominantes de análise dos processos que os cercavam.

      Estamos, hoje, diante de desafios que possuem características semelhantes. Nossos referenciais teóricos, tanto os clássicos como aqueles que foram sendo constituídos posteriormente, nos forneceram ferramentas para a leitura das novas realidades, porém marcados pelos limites de seu tempo. Utilizar e testar essas ferramentas neste momento de crise aprofundada é razoável, especialmente aquelas constituídas na busca de compreensão crítica das realidades, pois tomam a crise como elemento importante. Como no tempo em que foram fundadas as ciências sociais, entretanto, novos desafios se apresentam a partir dessa combinação de pandemia e crises econômicas, sociais e políticas. A constituição de novos instrumentos de informação, análise e interpretação, assim, tem se tornado uma exigência e um desafio.

    2. Minha área principal de pesquisa nos últimos 20 anos tem sido a sociologia ambiental e, portanto, a relação entre sociedade e natureza. Nessa relação, os estudos realizados no âmbito do Grupo de Estudos Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente da Universidade Federal do Maranhão (Gedmma/Ufma), tomam com temáticas prioritárias conflitos ambientais, (in)justiça ambiental e racismo ambiental.

      Dois desafios têm aparecido com força nos últimos tempos para a sociologia ambiental. O primeiro é a contradição cada vez mais conhecida entre crescimento econômico e conservação ambiental, que nos remete à discussão sobre a crise contemporânea do sistema capitalista. Mais recentemente e associado ao anterior, o segundo desafio é o debate sobre a relação entre degradação ambiental e o surgimento de novas doenças, em especial, a pandemia provocada pela difusão planetária da covid-19. Muitos pesquisadores têm procurado estabelecer relações de causa e efeito entre ambos, e esse debate tem ocupado espaço nas pesquisas acadêmicas e obtido muita repercussão midiática.

      Entremeando as discussões sobre as relações entre conservação ambiental, crescimento econômico e difusão de novas doenças, o debate sobre conflitos ambientais traz à tona, por um lado, as desigualdades nas capacidades de intervenção na natureza por parte dos vários grupos e organizações sociais e, por outro, as desigualdades no sofrimento e enfrentamento dos efeitos ambientais dessas intervenções, ressaltando a luta de povos e comunidades tradicionais ao redor do mundo por associar a defesa de seus territórios à conservação da natureza, fundamental para manutenção de seus modos de vida. Esse debate vem produzindo importantes aportes para se pensar a desigualdade social que tem marcado os efeitos da difusão da covid-19 pelo mundo, como tem sido destacado no noticiário mundial e nos relatórios de inúmeras instâncias nacionais e internacionais de intervenção sanitária e de pesquisa. Apesar de aparentemente ameaçar todos por igual, como supõe parte significativa das teorias sociológicas do risco, tanto as consequências ambientais do crescimento econômico orientado pelo princípio capitalista do lucro quanto a difusão da pandemia afetam muito mais intensamente grupos étnicos vulneráveis (pretos, migrantes, indígenas, quilombolas), moradores de periferias urbanas, mulheres (devido também à ampliação da carga de trabalho em situações de isolamento), trabalhadores urbanos e rurais, povos e comunidades tradicionais.

      O acúmulo de pesquisas que têm sido feitas, principalmente a partir do final do século XX, sobre conflitos ambientais, (in)justiça ambiental e racismo ambiental pode fornecer inúmeros instrumentos para ampliar a compreensão das dimensões sociais da pandemia.

    3. A pandemia está se constituindo em marco histórico de grande relevância. A velocidade de sua difusão e as formas adotadas para seu combate estão associadas às características do momento atual da globalização econômica. Não pode, porém, ser tomada como única causadora das crises econômicas, sociais e políticas de alcance global que pairam como ameaças permanentemente associadas a essa mesma globalização e seus desdobramentos. Como vários autores têm proposto, a partir de orientações teórico-metodológicas diferenciadas, a difusão do coronavírus detonou e antecipou uma crise econômica que já se anunciava e, em grande medida, cria obstáculos para compreensão de suas causas e alcance. Ir além das aparências mais imediatas e compreender de forma aprofundada esse processo constituem um dos desafios colocados pela atual conjuntura para os cientistas sociais.

      As formas diferenciadas de enfrentamento da pandemia pelos governos nacionais é outro importante elemento atualmente. Negacionismos vindos de governos considerados de direita (Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro no Brasil, por exemplo) ou de esquerda (Lopez Obrador, no México), disputas internacionais em torno das orientações emanadas da Organização Mundial da Saúde, adoção mais ou menos rápidas de medidas preventivas, capacidades diferenciadas dos sistemas nacionais de saúde, medidas econômicas adotadas ou não para proteção de cidadãos e negócios... tudo isso tem apontado para um debate público cada vez mais intenso sobre formas de governo, formas de organização social, mecanismos de controle da economia, formas de sociabilidade, enfim, Estado, mercado e alternativas autonomistas de caráter comunitário são temas que voltam ao centro das discussões públicas e tendem a tomar novas proporções nos estudos das ciências sociais.

      O resultado disso tudo é imprevisível. Uma leitura acurada dos efeitos das últimas grandes crises econômicas e políticas mundiais aponta para a aceleração da ampliação de poder político e econômico por grandes corporações, bancos e outras instituições financeiras que vêm aumentando enormemente sua capacidade de intervenção nas realidades regionais, nacionais e locais. É possível que esse processo continue ameaçando, cada vez mais, as possibilidades de formas democráticas de organização das várias sociedades ao redor do planeta, num casamento que vem sendo experimentado em vários lugares, tendo o Brasil como um de seus laboratórios, entre ultraliberalismo e conservadorismo de extrema-direita. Um elemento importante da pandemia é a possibilidade de aprofundamento das experiências de controle social exercidas por agências multilaterais, governos e empreendimentos privados.

      Por outro lado, a explicitação dos processos de ampliação da concentração de riquezas e de poder político e econômico tem gerado reflexões críticas na academia e possibilitado a rearticulação e novas articulações de movimentos sociais os mais variados, muitas vezes a partir de pautas locais, mas que têm buscado ampliar seu alcance local, nacional e internacional. Concentração de poder econômico e político sendo confrontada por movimentos com pautas de garantia ou ampliação de conquistas democráticas, territoriais e/ou trabalhistas aponta para maiores indefinições quanto ao futuro, desafiando a imaginação sociológica.

    4. A crise sanitária associada ao aprofundamento da crise econômica tem provocado uma profusão de reflexões mais ou menos apresadas, mais ou menos aprofundadas, mas que buscam estabelecer compreensões sobre os novos desafios que se apresentam globalmente e às realidades locais. No Brasil, tem sido muito interessante a difusão de textos de cientistas sociais, por exemplo, por meio do Boletim Cientistas Sociais e o Coronavírus, uma iniciativa conjunta de Anpocs, ACSRM, ABCP, ABA, SBS, SBPC-CS; do site A terra é redonda; do blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), especialmente por este Simpósio Mundo Social e Pandemia.

      Sem tomar como objeto a pandemia, porque anteriores a ela, alguns livros podem nos ajudar a compreender melhor a crise econômica e política que estamos enfrentando e a construir bases teóricas para pensar seus últimos desdobramentos associados à crise sanitária. Cito como exemplos 17 contradições e o fim do capitalismo (2016), de David Harvey; América Latina y el capitalismo global: una perspectiva crítica de la globalización (2015) e Una teoría sobre el capitalismo global: producción, clase y Estado en un mundo trasnacional (2013), de William I. Robinson (traduções para o espanhol de originais em inglês); Expulsions: brutality and complexity in the global economy (2014) e Sociologia da globalização (2010), de Saskia Sassen. Para ajudar a repensar os desafios para a produção acadêmica nas ciências sociais, cito o livro Impensar a ciência social: os limites dos paradigmas do século XIX (2006), de Immanuel Wallerstein.

    Howard Becker1 1 Respondeu em texto único.

    Sinto dizer que eu não sei responder a nenhuma dessas perguntas, pelo simples motivo de que não sei muito a respeito desse fenômeno, tendo tido contato com ele apenas no meu ambiente imediato (algumas quadras em São Francisco). Eu me sentiria meio bobo propondo respostas para essas perguntas dada a forma em que elas estão colocadas, em termos gerais e incentivando generalizações em escala global. Elas todas pressupõem um vasto conhecimento do que está acontecendo ao redor do planeta – ou, talvez, um entendimento teórico geral da sociedade em geral que automaticamente possa produzir suficiente conhecimento detalhado para responder a perguntas tão específicas.

    Eu não detenho esse tipo de conhecimento e, para ser sincero, não acho que mais ninguém o possua. Então essa é simplesmente mais uma instância de um erro comum no nosso campo: imaginar que você pode produzir conclusões sobre situações específicas sem saber nada sobre elas.

    Na melhor das hipóteses uma teoria pode sugerir onde procurar conhecimento detalhado suficiente para responder a essas perguntas a respeito de alguma situação específica; mas isso demoraria bastante tempo. Se todos começássemos agora a fazer observações detalhadas de um lugar específico, suas pessoas e organizações e suas respostas a esses eventos, e comparássemos nossas descobertas, teríamos o início de um estudo potencialmente interessante.

    Havia um campo muitos anos atrás chamado de estudos em desastres [disaster studies], cujos praticantes traçaram alguns primeiros caminhos nesse sentido, observando e entrevistando no entorno de situações como furacões, enchentes, incêndios etc. Acho que por fim o campo desapareceu. Talvez você possa escrever para o professor Kai Erikson, na Universidade de Yale, que estudou uma enchente desastrosa nos Estados Unidos há muitos anos.

    Jacob Carlos Lima

    1. Sem dúvida. A teoria sociológica tem acompanhado e contribuído para o debate sobre as mudanças no capitalismo desde seu surgimento enquanto disciplina. Do industrialismo e suas consequências na estruturação das classes, aos conflitos sociais, às ideologias, às crises políticas, guerras e pandemias, situações essas que sempre estiveram, de alguma forma, interconectadas. Podemos ilustrar tratando o contexto da Primeira Guerra Mundial, marcado por revoltas, revoluções, crises econômicas, violência política, ascensão de ideologias autoritárias, desigualdade social e o caráter mortífero assumido pela gripe espanhola, talvez a primeira pandemia globalizada. Um conjunto de transformações marcaram o século XX a partir de então, e a sociologia sempre buscou acompanhá-las, aprimorando seus instrumentais teóricos e conceituais. Entre elas, questões estruturais como: a luta de classes como substrato da dinâmica social, em suas distintas perspectivas teóricas, negando-a ou afirmando-a, e os grandes marcos do século: o socialismo, o nazifascismo, o estado de bem-estar social, o neoliberalismo, a globalização, as crises ambientais e o questionamento de modelos de desenvolvimento econômico marcados pela exploração de recursos não renováveis, os desastres do mundo físico e social; a hegemonia capitalista do final do século XX e início do século XXI, a revolução tecnológica representada pelo digital, a flexibilização da produção, dos mercados e do trabalho, que perde continuamente os direitos sociais conquistados; a precarização crescente da vida, as novas pandemias, sempre presentes, mais ou menos circunscritas. Podemos nos referir à meningite no Brasil dos anos 1970, encoberta pela ditadura, o HIV de caráter mundial, o ebola, a gripe aviária e outras, sempre vinculadas às mudanças ambientais e à persistência da desigualdade social. No contexto da atual pandemia, a mais virulenta dos últimos 100 anos, sociólogos e cientistas sociais do mundo inteiro têm buscado compreender os impactos do distanciamento social, das perdas humanas, das consequências econômicas, sociais e políticas acerca de suas duração, superação e convivência com novas situações. E têm contribuído para a análise da crise pandêmica que também é social, política e econômica, assim como para combater seus efeitos, que, embora atinjam todas as classes sociais, o fazem de formas diferentes conforme as estruturas sociais vigentes. O modo como Estados e governos enfrentam a pandemia, a informação da população, o descaso com o conhecimento científico, a saúde pública e a educação são exemplos de processos sociais complexos que a sociologia busca explicitar a partir de seu instrumental teórico e metodológico não estanque, sempre em movimento, indicando o caráter interdisciplinar do conhecimento sociológico e sua importância para a compreender a crise que vivemos.

    2. A sociologia do trabalho, como subdisciplina da sociologia, tem estudado as transformações sociais das últimas décadas e suas consequências sociais a partir das alterações nas relações capital e trabalho e sua tendência crescente de desregulação. Embora distinta nos diversos países, essa desregulação tem em comum a desvinculação dos contratos de trabalho dos direitos sociais dos trabalhadores, que passam a ser responsabilizados por sua própria reprodução social. Para as empresas, esses direitos significam taxas a ser recolhidas pelo Estado, consideradas um custo a mais para o capital. Assistimos então a uma precarização crescente do trabalho em termos de condições, jornadas e direitos sociais, instaurando um cenário de instabilidade e imprevisibilidade. Reformas trabalhistas e reformas dos sistemas previdenciários são a ponta do iceberg da precarização da vida social como um todo, marcada pelo risco, pelo imponderável, pela instabilidade e pela impossibilidade de um futuro minimamente programado. O aumento da exploração do trabalho vincula-se à exploração dos recursos naturais e à crise ambiental, decorrente de modelos de desenvolvimento econômico que ameaçam a vida na Terra, e as pandemias podem ser consideradas uma das suas consequências. E essa pandemia não atinge todos da mesma forma. Quando falamos em trabalho, estamos falando em classes sociais e em acesso a bens materiais e simbólicos que se vinculam à capacidade de o indivíduo prover sua subsistência. E essa capacidade é diferentemente distribuída em função das formas como as sociedades se organizam econômica, política e culturalmente. No capitalismo, a concentração de renda e de poder faz com que o acesso à riqueza social se distribua desigualmente, no acesso à vida e ao bem-estar social. O trabalho, a saúde e a educação nas últimas décadas, conhecidas como neoliberais, foram secundarizados em nome da rentabilidade do capital, e o resultado disso fica evidenciado pela atual pandemia e por sua virulência. Assim, a sociologia do trabalho auxilia na compreensão da pandemia no contexto geral da precarização da vida, no qual o trabalho mantém sua centralidade enquanto possibilidade de subsistência da população. Basta observar que, em meio a esta pandemia, o Congresso nacional discute mais uma reforma trabalhista como forma de desonerar empresas e retirar ainda mais direitos dos trabalhadores em nome da criação de empregos, falácia demonstrada na reforma de 2017, que apenas precarizou mais o já existente, sem brecar o crescimento do desemprego. Apesar de os dados evidenciarem o contrário, continua na agenda política nacional (e internacional) o debate sobre o que deveríamos privilegiar: a vida ou a economia. Isso tudo justificado ideologicamente como uma preocupação, que nunca existiu entre nossas elites empresariais: a fome e o desemprego. Numa conjuntura de pandemia, busca-se precarizar ainda mais a já fartamente precária vida da maioria da população.

    3. A pandemia está evidenciando a falência de uma proposta política e econômica, chamada de neoliberal, na qual o mercado prevalece frente à sociedade, e o Estado atua apenas para atender a interesses empresariais em nome do funcionamento da economia. O Estado como elemento regulador das relações capital/ trabalho, num momento como este, é fundamental para a coordenação das medidas de proteção social e de combate ao vírus, como tem sido amplamente reconhecido por governantes de diversos países e de distintas orientações ideológicas. Não basta dinheiro se não houver movimentos coordenados de combate à pandemia, os quais, sem sistemas públicos de saúde robustos, no entanto, têm dificuldade de dar conta do desafio. Discursos políticos de questionamento da saúde pública têm sido substituídos por outros evidenciando a necessidade de sua coordenação para mitigar as consequências. Por exemplo, o isolamento social como forma de evitar o colapso do sistema público de saúde. Recupera-se em amplos setores da sociedade a defesa da ciência – ultimamente percebida como supérflua – enquanto instrumento fundamental para combater a pandemia e a necessidade de investimentos contínuos na pesquisa como garantia de sobrevivência humana. Isso vai na direção oposta daquela pregada por elites toscas, políticos oportunistas limitados e mal-intencionados, encastelados no aparelho do Estado. A esses juntam-se profetas de uma religiosidade tacanha, que encontram soluções no achismo e em crendices, mas com forte apoio de uma população desinformada por uma mídia venal, comprometida com essas mesmas elites − além das fake news que se reproduzem nas redes sociais, disparadas por esses mesmos grupos. E isso não apenas no Brasil, mas em vários países do mundo, o que dificulta vislumbrar a vida social pós-pandemia. Afinal, os discursos de vários chefes de Estado sobre a pandemia reforçam a ideia de que o importante é recuperar a economia, mesmo que morram milhares. É o darwinismo capitalista que não sabemos como irá se manter ou se transformar após o período pandêmico. Algumas vozes mais otimistas apontam mudanças sociais e ambientais que indicam que nada será como antes. Efetivamente não será; falta, contudo, saber se as mudanças serão civilizatórias ou o seu contrário.

    4. Podemos elencar numerosas obras da sociologia para compreender o que está se passando, dos autores clássicos aos mais contemporâneos. Desde os pais fundadores da disciplina, Marx, Weber, Durkheim e Simmel, temos análises das crises e suas possibilidades de superação, embora de formas distintas. As classes e a desigualdade social e os conflitos decorrentes; a compreensão subjetiva dos processos sociais como orientação da ação; a importância da sociabilidade na estruturação dos comportamentos e suas implicações na vida social; a solidariedade social como formuladora de políticas sociais e de integração social. No século XX, estudos sobre ideologia, mídia e cultura indicaram a importância da superestrutura nas formas de manutenção da dominação social. Nesse sentido, podemos indicar autores como Adorno, Horkheimer, Benjamin e da Escola de Frankfurt, além de Gramsci e Althusser; os interacionistas da Escola de Chicago, como Becker e Gofmann, que tratam da forma como os indivíduos reagem a situações específicas flexibilizando posturas deterministas sobre comportamento individual e social, da estigmatização e dos preconceitos. Bourdieu e a síntese dos clássicos, na análise do contemporâneo, demonstrando a importância do habitus no comportamento social e sua estruturação, acompanhados por Elias analisando historicamente os processos civilizatórios e contraprocessos descivilizadores, o que nos permite situar o Brasil hoje. Os chamados pós-modernos (que dificilmente aceitariam essa classificação) que atualizam os clássicos e estudam a sociedade de risco, como Beck, introduzindo a questão ambiental e dos desastres, além de Sennett, Bauman, Habermas, discutindo o capitalismo flexibilizado e suas consequências na frágil, líquida, impermanente sociabilidade moderna, ideia que recupera a célebre frase de Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”. Isso para ser breve, mas que indica como a sociologia dispõem de instrumental teórico e metodológico em permanente renovação, sem descuidar dos clássicos que evidenciam seu caráter enquanto clássicos em sua permanência, relida, reinterpretada. A sociologia, enquanto ciência, surge da crise e tem nela seu objeto permanente, que exige da disciplina um renovar-se constante. A rapidez das transformações sociais a partir do final do século XIX exigiram um conhecimento sistemático das relações e conflitos sociais, do modo como se estruturam e são percebidas pelos diversos atores sociais. O século XX foi, de forma permanente, palco de revoluções sociais, políticas, culturais, econômicas, científicas e tecnológicas por meio de guerras, desastres, conflitos, revoluções. A sociologia e suas várias subdisciplinas acompanham essas transformações, analisando suas consequências: do crescente desequilíbrio marcado pelo aumento do efeito estufa, pela queima das matas e de combustíveis fósseis até as pandemias que vão aparecendo e se alastrando num mundo no qual tempo e espaço se comprimem, distâncias desaparecem, e as mobilidades aumentam vertiginosamente. Da mesma forma que acompanha utopias sociais, seus sucessos e fracassos, a sociologia observa e denuncia o autoritarismo político permanentemente à espreita; a precarização da vida e o aumento exponencial da desigualdade social; os fundamentalismos religiosos que ora parecem que vão desaparecer, ora reaparecem de forma renovada em busca de um reencantamento do mundo; o ressurgimento de um conservadorismo cultural que pensávamos superados. Enfim, a sociologia como conhecimento científico sistematizado evidencia a sua importância na compreensão da crise sanitária, social, econômica e política que se espraia, contando para tanto com um referencial teórico e metodológico que possibilita contribuir significativamente para o entendimento de suas várias dimensões e possíveis desdobramentos.

    Jeff Hearn

    1. A teoria sociológica já esteve em algum momento equipada para entender e explicar fenômenos: bem, provavelmente não. Isso deriva em parte do reconhecimento das limitações da “ciência”, da ciência social e da sociologia, e é em parte uma questão do trabalho entre barreiras disciplinares. Nesse sentido, eu faria uma recomendação contra o imperialismo disciplinar e um apelo pela humildade disciplinar. Com a covid-19, a disciplinaridade está problematizada, e a inter e a transdisciplinaridade parecem especialmente apropriadas, conforme ressaltado por muitos estudos feministas e pós-coloniais, e mesmo por nossas preocupações, interesses, especialidades e expertise sociológicos especificamente disciplinares.

      A covid-19 força a atenção não apenas para o social e o societal, mas para teorias sociológicas que abordam o macro, global, transnacional, transocietal. Talvez, acima de tudo, uma sociologia histórica de longa duração que incorpore um entendimento disciplinar da centralidade da crise (Bergman Rosamund et al., The case for interdisciplinary crisis studies [Uma defesa dos estudos de crise interdisciplinares], Global Discourse, 2020) seja necessária para compreender e explicar “o fenômeno”. Pandemias e pragas obviamente já ocorreram antes (e provavelmente ocorrerão novamente), então, aprender sociologicamente com a historicidade e os processos históricos, como no caso da pandemia de influenza de 1918 que matou entre 20 e 50 milhões de pessoas, é necessário. Três diferenças atuais, no entanto, são a mobilidade aumentada, ainda que por razões muito variadas; as tecnologias de informação e comunicação; a expansão massiva da ciência e da medicina.

      Além disso, o fenômeno da covid-19 é tão ubíquo, que parece favorável à abordagem por um multiperspectivismo diverso na teoria sociológica, em vez de uma posição teórica particular. A covid-19 parece levantar questionamentos em todas as esferas da vida e da morte, tanto na sociologia como para além dela. A penetração do fenômeno em sua forma e efeitos abrange, por exemplo, da agência à institucionalização, à invisibilidade do poder, aos direitos humanos, às relações entre humanos e animais e humanos-na-natureza, de maneira que um inacabamento relativo ao que eu chamaria de sociologia total se aplicaria ao fenômeno.

      Outro problema é que a maioria dos estudos sociológicos não está direcionada para fenômenos biológicos, como a covid-19 enquanto vírus, embora alguns abordem suas consequências sociais em diferentes sociedades. Mesmo com o forte desenvolvimento global de sociologias do corpo, da medicina, saúde e doença, e mesmo da HIV-aids (do “sexo seguro” à “sociabilidade segura”), não é comum que a teoria sociológica se engaje com o conhecimento detalhado das ciências médicas ou naturais, com o conhecimento aprofundado dessas ciências. Esse é mais um incentivo à transdisciplinaridade.

    2. A maior parte das áreas de pesquisa em sociologia pode contribuir para o exame de dimensões da covid-19. Minhas próprias áreas de interesse incluem idade, gênero, sexualidade, violência, TICs, organizações, processos transnacionais; todas essas e outras são relevantes, além de afetadas e desafiadas pelas consequências da covid-19.

      Vou dar alguns exemplos. Em primeiro lugar, relações etárias são parte central de processos sociais inseridos na pandemia. É difícil imaginar a análise social de ocorrências globais e/ou locais da covid-19 sem a discussão sobre idade – não enquanto propriedade individual fixa ou “idade avançada”, mas como divisão social e relação social que constrói alguma autoridade relativa a adultos e ao poder adulto. Existem óbvias variações na regulação da idade cronológica (65, 70 etc.) em diferentes países, assim como processos sociais mais amplos, implicados na adoção do distanciamento social ou na valoração diferencial das mortes de diferentes grupos etários. Tendo terminado recentemente o livro Age at work (Hearn & Parkin, Sage, 2020) com minha coautora de 83 anos, Wendy Parkin, esses problemas sociais agora me parecem óbvios, como o da “vida ativa após a morte” [living after life] dos mais velhos, e a organização da morte e do pós-morte. Nós percebemos como o pós-morte e sua organização podem ser vistos como um vírus metafórico, ativado em “vida” pela própria morte. Idade e relações etárias precisam se tornar uma parte regular, desde que problematizadas, da análise sociológica.

      Em segundo lugar, perspectivas feministas e de gênero sobre a covid-19 são essenciais, talvez de forma mais visível no impacto do isolamento doméstico (nos locais em que as pessoas têm casas) sobre as relações de gênero e a divisão sexual do trabalho no sistema de saúde. São assuntos-chave nessa discussão o peso maior do care, cuidado e trabalhos de cuidado sobre as mulheres, além dos assustadores aumentos na violência contra mulheres e na violência entre parceiros íntimos, e também em diferentes formas do gênero no poder estatal e governança, em termos de liderança nacional e internacional masculina e feminina.

      Isso leva a uma terceira área, a sociologia das organizações, uma vez que ambientes de trabalho e outras formas de organização são transformados pela dispersão de espaços, locações e lugares organizacionais, e a casa se torna um local de organização intensiva em conhecimento. Todas essas áreas precisam ser consideradas sob a dialética entre local e transnacional.

    3. Essa questão se relaciona com a primeira. Ela me lembra da importância da historicidade ao mesmo tempo em que nos leva ao mundo da futurologia e da sociologia do futuro. É necessário colocar mais ênfase na orientação para o futuro em sociologia e no pensamento sociológico sobre o futuro, considerando implicações e cenários societais e a velocidade de suas mudanças; passei a ficar mais convencido disso com a idade, mesmo que orientações históricas e para o futuro venham sendo desvalorizadas em algumas tendências sociológicas recentes.

      Ao mesmo tempo em que muitas crises (trans)societais levaram a transformações subsequentes, muitas não o fazem. A covid-19 aprofundou antigas desigualdades, como os impactos maiores sobre os pobres, a classe trabalhadora, os negros, pessoas de minorias étnicas, migrantes e refugiadas, e trouxe outras desigualdades, entre por exemplo, os que podem e os que não podem se isolar ou se mudar; os mais e os menos vulneráveis ao vírus. Essas divisões não desaparecerão facilmente.

      Três exemplos de uma mudança mais ampla dizem respeito, primeiramente, a como a pandemia afeta as relações complexas entre nacionalismos (nações) e transnacionalizações (transnações). O poder tanto dos Estados-nação quanto das corporações transnacionais pode ser simultaneamente fortalecido: no primeiro caso, aparatos de vigilância, (ab)usos estatais da ciência e populismos podem se institucionalizar; no segundo, corporações globais e capitalismo de vigilância (Zuboff, The age of surveillance capitalism, 2019) podem esmagar pequenos negócios. Esses processos promovem elites sociais específicas dominadas por homens, com centros transnacionais dispersos (Hearn, Vasquez del Aguila & Hughson, Unsustainable institutions of men, 2019), e formas emergentes de “nacionalismo transnacional” e “transnacionalismo nacional(ista)” nas visões de mundo e sentimentos.

      Em segundo lugar vêm a forma, a substância e as contradições da sociabilidade, com o incremento do individualismo e a possibilidade de novas solidariedades. A diminuição do contato físico pode ser acompanhada por um senso maior de communitas, e categorizações com fronteiras menos definidas da/na interação, amizade, vizinhança, sexualidade, casamento, família, organização, política, divisões sociais, e mesmo os sentidos profundos do social e da socialidade. Individualismo privatista e orientação para a família, communitas pública, o Estado e corporações transnacionais podem ser todos estranhamente reforçados.

      Em terceiro lugar, e ligada a isso, está a normalização acoplada e generalizada da vida digital. A pandemia pode ser um meio para a tecnologização, automação e descartabilidade do humano. O Hikikomori não é mais uma forma social minoritária, e a turvação de fronteiras entre on-line e off-line não é mais território exclusivo dos mais jovens, mas algo bem conhecido em várias gerações.

    4. Conforme apontado no que diz respeito à segunda questão, penso que a maior parte das áreas de pesquisa em sociologia pode contribuir para a compreensão e o diálogo sobre esses desafios. O trabalho da sociologia feminista de/pós-colonial, histórica e orientada para o futuro é especialmente importante, assim como a transversalidade entre disciplinas, seja isso conceituado como pensamento interdisciplinar, transdisciplinar ou pós-disciplinar.

      Em termos de textos ou gêneros textuais mais específicos, há muitos que são de utilidade. A pandemia me fez retornar a um interesse de longa duração sobre os debates acerca das relações de produção e reprodução. Em resumo, a frequente priorização, na sociologia, da economia e produção sobre a reprodução e capacidade geradora da sociedade, nos sentidos mais amplos, precisa ser questionada. Compreensões mais dialéticas e mesmo mais sutis e complexas das relações econômicas, de produtividade e geração de bem-estar são necessárias, como se pode ver durante a pandemia na questão envolvendo a segurança corporal humana e a “segurança produtiva” da economia. Isso me lembra de como esses assuntos apareciam em algumas agendas de diversos textos feministas da antropologia crítica, sociologia e ciência política no final dos anos 1970 e início dos 1980 (como em O’Brien, The politics of reproduction, 1981; MacKintosh ‘Reproduction and patriarchy’, Capital and Class, 1977; Edholm, Harris e Young ‘Conceptualising women’, Critique of Anthropology, 1977). No meu modo de ver, essas perspectivas se ligam com muitos textos e debates de/póscoloniais, de Fanon (The wretched of the Earth, 1961) a Mbembe (‘Necropolitics’, Public Culture, 2003). A abordagem desses tipos de questões complexas precisa de cooperação transnacional “norte-sul” de pesquisa e colaboração entre cientistas sociais e de outras áreas, e não de nacionalismo metodológico. Esse não é um ambiente para o comportamento altamente individualista, egoísta, nacionalista e mesmo agressivo, opressor e francamente antifeminista de alguns cientistas (sociais e de outras áreas). O trabalho do International Panel on Social Progress (IPSP) é uma tentativa recente de grande escala de cooperar transversalmente passando por várias disciplinas e tradições de maneira colaborativa, envolvendo mais de 300 cientistas sociais. Nesse trabalho, a necessidade de lidar com desacordos entre escolas e disciplinas de maneira apropriada, e de humildade, respeito, racionalidade crítica e da possibilidade de concordar em discordar está em primeiro plano (Rethinking society for the 21st century: report of the International Panel on Social Progress, 3 v., 2018).

    João Marcelo Maia

    1. É difícil falar sobre sociólogos e cientistas sociais como uma categoria homogênea dotada de capacidade única de resposta, mas, ao menos no caso brasileiro, vejo um esforço tanto das associações de área (caso da Anpocs, que tem editado boletim sobre ciências sociais e coronavírus) como de centros de pesquisa e instituições (Cebrap, Iesp etc.) para produzir espaços de debate sobre os temas relevantes. O timing das nossas pesquisas empíricas, entretanto, é outro (aliás, como fazer trabalho de campo e entrevistas atualmente?), o que explica a ênfase em análises de conjuntura e prognósticos sobre possíveis consequências político-sociais.

      Acho que a teoria sociológica terá dificuldades para lidar com a questão por dois motivos. Primeiro, porque a pandemia é um fenômeno global e altamente veloz, ou seja, a reflexão sobre ela terá que “seguir” arranjos sociopolíticos altamente instáveis e que desafiam a circunscrição do Estado-nação. Embora vários autores venham trabalhando com ideias de globalismo ou transnacionalismo, permanece um desafio rotinizar essa reflexão e operá-la empiricamente. Sem contar o eurocentrismo, que costuma transformar as experiências do norte global em modelos gerais para pensar qualquer questão, o que pode se refletir em teorizações que tomam os impactos do vírus nos Estados Unidos e na Europa como suficientes para generalização. Além disso, porque a pandemia mescla aspectos biológicos, tecnológicos, políticos etc., não sendo facilmente capturada pelo conceito mais tradicional de sociedade. Nesse sentido, talvez a antropologia da ciência esteja mais equipada para dar conta, mas parte significativa da grande teoria sociológica não debate com esse ramo das ciências sociais.

    2. Eu trabalho com história da sociologia e do pensamento social no Brasil, tendo feito também alguns trabalhos no campo da sociologia da ciência, embora reconheça que esta última não seja minha área de pesquisa especializada. De forma geral, os estudos sobre o pensamento social no Brasil podem nos ensinar muito sobre como lidamos com outras epidemias e como essas epidemias possibilitaram a emergência de novas formas de falar sobre o mundo. O que significa, por exemplo, pensar o Brasil a partir da ideia de doença? Quais os efeitos de discursos que se estruturam a partir de metáforas e analogias com o corpo? Como novos grupos intelectuais se legitimaram pela posse de algum conhecimento específico tido como científico e como eles moldaram o Estado brasileiro? Essas são algumas perguntas que foram trabalhadas por estudiosos do pensamento social, particularmente colegas como Nísia Trindade Lima, Marco Chor Maio, Gilberto Hochman, entre outros.

      Já a sociologia da ciência tem muito a dizer sobre um tema crucial para o mundo pós-pandemia – a geopolítica da produção de conhecimento –, caso esteja atenta à recomposição de arranjos entre centros e periferias globais e articule as práticas dos laboratórios e dos cientistas aos espaços de poder. Uma pergunta interessante: como os mecanismos de cooperação científica para a produção de remédios e vacinas são afetados pelas desigualdades entre Estados e entre comunidades de especialistas de diferentes países? Que novos arranjos transnacionais surgirão para efetivar uma política sanitária potencialmente global, e que interesses, grupos e ideias serão mobilizados? Essas questões demandam trabalho empírico, mas também um conhecimento da história das ciências sociais em contextos periféricos, nos quais emergiram interessantes reflexões sobre os nexos entre conhecimento, dependência e colonialismo.

    3. Essa é a pergunta de um milhão de dólares – caso o dólar continue sendo a moeda global de referência (risos). Uma primeira tendência que está se acelerando é a ampliação das técnicas empregadas pelos Estados para gerenciar os corpos e os movimentos de seus cidadãos. Se já nos acostumamos com câmeras de segurança e compartilhamento de dados digitais por grandes companhias, é bem provável que passemos a aceitar controles de temperatura em aeroportos e até mesmo maiores poderes dos Estados sobre nosso direito de ir e vir. Se essas técnicas pareciam a muitos estar associadas a regimes autoritários, é bem possível que se tornem parte do arsenal comum das sociedades usualmente classificadas como democráticas (que, diga-se de passagem, já fazem largo uso de técnicas de controle por meio de suas grandes companhias de comunicação privadas).

      Já uma mudança que me parece plausível diz respeito ao lugar da ciência na vida contemporânea. Refiro-me menos ao seu papel cotidiano na reprodução de nossas vidas, algo que nunca esteve muito em questão, e mais ao seu estatuto político, isto é, ao seu lugar nas deliberações coletivas sobre como nos organizamos. Como se sabe, vários países são atualmente governados por líderes de extrema-direita que menosprezam as instituições científicas e as próprias dinâmicas necessárias para a produção de conhecimento. Acho que a pandemia vai produzir um certo freio de arrumação nessa tendência de desprestígio da ciência como parte da conversa pública sobre a vida moderna, mas isso não significa que esse reposicionamento se dará em moldes democráticos (vide a tendência descrita acima). Afinal, é possível que surjam novos discursos de autoridade científica que legitimem práticas muito restritivas de direitos.

    4. Acho que todos precisamos ler os estudos sociológicos e antropológicos sobre ciência. Precisamos aprender a lidar com ambientes complexos que desafiam a separação entre sociedade e natureza, entre laboratório e política, algo que já vem sendo problematizado na antropologia há tempos, mas que não foi ainda absorvido plenamente na sociologia. Há um debate amplo sobre ciência e democracia que mobiliza autores diversos como Bruno Latour, Michel Callon e Harry Collins, e que diz respeito ao modo como experts, “leigos” e demais agentes se engajam em coalizões e controvérsias públicas que mobilizam o conhecimento científico de diferentes modos. Esse debate sobre as potencialidades e os limites da ciência são fundamentais para nos orientarmos no nevoeiro atual e precisam ser incorporados pelos cientistas sociais que não atuam no campo específico dos estudos sobre ciência e tecnologia – como eu mesmo.

      Também acho que precisamos reabrir a tradição dos estudos científicos feitos no chamado sul global, em especial as obras e os autores que analisaram as desigualdades globais modeladoras das trocas científicas, mas que não impediram a emergência de práticas autônomas de produção de conhecimento. No caso latino-americano, nomes como Hebe Vessuri e Pablo Kreimer vêm investindo há tempos nessa direção. Mais recentemente, uma coletânea bem interessante que sintetiza muitas discussões feitas no nosso continente sobre criação científica e condição periférica é Beyond imported magic: essays on science, technology, and society in Latin America, organizada por Eden Medina, Ivan da Costa Marques e Christina Holmes (MIT, 2014). Como indica o próprio título, a discussão proposta questiona a ideia da periferia como uma simples receptora de conhecimentos gerados nos grandes centros, apontando para formas de inovação locais que engajaram diversos tipos de atores sociais. Esse tipo de discussão será cada vez mais atual, em especial à luz dos novos equilíbrios de poder produzidos pela emergência da China na política sanitária global.

    José Cláudio Souza Alves

    1. Sim, a teoria sociológica vem crescendo na sensibilidade com relação a novos e diferentes temas sociais, formulando abordagens mais complexas, voltandose para os grupos sociais mais vulneráveis aos efeitos da pandemia, isto é, os expropriados pelas classes dominantes do modelo capitalista: moradores de periferias e favelas, negros, indígenas e grupos étnicos segregados, imigrantes, desempregados, encarcerados, habitantes de áreas degradadas ou contaminadas por empreendimentos públicos e privados, bem como os movimentos sociais, movimentos sindicais e partidários por eles organizados. O avanço do modelo neoliberal associado a governos de extrema-direita somou ao desmonte histórico das áreas da saúde, educação, seguridade, segurança e dos direitos humanos discurso e ação marcados por dissimulação e mentira, prejudiciais à luta contra a pandemia e que expõem os mais vulneráveis à contaminação e à morte, numa escala mais ampla da necropolítica do Estado. Sociólogos e cientistas sociais estão mergulhados em reflexão e prática conectadas à vida desses mais frágeis, o que permite um conhecimento capaz de identificar as lacunas, as fragilidades e os comprometimentos das políticas de proteção e a continuidade das desigualdades e injustiças. Do lugar social que ocupam podem contribuir de forma ímpar na formulação de respostas mais eficazes no controle da pandemia e na redução dos efeitos mais graves na vida dos mais desassistidos. Geram um conhecimento solidário e protetor, questionador das condições sociopolíticas que favorecem o contágio e mascaram a dimensões do não cuidado e negligência com a vida dos desamparados, porque desinteressantes para os donos do poder político e do capital. Produzem, portanto, o sequenciamento genético das práticas sociais subjacentes à pandemia sinalizando os indicadores sociais que revelam os vetores de contágio e as respostas sociais e políticas necessárias ao fortalecimento do sistema imunológico dos grupos coletivos que foram desalentados pelo sistema e deixados à própria sorte.

    2. Os estudos sobre grupos de extermínio e milícias vêm mostrando a formação de microestados de exceção, organizados pelo próprio Estado, mediante o controle militarizado de territórios. Neles, agentes públicos de segurança passam a regular e monopolizar vários mercados de bens e serviços: terrenos, imóveis, água, gás, acesso clandestino a sinal de TV e internet, taxas de segurança dos comerciantes e acesso a consultas e exames médicos em hospitais públicos, entre outros. Matadores e milicianos, a partir desses empreendimentos, consolidam trajetórias políticas bem-sucedidas, por meio do controle das votações dessas regiões. Por se tratar de favelas e periferias de grandes metrópoles, ali se encontram os grupos sociais mais vulneráveis à pandemia, em decorrência do sistema de saúde mais precarizado, do fluxo de relações manipuladas por grupos criminosos com suas conexões políticas e do favorecimento daqueles vinculados a eles. É nesse ambiente que cresce a subnotificação de mortes causadas pela covid-19, pela não realização de testes e o fornecimento de laudos médicos atribuindo à insuficiência respiratória a causa da morte de um número crescente de pessoas. Há, portanto, uma relação direta entre a atuação de grupos de extermínio e milícias na manutenção das áreas socialmente mais desprotegidas e atingidas pela pandemia. Desses grupos também parte a pressão política para o fim do distanciamento social e a volta ao funcionamento do comércio, a fim de voltarem a cobrar taxas de segurança dos que não estão abrindo seus negócios. A pandemia reconfigurou o funcionamento dos mercados criminosos dos grupos citados ao mesmo tempo em que vitima mais duramente os que são subjugados por eles. Essa contradição está no cerne das relações sociais brasileiras atravessadas pela pandemia e que determinam sua amplitude, os que serão vitimados, os que serão beneficiados e fortalecidos politicamente, bem como o futuro da construção de políticas públicas capazes de minimizar os danos.

    3. As mudanças sociais, políticas e culturais produzidas pela pandemia ainda estão se processando e dependem das respostas que os diferentes grupos sociais estão elaborando. Se, por um lado, há ações de solidariedade e ajuda aos mais vulneráveis, por outro existe também a negação dos efeitos perversos na vida dos mais desprotegidos. As respostas dos governantes nesse cenário têm sido decisivas. No caso brasileiro, a atuação do governo de extrema-direita de Bolsonaro e seus apoiadores acentua a tendência de abandono e desamparo dos mais afetados, lançados no dilema de ter que trabalhar para sobreviver e, com isso, se expor à contaminação. A negação da pandemia, a manipulação dos dados, o discurso da inevitabilidade das mortes e a utilização política dos seus efeitos para ameaçar opositores com soluções autoritárias aprofundam os ataques às instituições democráticas presentes no governo, com destaque para o não investimento nas universidades públicas e na ciência e o desmonte dos órgãos reguladores de proteção à saúde e ao meio ambiente dos mais pobres. A sociedade pós-pandêmica vai delineando traços reforçadores da segregação de vários grupos sociais sacrificados em nome da obtenção de ganhos de grandes grupos econômicos e do projeto político dos que garantem esses ganhos à custa de morte e sofrimento. Grupos criminosos e ilegais, emergentes na prática e no discurso dos atuais governantes do país, ampliam sua presença, alçando projetos políticos mais amplos, em nome do fim da violência que eles próprios fomentam. A ignorância pela desinformação se torna instrumento importante para dissimular intenções e permitir a manipulação das opiniões pelo atual governo, possibilitando a aprovação de medidas nefastas para a sobrevivência dos setores mais indefesos, eles próprios enredados na produção de mentiras e na sustentação dos seus algozes, travestidos em heróis. O cenário é, portanto, de continuidade no agravamento das contradições sociais atualmente vividas.

    4. As obras de Mike Davis, com destaque para Cidade de quartzo e Ecologia do medo, nos permitem entender os processos urbanos de segregação e poder a partir do medo, da violência e das disputas sociopolíticas. A obra Coronavírus e a luta de classe atualiza as reflexões de Davis juntamente com as análises de David Harvey, cuja obra sobre os movimentos sociais e lutas urbanas recentes vem se destacando, além de agregar autores como Alain Badiou, Slavoj Zizek, Alain Bihr e Raúl Zibechi. A obra de Giorgio Agamben sobre o homo sacer, principalmente o livro Estado de exceção, nos ajuda a compreender a construção atual de uma dimensão totalitária e assassina do Estado dentro da democracia e as implicações no fortalecimento dos grupos de extermínio e milícias, predominantes nas periferias e favelas. O livro Cidades sitiadas: novo urbanismo militar, de Stephen Graham, aprofunda as dimensões geográficas e espaciais que passam a dominar o mundo, em que aqueles identificados como inimigos são sujeitados pelas políticas de segurança, traduzidas no caso brasileiro pela lógica da execução sumária. Desnecessário dizer que é nessas áreas que o coronavírus congraça. Achille Mbembe em Necropolítica aprofunda a percepção da política de extermínio do Estado, incluindo a dimensão do genocídio racial praticada contra negros. As políticas de desproteção social dos negros e de favorecimento de seu contágio e morte, em áreas segregadas, sem serviços de saúde nem acesso a recursos, seriam uma atualização que a pandemia traz para essa necropolítica. Por fim o livro de Charles Tilly Coerção, capital e Estados europeus e o artigo de Juan Albarracín “Criminalized electoral politics in Brazilian urban peripheries” aprofundam as percepções de como o crime organizado se enraíza na estrutura social e passa a controlar populações e territórios, algo decisivo na atual etapa da pandemia no Brasil.

    José de Souza Martins

    1. É possível encontrar, na teoria sociológica, pistas para a pesquisa e a interpretação das causas e dos desdobramentos sociais de pandemias, de desastres naturais, de guerras ou de intervenções dramáticas na realidade social. São ocorrências que provocam grandes rupturas e transformações na estrutura social. Essas rupturas acarretam verdadeiras convulsões sociais, que afetam o que é próprio de uma sociedade e de uma época. É o que já deve estar ocorrendo em diferentes sociedades. Mentalidades, valores, crenças tornam-se obsoletos e descabidos da noite para o dia ou, no mínimo, estão sendo colocados entre parênteses. A sociabilidade que daí resulta alimenta a consciência crítica e a revisão de modos de ser.

      Justamente nessa pressuposição tem cabimento, mais uma vez, retornar aos clássicos, que são clássicos justamente porque desenvolveram métodos e linhas de interpretação sociológica que já contêm abrangência para a análise do repentino, do inesperado, do surpreendente. É claro que a sociologia é também datada, mas não é tópica. Ela renasce quando se depara com o advento de ocorrências cujo tempo diverge de sua temporalidade de origem. Na linhagem da sociologia de Durkheim e na de Marx as rupturas fazem parte da temática teórica essencial. Ainda que concebidas no marco do teoricamente previsível. A anomia é patológica. A contradição não é um defeito. São manifestações de “normalidade” da dinâmica social e do processo histórico. A crise da sociabilidade descontinuada pelo abrupto da pandemia já está lá. É claro que são rupturas cuja temporalidade é muito diversa da temporalidade própria de eventos como o que está ocorrendo agora. Tanto no plano “do durante” quanto no plano “do depois”. Não há, em casos assim, orientações prontas, como há em relação ao socialmente previsível do repetitivo e do irruptivo. Estamos, aqui, tratando de ocorrências que não se situam no âmbito das teorias do repetitivo, nem das da transformação social, mas de ocorrências socialmente imprevisíveis, inesperadas e abruptas, que criam estruturas sociais temporárias em função da urgência e da demanda de interpretações sociológicas de emergência.

    2. São várias as situações sociais novas, decorrentes da pandemia, provisórias e temporárias, que desafiam a competência dos pesquisadores: o confinamento, nele o isolamento; a internação hospitalar, sem a presença da família; a segregação na UTI; a solidão na proximidade da morte; a restrição de presenças em velórios e sepultamentos, o que fere costumes e tradições. A morte sem sentido porque os costumes caíram no rol do proibido pelas autoridades sanitárias ou pelo medo. Sobretudo a enorme repercussão mutilante e dessocializadora que tudo isso tem na vida social dos grupos de referência da vítima. Alguns pesquisadores poderão experimentar na carne essas situações. Outros poderão experimentá-las no respectivo grupo familiar ou no grupo de referência. Outros, ainda, na observação própria ou alheia de dolorosas situações de ausências repentinas e definitivas.

      Uma providência que sociólogos e antropólogos deveriam adotar, nessa hora, é a de pedir ao maior número possível de pessoas conhecidas e do próprio relacionamento a elaboração de um diário do confinamento. Sem lhes dar instruções prévias, para preservar o próprio modo de observar e de eleger os temas da observação de quem narra. Um caderno de impressões e confissões. Este é um momento propício para se revalorizar a observação participante, do tipo que praticava Oscar Lewis, sem os abusos que, depois, se tornaram conhecidos. O pesquisador fazer-se observador próximo ou, mesmo presente naquilo em que a circunstância o envolve diretamente, como o vírus “dentro de casa”. Observar a realidade a partir “de dentro” ou de testemunhas que estão vivendo a experiência da doença no interior do grupo social por ela alcançado. É nessa situação que pode ser documentada a consciência crítica e revisora da sociabilidade costumeira, aquela que a enfermidade invalida.

    3. A pandemia anula a validade, ao menos temporária, de boa parte da pauta de conduta das relações sociais cotidianas. Todos estamos sendo ressocializados nas referências de uma estrutura social provisória, de emergência, referida a uma cultura de confinamento. A sociabilidade reduzida ao espaço escasso, das poucas e pequenas coisas. Nesse sentido, estamos sendo também dessocializados. “Acordaremos” lá adiante para descobrir que, além de parentes, também amigos e conhecidos já não estão mais aqui. A trama de relações sociais será outra dominada pela figura do ausente. Teremos que conhecê-la e interpretá-la para nos situar socialmente. Será um tempo de busca e inovação.

      Estamos bloqueando valores e referências que nos orientavam na vida cotidiana e que já não nos servem. Ao fim da crise, já teremos tomado alguma consciência individual e coletiva dos imensos rombos que a doença terá deixado no modo como a sociedade estava organizada. A família será outra, toda uma geração de crianças e adolescentes sairá dela socialmente mutilada e desafiada a inventar novos parâmetros de conduta, a religiosidade será revigorada, o cenário religioso mudará, a ciência ganhará espaço na apreciação do homem comum, os hábitos alimentares serão alterados, a literatura será valorizada, o jardim doméstico voltará a ser valorizado, brincar terá outras características, crianças descobrirão que havia pais ocultos na casca modernosa da paternidade, as profissões dos simples serão valorizadas: enfermeiros, faxineiros, coveiros, motoqueiros, entregadores de comida. Mapa que acaba de ser preparado pela Prefeitura de S. Paulo mostra que o índice de mortes por total de infectados é muitíssimo maior do que no bairro mais rico da cidade. O vírus subversivo expõe as tripas da sociedade de classes: a morte é um instrumento das desigualdades sociais.

    4. Aqui, as ciências sociais abandonaram a prontidão para o inesperado de situações como a da pandemia. Cito algumas obras que podem ser úteis. Uma referência bibliográfica relevante no estudo sociológico de enfermidade contagiante, e do confinamento decorrente em sanatório, é o livro de Oracy Nogueira, Vozes de Campos do Jordão, sobre tuberculosos. Ele próprio foi tuberculoso na juventude, tratado num sanatório de São José dos Campos. Outra é o estudo de Florestan Fernandes sobre a sociabilidade no campo de batalha, com base no depoimento de Paulo Duarte, que participou da Revolução Paulista de 1932. É um dos capítulos de Mudanças sociais no Brasil. No plano teórico mais amplo, dois livros de Ágnes Heller: Para mudar a vida e La théorie des besoins chez Marx; neste último as reflexões sobre as necessidades radicais. O tema já havia aparecido, no contexto teórico apropriado, no livro de Henri Lefebvre, La proclamation de la Commune, um estudo sobre o cotidiano da Comuna de Paris. As necessidades radicais como necessidades de transformação social no corpo da repetição, no meio da guerra civil. O livro de Harold Garfinkel Studies in etnomethodology é dos mais indicados pelo método do autor de provocar estados de anomia e observar a reação da “vítima” no restabelecimento da ordem. Esses livros podem definir uma linha de interpretação sociológica da pandemia na peculiar circunstância brasileira. Alguns dos livros de Erving Goffman virão para o primeiro plano no estudo da pandemia: Manicômio, prisões e conventos, Estigma e A representação do eu na vida cotidiana, referências para compreensão da sociabilidade decorrente do confinamento e da técnica autodefensiva da manipulação de impressões para definir identidade. A sociologia de Alfred Schutz e Thomas Luckmann, em The structures of life-world, faz a ponte entre a compreensão weberiana e a vida cotidiana, que é o âmbito no qual a epidemia faz seus maiores estragos.

    José Maurício Domingues

    1. Sim, a teoria sociológica está equipada para responder ao fenômeno, incluindo sua parceria com vários campos da sociologia. Afora vagas reflexões mais gerais sobre o papel da agência, das instituições, da justiça etc., que podem ser levantadas, três áreas devem ter destaque. Primeiro, a discussão sobre riscos e ameaças, que se encontra na um tanto ou quanto difusa conceituação de Ulrich Beck, que não deixa de ser por isso altamente sugestiva. Seu cruzamento com a sociologia da saúde (e da doença), assim como sua historiografia, pode render bastante. Além disso, o papel em especial do Estado neste momento e a situação que o capitalismo vive implicam uma mobilização da sociologia política e da sociologia econômica/economia política, posto que o primeiro é o principal responsável pelo enfrentamento da crise, e o segundo certamente evoluirá a partir dela. Outras áreas, como aquelas que dizem respeito às desigualdades sociais ou às relações internacionais, são igualmente importantes.

    2. Em minha área específica é esta a abordagem que estou buscando desenvolver: em face dos riscos globais em termos de saúde, como enfrentar essas questões, agora além do mais transformadas em ameaça concreta pelo coronavírus e a covid-19? Quais são as capacidades do Estado para tratar disso, comparadas por exemplo com o mercado e as redes de solidariedade? Quais os discursos que se desdobram neste momento – segurança, risco, direitos? Tudo isso se põe, ademais, nos quadros da governança global da saúde e das possibilidades de seu fortalecimento – ou não –, frente a tendências nacionalistas.

    3. É preciso cuidado para não exagerar os efeitos da pandemia – outras não provocaram mudanças tão significativas. Mas creio que, apesar de conflitos nacionalistas visíveis, haverá uma tendência a maior cooperação global na área da saúde, assim como se põe a questão do público, da saúde, da proteção aos sem trabalho, do papel do Estado na economia. Se a primeira questão implica aprofundamento, apesar de tudo, de uma tendência em curso, a segunda faz uma inflexão no desenvolvimento do Estado – de qualquer maneira sempre forte e senhor de muitas capacidades – e das políticas sociais, e no modo como funciona o capitalismo. Este, além do mais, aprofundará os processos de oligopolização e automação, com uma possível deslocalização parcial da indústria da China em direção aos países centrais do capitalismo (o papel dos centros decisórios no capitalismo era, aliás, crucial para a teoria da dependência).

    4. As obras que tratam da questão do risco, do desenvolvimento do Estado e do capitalismo são muito relevantes nesse sentido.

    José Szwako

    1. Várias obras e escolas de pensamento nas ciências sociais vêm há décadas debatendo o risco potencial implicado nas relações entre tecnociência, capitalismo e seus efeitos no mundo. Ricas, essas reflexões raramente tendem a convergir. Sobrenome evidente aí é o de Beck, mas ao seu lado poderíamos citar aqueles que, na fronteira dos estudos ambientais com as humanidades, vêm defendendo uma ciência “pós-normal” ou aquelas denúncias e disputas mais fortemente mobilizadas ao redor do antropoceno. Não saberia dizer o quanto cada uma delas está equipada ou preparada para encarar tal desafio. Me parece, porém, e se não me engano quanto ao éthos das e dos cientistas no Brasil, que a resposta (prática e teórica) ao fenômeno deverá variar conforme a vocação institucional na qual cada pesquisa/grupo/laboratório se inscreve. Assim, enquanto alguns grupos, por sua vinculação institucional, estão mais próximos de chegar a conclusões das quais já dispunham antes da crise – repetindo um “eu avisei” em defesa do antropoceno ou contra a necropolítica ou ambos –, outros grupos, devido a tradições institucionais como, por exemplo, a da Fiocruz, poderão liderar a explicação da pandemia e seu combate.

      A primeira parte da questão faz notar o investimento hercúleo de cientistas sociais em seu esforço de tradução para um público maior. Diversos periódicos e blogs acadêmicos e várias associações de pesquisa, como a Anpocs, por exemplo, passaram a divulgar ensaios e insights de nossos colegas sobre a pandemia. Por um lado, esse investimento salutar abre uma senda até hoje pouco (ou quase nada) explorada por nós, cientistas sociais brasileiros, que diz respeito à divulgação científica e à democratização do acesso a nossos resultados e caminhos de pesquisa. Por outro lado, no entanto, essa ênfase atual nas tomadas públicas de posição não precisa ser lida como uma ruptura ou inauguração histórica. Não é a primeira nem a última vez que o contexto político nos interpela nos levando a tomadas de posição. E isso não significa que “tudo é político” nem traz, a meu ver, consequências epistemológicas dogmáticas do tipo “não existe neutralidade”.

    2. Minha trajetória de pesquisa está marcada por duas subáreas: movimentos sociais e história intelectual. Na primeira delas, a ênfase analítica recai sobre as formas de mobilização e suas interfaces com o sistema político mais amplamente. Nessa seara, me parece que a contribuição é dupla. Por um lado, as pesquisas podem averiguar em que medida os protestos – que, na crise, foram das ruas às janelas – se relacionam com os descaminhos do governo federal e como o estardalhaço das janelas se liga, ou não, à parafernália (des)informacional nas plataformas e mídias virtuais. Por outro, as pesquisas sobre movimentos podem elucidar como, dada a política vacilante e conflituosa do Executivo federal, as associações locais e de moradores de bairros e favelas têm estabelecido, no combate à epidemia, conexões seja com universidades e institutos de pesquisa, seja com os governos municipais ou estaduais. Assim, há uma camada socioestatal (infrafederal) de análise que não se pode perder de vista. A variedade das alianças e tensões travadas entre prefeituras, organizações civis e associações empresariais pode mostrar que, mesmo na crise atual, os significados do “combate à pandemia” são disputados, no sentido de forjar e ampliar formas estatais de proteção, de voltar ao trabalho ou mesmo de negar a pandemia.

      Na outra seara, a história intelectual pode ser pensada e praticada no cruzamento da história política com as sociologias do conhecimento e das ciências. Nessa acepção cruzada e politizada, a história intelectual pode contribuir com o diagnóstico ideacional mais acurado do negacionismo e do anti-intelectualismo hoje vigentes no país. Quem são as organizações e lideranças das carreatas contra o isolamento preventivo? Quem são seus intelectuais, partidos e textos-chave? Quais, enfim, suas fontes ideológicas e bibliográficas? A história intelectual da pandemia, desta como de outras, é assim a história de suas formulações e disputas, das apostas e respostas político-intelectuais a ela.

    3. Não saberia dizer do futuro, mas sim das apostas. A existência de apostas – mais impensadas ou mais racionalizadas – é traço, em grande medida, inarredável da pesquisa. Isso não significa, porém, que tais apostas não possam ser passíveis de auto-observação e crítica de nossa parte. As futurologias de hoje, tanto otimistas como pessimistas, causam algum espanto porque nenhuma delas lida adequadamente com o peso de suas categorias e diagnósticos. Leio aqui e acolá que o futuro será do cuidado ou que viveremos um horizonte feminista, mas não vejo razões concretas para vislumbrar tais horizontes. De outro lado, lê-se que o cenário da pandemia teria confirmado diagnósticos hipercríticos e conexos como os da biopolítica, da exceção e da necropolítica. Outros ainda afirmam que chegou a vez do antropoceno, a sua revanche… O que tais exercícios de imaginação do futuro e de crítica do presente me fazem notar é o pouco rigor com que seus defensores lidam com suas expectativas de mundo projetando nele suas noções e pré-noções. No que diz respeito à sociologia histórica dos movimentos (em especial, revolucionários), há hoje poucas das condições para apostas em grandes processos de mudança social. Esse diagnóstico, é evidente, depende daquilo que se considera forças necessárias para a mudança histórica: elites rachadas, Estado com limitada capacidade repressiva e fiscal, conflito internacional, bem como alianças entre grupos outsiders e estabelecidos. Se alguns desses traços se fazem hoje presentes, eles infelizmente jogam, a meu ver, na contramão de uma interpretação da mudança histórica com sentido progressista ou emancipador, ao menos no caso brasileiro.

    4. Fundamental hoje é o recém-lançado Human extinction and the pandemic imaginary, do antropólogo médico Christos Lynteris. Nessa obra, o antropólogo propõe o que chama de imaginário pandêmico, com destaque para sua análise da figura do epidemiologista herói em recentes representações cinematográficas do fim do mundo e, ainda, para os discursos ao redor do super spreader, que podem e conseguem justificar não formas de vida desumana ou sub-humana, mas formas de subvida. Inspirado pela teorização de C. Castoriadis e por sua ênfase na tensão entre o instituído e o instituinte, Lynteris não fica, contudo, refém do catastrofismo melancólico dos ecoteóricos nem do pessimismo apocalíptico frankfurtiano.

      Outra obra preciosa para a compreensão do anti-intelectualismo e do negacionismo vigentes é The crisis of expertise, de Gil Eyal. O livro reconstrói a trajetória da noção de expertise para evidenciar que a sua “crise” é correlata à sociedade agonística, pós-guerra, na qual não são evidentes as linhas que afastam o leigo do expert e pelas quais são embaralhadas as redes de expertise. Não é, contudo, toda e qualquer ciência que é hoje contestada; são, antes, as ciências regulatórias (ou policy sciences), nas quais ação e julgamento se misturam, que encarnam os problemas “transcientíficos”, frente aos quais instituições de Estado irremediavelmente precisam agir lidando com a competição entre opinião pública, grupos de interesse e movimentos sociais. Destaque nesse livro para sua análise de casos de cientifização da política e de politização da ciência e, ainda, sua apropriação inspiradora do Habermas de Crise de legitimação.

    Karina Batthyany

    1. Sin lugar a dudas las ciencias sociales disponen de un conjunto teórico y metodológico muy importante para comprender el fenómeno actual. Por otra parte es imposible pensar respuestas a la emergencia sanitaria sin las ciencias sociales. La actual crisis sanitaria no puede ser comprendida sin sus dimensiones sociales, políticas, económicas, culturales. Pensar que la única dimensión es la biológica o la sanitaria es realmente un error. Se requiere en estos momentos de un trabajo multi y transdisciplinario para comprender a cabalidad el fenómeno de la pandemia, y esto requiere esfuerzos desde todas las disciplinas para desarrollar una perspectiva integral.

      Las ciencias sociales adquieren un papel protagónico en el diseño de las nuevas comunidades emanadas de la pandemia. Sus herramientas son fundamentales para orientar la toma de decisiones de los gobiernos, repensar políticas públicas estructurales y esbozar una propuesta colectiva a nivel nacional y regional. Como siempre, resulta necesario pensar en la vinculación entre la investigación, el conocimiento y la política para adoptar las mejores decisiones frente a los desafíos que presentan las diferentes situaciones sociales. Hay que prestar atención al discurso científico unilateral que, al mismo tiempo que puede orientar decisiones políticas acertadas en lo sanitario, también puede producir “ceguera epistémica” si no se incorporan otras miradas y saberes.

    2. Mi área de investigación está vinculada al bienestar social, el trabajo (remunerado y no remunerado) y los cuidados desde una perspectiva de género. Vaya si esta pandemia ha dejado en evidencia lo central que resultan estos temas en la crisis actual. Si hay algo que la crisis sanitaria ha desajustado son los modelos de vida a los que estábamos acostumbrados/as. Esta pandemia puso en evidencia lo que parte del feminismo viene considerando como central para repensar un proyecto que tenga a la vida en el centro: todos y todas somos interdependientes.

      La propagación del covid-19 y las medidas institucionales para producir aislamiento social que se están aplicando en la mayoría de los países, ponen en evidencia uno de los eslabones más débiles de nuestra sociedad: los cuidados. Las personas necesitamos de bienes, servicios y cuidados para sobrevivir. Los cuidados son relacionales e interdependientes, todos hemos precisado o precisaremos de cuidados en algún momento de nuestra vida y todos hemos cuidado o cuidaremos a alguien en las etapas de nuestro ciclo vital. La pandemia ha mostrado la importancia de los cuidados para la sostenibilidad de la vida y la poca visibilidad que tiene este sector en las sociedades y en las economías de la región, en las que se sigue considerando una externalidad y no un componente fundamental para el desarrollo ni un pilar del bienestar social.

      Un abordaje histórico al tema ha sido ignorar la centralidad del cuidado asumiendo que la incorporación de las mujeres al trabajo productivo redistribuirá esa carga por sí sola, cuando la evidencia nos muestra que esto se tradujo en una doble jornada laboral para las mujeres. Algo que conocemos desde los estudios de género y cuidados, es que la economía considerada productiva se sostiene en el trabajo del cuidado (no reconocido ni remunerado) aunque este sea en muchos casos invisible. Como sabemos en la región las mujeres realizan cerca del 80% del trabajo de cuidados no remunerado y son amplísima mayoría entres quienes se ocupan en el trabajo de cuidados remunerado, por tanto gran parte de los cuidados totales los ejercen las mujeres.

      En el marco de la crisis sanitaria, algunas de las medidas propuestas suponen un aislamiento en los entornos domésticos y la búsqueda de soluciones individuales por parte de los entornos familiares para el cuidado, soluciones individuales mediadas, por tanto, por los recursos de diversa índole que cada hogar tenga. Es un regreso al “puertas adentro”, donde cada quien deberá encontrar su solución y estas soluciones reproducen las desigualdades preexistentes. Es importante mencionar que el tiempo de las mujeres no se convierta, como ha sucedido a lo largo de la historia, en un factor de ajuste del que los Estados disponen para afrontar la crisis y los nuevos escenarios económicos.

      Para solucionar la crisis de cuidados necesitamos una nueva idea de gestión pública que entienda que la interdependencia de las personas es un hecho de la vida en común. La solución no pasa solamente por repartir más equitativamente el cuidado entre varones y mujeres a nivel individual, sino que su importancia y valor se reconozca y pueda ser provisto también en parte por la sociedad y con el Estado asumiendo su responsabilidad.

      Esto implica entre otros elementos construir una mirada alternativa sobre nuestro modelo de convivencia, mirada alternativa fundada sobre la irrenunciable igualdad real y no solo formal de varones y mujeres. Recuperar la dimensión política de la vida cotidiana parece un camino a transitar.

    3. Probablemente es muy pronto aun para responder a cabalidad esta pregunta. El péndulo oscila desde las voces catastrofistas que hablan del fin de la humanidad, a las que advierten que nada cambiará y que sólo es cuestión de tiempo y paciencia para volver a “la normalidad”. Lo más probable, sin embargo, es que enfrentemos un intenso proceso de transformación en el que las sociedades estarán obligadas a reconfigurar múltiples aspectos en el corto, mediano y largo plazo. Resulta claro que es hora de analizar la interdependencia, reciprocidad y complementariedad del trabajo político y del Estado con la producción de unas ciencias sociales que avancen para romper la reproducción de un conocimiento único y universal, que abonen a la reflexión crítica, que sean capaces de auto centrarse y, a partir de ello, elaborar categorías, conceptos e ideas que, situadas en la historia y las problemáticas locales, aporten a la producción de conocimiento con vocación nacional y regional. La pandemia ha permitido redescubrir los extremos que conviven en las sociedades. De la solidaridad, la generosidad y la empatía, al egoísmo, la xenofobia y el racismo. Existe hoy una emergencia de interpretación alternativa de la realidad, en donde la reflexión crítica y producción de conocimiento de los y las cientistas sociales resultan fundamentales para la construcción del futuro que deseamos.

    4. Me gustaría mencionar un par de obras relacionadas a mi área de investigación. En general los textos de Joan Tronto y particularmente: Who cares?: how to reshape a democratic politics y Riesgo o cuidado?.

    Kathya Araujo

    1. Sí y no. Sí: tenemos una tradición de pensamiento, un saber acumulado sobre procesos sociales de más de un siglo, una caja de herramientas que hemos ido perfeccionando, y un conjunto de problemas y límites que hemos ido haciendo visibles como primer paso para ir enfrentándolos. Nadie empieza de cero. El mundo social tampoco. La creación ex nihilo está fuera de las atribuciones de la modesta y muy humana sociología. No: hay momentos en los que la exigencia de revisión de los presupuestos es una obligación a la que debe responderse, y eso debe acontecer renovando saberes, tradiciones, herramientas y generando un nuevo acervo de problemas. Es el caso hoy pues la pandemia no solo toca y enferma y amenaza los cuerpos de los individuos, lo hace con el cuerpo social… ha trastocado la vida social y lo menos que puede decirse es que ha tenido un efecto traumático en ella. Pero la urgencia no puede obliterar el futuro. Debemos evitar el riesgo de hacer de la tarea sociológica una mera respuesta a la contingencia. En este contexto, una cuestión que me parece esencial es reconocer que el desafío fundamental no es solo la pandemia, sino el proceso en marcha del cual ella es el síntoma. Estamos en un momento de profunda transición (cuyo desenlace está aún abierto), pero las transiciones son lentas, tienen ritmos diferentes en diferentes momentos, no son lineales, y hay que poder acompañarlas analíticamente.

    2. Investigo desde hace mucho tiempo cuestiones relativas a los individuos y el lazo social, esto es, las modalidades históricas específicas en las que se ordenan las relaciones entre los miembros de una sociedad y que le dan una relativa organicidad y sustentabilidad a ésta. En ese contexto me intereso por las formas de individuación, los tipos de sujeto posibles y encarnados en la sociedad, pero todo ello principalmente en el contexto de su relación con el colectivo, por eso he investigado también sobre relaciones con las normas, autoridad, el funcionamiento de los principios normativos en la vida ordinaria de las personas, entre otros ámbitos. Desde esta perspectiva, respondo afirmativamente su pregunta. Me parece que una dimensión principal a comprender es, precisamente, la manera en que el mundo que viene exigirá de nosotros transformaciones en las modalidades en que se han ordenado estas relaciones entre individuos. Un ejemplo relevante es la pregunta por cómo resolveremos la tensión entre libertad y control en circunstancias en las que previsiblemente, como lo es hoy con la pandemia, la coordinación simultánea de grandes masas poblacionales sea un requerimiento permanente. De qué manera y con qué consecuencias esta nueva configuración exigirá (o no) releer la atribución de libertad a los individuos, la que ha fundado al menos normativamente nuestras sociedades; qué destino tendrá en este mundo que avistamos la idea la vida como valor fundamental e indiscutible; cómo imaginar la solidaridad en un mundo vertebrado por el problema de la sobrevivencia; de qué forma se resignifica la relación al colectivo en este contexto. La lista de interrogantes es muy larga y el tiempo que nos tomará responderlas también porque en tiempos de cambio lo que requerimos es ir acompañando los procesos y estos son de larga duración, como he señalado, pero en este contexto el estudio de las formas de recomposición del lazo social y también de las modalidades de individuación podrían contribuir de manera muy importante al esfuerzo de ir desentrañando lentamente la morfología que irá tomando el mundo que se avecina.

    3. La pandemia pone contornos más definidos al momento de transición en el que nos encontramos. Más que un hecho puntual es quizás el primer acontecimiento visible y reconocible dada su magnitud de una serie que vendrán y que van a terminar por darle contorno al mundo en el que deberemos vivir. Un mundo, como decía Beck, de amenazas globales, pero del que no sabemos a ciencia cierta en qué derivará. La historia, como ha sido reiterado, no es sino el resultado de disputas para darle significado y dirección a los acontecimientos, y me parece que eso es exactamente lo que enfrentamos. Ahora, yo creo que para encarar este desafío no ayudará la estrategia de usar la oportunidad para probar las teorías propias. La arena de la disputa requiere humildad y como decía Mills, ese salto que es la imaginación sociológica. Por ahora, mucho de lo que leo que producen los intelectuales va en la primera dirección… Creo que el mundo que viene es impredecible, porque nos guste o no, hoy más que nunca deberemos entender que estamos si no en el ojo del huracán sí en el de la historia. Todo parecería indicar, por supuesto, que deberemos recrear al mundo para hacerlo posible, y si eso es así, eso significa que se deberán poner en cuestión formas de producción, de distribución de las riquezas, los signos de status social, las formas de regulación, los principios normativos que nos acomunan… Ahora, si lo que viene serán ajustes que nos dejen en un paisaje similar (de injusticia o desigualdad, por ejemplo) o transformaciones que nos lleven a cambios profundos, es difícil saberlo. Si todo ello tendrá como resultado un mundo mejor, no hay nada que pueda garantizarlo. Dependerá del destino de las disputas que deberemos enfrentar. Solo una certeza: ellas serán de fondo.

    4. Pienso que un libro que nos puede ayudar a situar los desafíos que enfrentamos es el de Danilo Martuccelli, Les sociétés et l’impossible. Les limites imaginaires de la realité. Por mi cercanía con el autor, pensé que quizás no correspondería seleccionarlo, pero luego de darle muchas vueltas he decidido que, en tributo a la sinceridad, debo hacerlo. Estoy convencida que es el libro que con más claridad, erudición e imaginación nos permite entender la transición que vivimos. Nos permite leer el momento actual a la luz de diferentes momentos históricos, caracterizados de manera muy interesante como específicos régimenes de realidad. Analiza con claridad cada régimen y muestra cómo se vincula con una determinada formulación de los límites de la realidad lo que en última instancia le da forma al mundo que habitamos. Además es muy interesante su aporte para entender los procesos de abandono de unos régimenes en beneficio de la regencia de otros. Su recorrido conduce a afirmar que lo que nos acontece hoy es que estamos entrando a un nuevo régimen de realidad: pasando de un mundo estructurado por los límites imaginarios de la economía a uno que empieza a estructurarse a partir de los límites de la ecología. Una tesis que es defendida de manera elaborada, cautivadora y convincente. Adicionalmente, el libro es una propuesta que junto con esta interpretación de la condición histórica actual a partir de una mirada diacrónica, entrega una propuesta de renovación teórica de la sociología. Es un libro publicado el 2014, que adelanta, me parece, mucho de lo que hoy enfrentamos y seguiremos enfrentando. Indispensable.

    Lourdes Bandeira

    1. A covid-19 espalhou-se muito rapidamente, em todos os cinco continentes, com uma magnitude furiosa e inesperada, atingindo milhares de pessoas, independentemente de suas condições socioeconômicas, geográficas, raciais, geracionais, entre outras. Fato que se propagou em tempo recorde, de aproximadamente dois a três meses, atingindo o mundo civilizado. Esse “fenômeno” sem dúvida vem mobilizando pesquisadores/as de todos os domínios científicos para além de ser apenas um problema de saúde pública. Instiga, sem dúvida, um amplo universo de cientistas, entre os quais os cientistas sociais, que não estão se furtando a refletir e analisar esse fato social total, como o designou o sociólogo espanhol Ignacio Ramonet em artigo recente, “La pandemia y el sistema-mundo”. Acentua ainda que a covid-19 “convulsiona todas as relações sociais e choca todos os atores, instituições e valores”, pois a considera uma “experiência inaugural” da humanidade, deixando nela seu rastro traumático.

      Os efeitos devastadores ou as consequências são muitas, pois o isolamento social compulsório que foi “imposto” a toda a população evidencia, de imediato, as profundas e complexas desigualdades sociais e políticas no interior de cada país, manifestas pela situação de fome quase generalizada das populações mais vulneráveis, pela ausência de infraestrutura sanitária, assim como pela violência contra as mulheres. Há muitas diferenças entre os países do norte e do sul, no sentido de que os primeiros possuem mais recursos e equipamentos a oferecer aos milhares de pessoas que foram contaminadas pela covid-19; enquanto aqui, abaixo do Equador, impera a pobreza, o autoritarismo, o medo e a desproteção de políticas públicas. Ao mesmo tempo, a situação de covid-19 desmascara o despreparo, a inaptidão, o descaso e o escasso compromisso dos governos e do Estado – em especial no caso brasileiro, pelo seu fanatismo em querer assegurar a manutenção do emprego e pela fobia neoliberal em atender a um grupo de empresários do mercado, sem se responsabilizar por tomar as medidas e providências que são necessárias, sejam as propostas pelas autoridades internacionais da OMS, sejam as baseadas nos indicativos que o conhecimento científico – pesquisadores epidemiologistas, infectologistas e outros, além do Ministério da Saúde – assinalam.

      Por sua vez, as ciências sociais vêm alertando e advertindo sobre as tragédias ocorridas com a destruição inescrupulosa do meio ambiente e as mudanças climáticas, que, de alguma maneira, já anunciavam, indiscutivelmente, consequências danosas, sobretudo com a potencial propagação de pragas, insetos, entre outros similares. Entretanto, as ciências sociais, como de resto nenhum outro campo científico, estavam preparadas para antever o tamanho da tragédia da covid-19; isso vai desde o sistema público de saúde, como é o caso do SUS, vivendo sempre com parcos recursos, quando não desacreditado, ao contrário das enormes organizações multinacionais de fármacos, cujos laboratórios pagam pesquisadores/as de ponta, mas que na atual conjuntura têm se mostrado igualmente incapazes de produzir medicamentos e vacinas para conter a expansão mundial da pandemia. Ou seja, o avanço da parafernália das tecnologias tem surtido ainda poucos efeitos diante das severas consequências vividas até o momento, do que se deduz o desempenho vital que têm as ciências sociais em repensar e ressignificar os sistemas de valores que conduzem as dinâmicas das relações em sociedades.

    2. Como professora e pesquisadora há mais de três décadas dedicada ao estudo do tema, a violência contra as mulheres tem se agravado – aqui e lá fora –, derivada/acentuada pela situação provocada pelo isolamento social, considerando-se que tem aumentado em torno de 30% – como indica o enorme volume de denúncias informadas diariamente pelas mídias sociais nacionais e internacionais. As situações de violência contra as mulheres compreendem desde a violência física, sexual, psicológica, patrimonial e moral até a prática de crimes de feminicídio que se multiplicam quase em escala geométrica, nos níveis local e global. Vale lembrar que a situação de isolamento social escancara o convívio com maridos, companheiros e padrastos abusadores sexuais e violentos, e ao mesmo tempo acentua as desigualdades de gênero ao expor as diferenças na divisão sexual do trabalho, uma vez que cabe às mulheres a responsabilidade de exercer a economia dos cuidados na esfera doméstica. Por fim, o confinamento desencadeia situações de estresse, ansiedade, fragilidade e outros riscos de conviver no mesmo espaço da casa, da família, com homens que podem atentar contra sua integridade física e emocional, sobretudo quando há a presença de crianças.

      Trata-se de uma situação de urgência absoluta, cuja gravidade demanda um olhar sensível que seja sociológico e feminista no sentido de entender as multiplicidades de causas que são ativadas quando se trata de violência de gênero. Pois os números ainda não oferecem a possibilidade de compreender a extensão e a complexidade desse fenômeno, em que, por exemplo, não é descrita a condição étnica/racial, de classe e de territorialidade das mulheres vítimas de violência doméstica. São as mais vulneráveis, muitas desempregadas e destituídas de condições adequadas de sobrevivência, que estão submetidas a tal situação, tanto no Brasil como em outros países. As informações divulgadas concentram-se na faixa etária das pessoas mortas pela covid-19, destacando que as mortes se distribuem em 68% de homens e 32% de mulheres, cuja faixa etária vai de 30 até mais de 80 anos, tendo maior incidência a partir dos 70 anos, em ambos os sexos.

      No contexto da covid-19, cabe às ciências sociais acompanhar seus avanços perversos e não se eximir de sua responsabilidade de denunciar a violência contra as mulheres, pois já é sabido que a covid-19 tem gênero e classe. Vale lembrar que esse fenômeno não é recente, tem história, e o ativismo feminista foi pioneiro em ensejar sua visibilidade, denunciá-lo estimulando a criação de uma área/campo de estudos e pesquisas acadêmicas em desenvolvimento, e tem contribuído de várias formas significativas:

      • introduzindo nas universidades disciplinas referentes à questão, com vistas à formação de gestoras públicas atuantes tanto em políticas públicas como na formação de operadores/as do direito para o trabalho no Judiciário. Tal qualificação permanente tem trazido frutos, com iniciativas inovadoras – produção de cartilhas informativas, que neste momento da covid-19, possibilitam orientar as mulheres a realizar a denúncia. Núcleos de gênero centrados na violência foram criados em diversos Ministérios Públicos – como no Rio de Janeiro e no Distrito Federal, entre outros, e vêm atuando de maneira a informar, acolher e encaminhar as mulheres vítimas de violência doméstica, em contexto de isolamento social, uma vez que muitas delas convivem com seus agressores;

      • identificando as insuficientes iniciativas de políticas públicas de com-bate à violência doméstica, em consequência da covid-19, uma vez que, atualmente, observa-se um recuo em relação aos ganhos institucionais de combate e enfrentamento às violências existentes em tempos normais;

      • formando redes de enfrentamento à violência – em parceria com grupos/organizações de mulheres e de mulheres negras da sociedade civil, que atuam em comunidades, nas periferias e nos rincões interioranos do Brasil;

      • produzindo pesquisas quantitativas e qualitativas – gerando dados sobre a complexidade do fenômeno que se traduzem em indicadores de base ao planejamento de políticas públicas. É importante manter o método da observação in sito, com vistas a captar informações, observar as mudanças e recorrências que as expressividades da violência doméstica podem manifestar provocadas pela pandemia da covid-19.

      Por fim, mais recentemente a sociologia tem se dedicado a pesquisar as peculiaridades que caracterizam os crimes tipificados de feminicídio – os quais têm aumentado no contexto do coronavírus –, por tratar-se de uma grave violação de direitos humanos das mulheres, que têm impactos profundos na economia e na saúde das mulheres e das pessoas em geral, das sociedades e, por que não?, das nações!

    3. É difícil pensar em mudanças neste momento, embora haja quem vislumbre que o mundo não será mais o mesmo. A meu ver, isso não significa que as práticas de solidariedade, de compaixão e que políticas com legítimos valores sociais venham a se instalar entre os povos. Elas seriam suficientes para superar a crise econômica mundial? Penso que não, pois no cenário da crise da covid-19, é necessário bem mais. Hoje, há segmentos da indústria e do mercado que prosperam com a pandemia: todas as tecnologias que fornecem equipamentos hospitalares, a fabricação de máscaras, luvas e demais utensílios continuam alimentando o capitalismo. Talvez, por um lado, tivéssemos que retomar a sabedoria de Marcel Mauss quando no Ensaio sobre a dádiva, publicado em 1925, já nos ensinava que o valor das “coisas” não pode ser superior ao valor das “relações sociais” e que o simbólico é fundamental para a vida social. Mauss chegou a esse entendimento a partir da constatação de que as características de trocas nas sociedades arcaicas não são apenas coisas do passado, tendo importância fundamental hoje para se compreender a sociedade moderna. Ou seja, a prática da “dádiva”, do “dom”, poderia se constituir no fundamento de toda sociabilidade e das comunicações humanas nas sociedades atuais.

      Por outro lado, e sendo menos pessimista, vislumbram-se esperanças no fazer da política com as novas lideranças femininas que vêm surgindo no cenário internacional ao enfrentar a crise da covid-19. Trata-se de novas formas de um olhar feminino, que se reflete no “fazer política” com intuito de se ocupar, de cuidar da população, uma vez que a economia dos cuidados não deixará, de repente, de ser atribuída à responsabilidade das mulheres. Outros paradigmas vêm sendo usados por líderes femininas. Desde a Islândia, sob a liderança da primeira-ministra Katrín Jakobsdóttir, passando por Jacinda Ardern, premiê da Nova Zelândia e Sanna Marin, chefe de Estado na Finlândia, Tsai Ing-wen, presidente em Taiwan, e Angela Merkel, a chanceler da Alemanha... enfim, todas essas mulheres estão evidenciando ao mundo como lidar com uma situação complexa e inusitada de crise mundial que atinge cada país de maneira própria. No enfrentamento dessa pandemia revela-se que as mulheres partem de outros valores, de outros olhares mais plurais e menos desiguais, evidenciando maneiras outras de exercer o poder e a tomada de decisões.

    4. Não me ocorre nenhuma obra publicada recentemente a ser indicada. Mas sugeriria que revisitássemos alguns autores e conceitos clássicos da sociologia – como o de classe social, em “desuso” para muitos, em uma releitura do velho Karl Marx; e o de fato social, de Durkheim. Mereceriam também uma releitura, com o olhar deste momento de crise da covid-19, Edgar Morin, Ciência com consciência; Richard Sennett, A corrosão do caráter; Jürgen Habermas, Teoria da ação comunicativa; Manuel Castel, As metamorfoses da questão social; Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios; Marcel Mauss, Ensaio sobre a dádiva.

      Concluo essas breves reflexões retomando o pensamento de Ignacio Ramonet, no artigo citado, que nos faz pensar na importância de possíveis mudanças a ocorrer na humanidade; paradoxalmente, a economia dos cuidados atividade historicamente atribuída à responsabilidade das mulheres –, e os/as anônimos/as trabalhadores/as da saúde continuaram na mesma “invisibilidade”; mas não há que negar “potencialidades” de mudança para os/as mais otimistas. Como argumenta o autor, o mundo pós-pandemia não deveria mais centrar-se na produção capitalista da mercadoria, mas na produção do direito, isto é, na necessidade básica de um direito humano: “A pandemia também tem seus heróis e seus mártires. E nesta luta, os guerreiros que subiram para a linha de frente, para os postos avançados para enfrentar o mortal SARS-Cov-2, foram médicos, enfermeiros, auxiliares e outros profissionais de saúde que se tornaram protagonistas involuntários, ganhando elogios e aplausos das varandas, praças e ruas das cidades ao redor do mundo. Quase todos eles funcionários públicos, para os quais a saúde da população não é uma mercadoria, mas uma necessidade básica, um direito humano”.

    Luiz Antonio de Castro Santos

    1. Se hoje temos acesso à literatura nacional sobre pandemias que devastaram populações inteiras (veja-se a obra de Liane M. Bertucci e meu próprio texto sobre a cólera – “Itinerário do medo”), note-se, no entanto, que o tempo foi o que “maturou” esses textos, essas e outras interpretações. O mesmo ocorre com a literatura internacional, que parece fazer o melhor uso da teoria sociológica sobretudo histórico-sociológica – depois de um longo tempo de “maturação”. O clássico do grande historiador William McNeill, Plagues and peoples, data dos anos 1970! Então, cabe sugerir que, diferentemente das ciências da saúde e da epidemiologia, que podem levantar pistas e sugerir análises e caminhos interpretativos quase on the spot, as ciências sociais trabalham mal no curto prazo, diante de fenômenos epidêmicos de toda natureza. Para além das barreiras do tempo, todavia, a teoria sociológica está equipada para enfrentar os desafios postos pelas epidemias e pandemias de terrível impacto social.

    2. Na verdade, as múltiplas áreas de pesquisa em ciências sociais e humanas têm a varinha de condão para uma espécie de mutação e “sensibilização” incomparáveis, para dar conta de múltiplos fenômenos! Tal não ocorre, por contraste, com os princípios e métodos da epidemiologia ou da demografia, para citar campos epistêmicos distintos da ciência social. Veja-se o amplo leque de temas cobertos, por exemplo, pela revista Contexts, da American Sociological Association. Um “cardápio” variadíssimo, se vale o bom humor. Ou, para inglês também ver, confrontem-se os campos cobertos pela Contemporary Review, igualmente da ASA. Minhas áreas de pesquisa “especializadas”, a sociologia histórica da saúde e a saúde coletiva, contribuem para entender o modo pelo qual nações (modos de vida, símbolos e identidades) são impactadas por uma pandemia, e, da mesma forma, Estados e líderes são fortalecidos ou fragilizados (políticas públicas, segurança nacional e armamentos, inclusão e exclusão social de etnias, minorias, raças, gênero). Vejamos, porém, as áreas, digamos, consagradas da sociologia. A exemplo de desigualdades e iniquidades; interação social, laços sociais e laços de sangue; trabalho e organizações; emoções e identidades; ideologias e cultural production; movimentos sociais e Estados; normas, leis e controle social; saúde, enfermidade, medicina; teorias e epistemologias; metodologias e técnicas de pesquisa (apenas percorri os temas tratados, há 20 anos, em um único exemplar (v.29, n.5, 2000) de Contemporary Sociology). Todas essas áreas de pesquisa têm uma palavra a dizer, e não a silenciar, sobre uma pandemia. Então, cada uma de nossas “áreas especializadas” – privilégio da ciência social – está apta a contribuir para a reflexão sobre inúmeras dimensões do fenômeno pandemia e seus impactos sobre a vida humana. “Minha” área, ainda que se destaque pela relação direta com saúde, enfermidade, medicina, está longe de ocupar uma posição hegemônica.

    3. A meu ver, a pandemia deverá mudar padrões e estilos sociais de vida – e que não configuram tendências “já em curso”. Se excetuarmos grupos sociais e elites políticas infensas a qualquer “mudança de curso” – correntes que se posicionam, por exemplo, contra verdades aceitas mundialmente, tais como desastres ambientais – o papel legítimo atribuído ao discurso científico pareceria ser um fato sociológico dificilmente previsível antes da pandemia. Veja-se, por exemplo, a aceitação crescente de fatos estatísticos ou hipóteses sobre enfermidades, mortalidades ou letalidades – uma postura “pró-ciência” que, no passado, produziria risinhos de mofa. Em 4 de maio, por ocasião da Marcha Virtual pela Ciência, promovida pela SBPC, essa mudança de curso da opinião pública foi destacada em pronunciamento do antropólogo Alfredo Wagner, da qual retiramos uma passagem exemplar: “Eu gostaria de ressaltar a relação entre a pandemia e o processo de recuperação da autoridade científica e institucional da universidade, enquanto se revela como lugar social de produção e reprodução do conhecimento científico”. Excelente pronunciamento do conselheiro da SBPC.

    4. Penso em dois intelectuais de belíssima produção científica – ambos já falecidos. Primeiramente, a contribuição de Paul Singer. Uma das obras de nosso “Paulo”, que contempla desafios pré- e pós- o fenômeno mundial da atual pandemia, foi publicada em Portugal recentemente, organizada por Rui Namorado para a Editora Almedina: Ensaios sobre economia solidária. Um segundo texto esclarecedor – sem falhas, nem vacilações – foi escrito pelo também “nosso” portenho Guilhermo O’Donnell: Democracia delegativa?. Ainda que procurem dar conta de outros contextos históricos, na América Latina, as ideias de O’Donnell dialogam a longa distância com a visão solidária de Singer, e antecipam desafios pós-pandemia. Democracias capengas como a brasileira anunciam duros problemas – desemprego, protagonismos sociais em queda, ensino básico calamitoso, condições miseráveis de vida, atentados impunes. O cenário é nacional, o cenário é local… Recentemente a jornalista Lígia Guimarães, da BBC-News Brasil, retratou a calamidade social e sanitária em São Luís do Maranhão, diante de um governador respeitável, mas paralisado por décadas de desvario político e social, obra de oligarquias funestas, como a Sarney.

    Luiz Augusto Campos

    1. É difícil dizer neste momento. As características próprias da pandemia minaram sobretudo as interações face a face na esfera pública, atingindo em cheio um dos fundamentos de reprodução da vida social. Nesse sentido, a teoria social pode ajudar muito a compreender as possíveis consequências da pandemia. Por outro lado, tais interações migraram para outros espaços, sobretudo virtuais, ainda pouco conhecidos e considerados pelos nossos processos de teorização. Trata-se de uma situação ambivalente.

    2. Trabalho em duas frentes temáticas: os estudos de raça e a organização acadêmica das ciências sociais. No primeiro caso, temos muito a contribuir. Dados de outros países sugerem que populações racialmente discriminadas são as mais atingidas, mas isso ainda não se refletiu nos dados brasileiros. É preciso frisar que essa maior vulnerabilidade racial é explicada por fatores eminentemente sociológicos e não biológicos dos grupos discriminados. A segunda linha de pesquisa tem a ver com as questões que vocês levantam que colocam muitos desafios: como as ciências sociais podem contribuir com esse momento?

    3. Acho muito difícil delinear conjectura, pois sequer temos ideia do tempo de duração desta pandemia. No entanto, enumero algumas tendências que parecem ter mais chance de perdurar. Primeira, maior centralização da administração social dos riscos, provavelmente por parte do Estado, embora ainda não esteja claro o formato que isso vá assumir. Segunda, aprofundamento da importância das tecnologias digitais de comunicação. Terceira, aprofundamento no curto prazo das desigualdades nacionais e internacionais. Quarta, recentramento da ciência enquanto fonte de orientações políticas para os agentes públicos.

    4. Embora os textos de Ulrich Beck venham sendo os mais mencionados, acredito que a obra de seu mestre, Anthony Giddens, retornará à voga, sobretudo por conta de um provável retorno de estruturas próprias de uma modernidade tal qual descrita por ele (calcada nos sistemas peritos e no risco). Tenho me interessado em reler Goffman, muito embora seu foco estivesse muito mais nas implicações embutidas nas interações sociais do que em sua relevância para a reprodução do social. Finalmente, destaco a importância de reflexões sobre a reestruturação do capitalismo, sobretudo dos modelos mais autoritários moldados no leste asiático, seja o “comunismo” chinês ou o “liberalismo” em Singapura.

    Luiz Gustavo da Cunha de Souza

    1. Sim. É evidente que se trata de um fenômeno novo cuja forma imediata, a ocorrência de uma patologia viral, parece ser tema das ciências médicas. As implicações de uma mudança radical e compulsória das formas de sociabilidade, de interação e de experiência do mundo social, todavia, são temas para os quais as ciências sociais, e a sociologia em particular, fornecem as categorias incontornáveis de reflexão. Nesse sentido, seria preciso se perguntar, antes, se é possível haver explicações para os efeitos sociais e políticos da pandemia fora das ciências sociais. Feita essa ponderação, um segundo ponto a ser notado é que, de modo quase paradoxal, tanto a especialização científica quanto a interdisciplinaridade que marcam tendências opostas das ciências sociais nas últimas décadas contribuíram para que a teoria sociológica possa, nas atuais circunstâncias, incorporar as experiências de outras disciplinas e mesmo de outras áreas da ciência para ajudar a compreender a pandemia da covid-19. Certamente também é necessário ter o cuidado de não exagerar a capacidade explicativa da teoria sociológica, antes de mais nada porque se trata de um fenômeno novo, inesperado e inusitado, cujos efeitos dificilmente serão unívocos. Mas também porque a teoria sociológica deve poder se considerar equipada para oferecer explicações adequadas a um determinado evento quando categorias que fazem parte de seu arcabouço são mobilizadas para analisar o tempo presente. Assim, não é tanto se o que a sociologia disse sobre a pandemia e seus efeitos faz sentido que deve ser considerado acertado, mas se o que se pode dizer sobre a pandemia precisa da teoria sociológica para fazer sentido; então pode-se afirmar que essa teoria é adequada para a explicação e a compreensão daquilo que ocorre.

    2. A teoria social é aquele tipo de reflexão que não trata diretamente de um objeto empírico, mas também não se dirige privilegiadamente à reflexão sobre a própria teoria, isto é, sobre suas condições de produção ou sobre sua lógica interna. Em termos amplos, teoria social é uma reflexão sobre a experiência coletiva de fazer parte de um mundo social e sobre as formas, reais e possíveis, dessa experiência. Já nessa forma genérica, sua contribuição para a análise de uma pandemia que possui como uma de suas principais características a alteração radical da organização social é visível. Isso porque o isolamento social que foi a primeira resposta à propagação do coronavírus – e também a resistência à quarentena, seja sob a forma de uma alteração das disposições sociais para a interação, seja sob a forma do negacionismo científico ou, ainda, da perversão política – afeta diretamente nossos laços com o espaço em que nos encontramos e, consequentemente, com as relações e formas de interação entre indivíduos, com o ambiente social e com a natureza que são possíveis e desejáveis agora e no futuro. Indo um pouco mais a fundo na questão, uma das características da teoria social é a formulação de paradigmas, ou, posto de outro modo, de teorias sobre a sociabilidade. Nesse caso, tanto reflexões que caracterizaram e qualificam diferentes aspectos das sociedades em que vivemos quanto reflexões a respeito da natureza mesma das sociedades modernas têm se mostrado frutíferas para entender a situação atual, revelando que a teoria social, muito longe de ser uma área de conceitos abstratos, pode contribuir enquanto instrumento de descrição, análise e crítica da situação atual.

    3. É difícil dizer se a pandemia da covid-19 produz rupturas ou acelerações de tendências. Teóricas e teóricos de cada uma dessas vertentes gostariam de interpretar a presente situação através das lentes analíticas que vêm utilizando em suas análises já há tempos e possivelmente teriam contribuições instigantes a fazer em cada uma das direções. Essa riqueza de perspectivas que marca as ciências sociais e a sociologia, porém, não deveria desviar a atenção nem do choque e da surpresa causados pela crise sanitária e nem das condições sociais em meio às quais ela ocorreu. Eventos sociais, afinal, não são raios num céu azul. Assim, mais do que sobre a questão das mudanças profundas ou da aceleração de tendências é preciso refletir sobre o fato de que eventos distópicos ou revolucionários são uma possibilidade real no mundo em que vivemos e, principalmente, que esses eventos ocorrem sobre uma base de relações sociais concretas. Durante a pandemia da covid-19 tais indagações ajudariam a pensar em que medida a contaminação causada por um vírus, algo que à primeira vista parece escapar à ação coletiva dos seres humanos, se relaciona com as condições de competição científica tornadas naturais em sociedades contemporâneas ou ainda como encarar o fato de que é sempre tarde demais para pensar em alternativas que impeçam que os efeitos socioeconômicos de um fenômeno como esse atinjam de modo privilegiado as camadas mais pobres da população. Isso sim permitiria refletir sobre a relação entre o presente e seu passado imediato, mas também identificar os contornos de uma necessária mudança após o fim da pandemia, mudança na qual expressões como segurança social, renda básica universal e solidariedade deverão desempenhar o papel de horizonte possível e necessário.

    4. Seria injusto apontar uma ou uma pequena porção de trabalhos das ciências sociais neste momento, mas não é má ideia atentar para trabalhos que adotaram uma perspectiva sociológica reconstrutiva ou, mais especificamente, de reconstrução normativa, como reflexões que ajudam a entender como e por quais trajetos as sociedades se tornaram aquilo que se tornaram. Uma vez que visam explicar a reprodução social por meio da legitimação de normas, valores e ideais, reconstruções normativas são perspectivas teóricas que analisam a história das sociedades com uma lupa na qual ações coletivas, grupos sociais, instituições, disputas por poder e conflitos se deixam entender menos pelos objetivos de transformação e mais pelos processos que institucionalizaram formas de vida. Diante da crise atual, são teorias e trabalhos que podem explicar criticamente, por exemplo, como e por que as sociedades ocidentais agora enfrentam os desafios causados pela pandemia em um contexto de vulnerabilidade das populações carentes, de desmonte da seguridade social, de exacerbação da meritocracia neoliberal, de ceticismo frente à ciência e do suprematismo frente à natureza. Essa crônica das metamorfoses do social nas últimas décadas do século XX e início do século XXI tem renovado a teoria crítica da sociedade e mostrado como o desmonte da sociedade das regulamentações, por um lado, rendeu avanços importantíssimos (por exemplo, com a crescente e bem-vinda receptividade à desregulamentação dos papéis de gênero nas sociedades ocidentais e a consequente crítica à divisão sexual do trabalho) e em outros casos levou a situações trágicas, como revela a desesperadora situação daquelas pessoas que se viram obrigadas a enfrentar a pandemia recorrendo à economia de aplicativos. O fato de que, em ambos os exemplos, as desigualdades de gênero e as atividades profissionais desregulamentadas recebem o impacto frontal da crise atual só reforça a importância de que se investigue como se pôde chegar até aqui.

    Marcelo Alario Ennes

    1. Acredito que a mobilização das/os sociólogas/os tem crescido significativamente. Aos poucos os dados sobre pandemia têm sido divulgados e muitos especialistas, incluindo sociólogas/os, passaram a se dedicar à tarefa de os compreender. Penso que há uma tendência no campo das ciências humanas de que nossa inserção ocorre de modo retroativo sobre o acontecimento, de modo que colegas aguardam o desenrolar dos acontecimentos para iniciar um estudo mais sistemático da pandemia de covid-19 no que diz respeito a sua dimensão social e sociológica. Particularmente, no entanto, entendo que seria possível nossa inserção também ao longo do período de duração desse fenômeno que é também social e, como tal, é matéria de estudos para a sociologia.

      Entendo que a sociologia está equipada para explicar esse fenômeno, seja do ponto de vista teórico, seja no que diz respeito à metodologia. Ademais, há estudos no campo da demografia e da sociologia da saúde, entre outras áreas de conhecimentos vizinhas e subcampos da sociologia, que nos fornecem estudos sobre realidades semelhantes em outros contextos históricos e geográficos, o que nos garantiria uma base para pensar a atual pandemia.

    2. Minha formação como pesquisador resulta da interseção entre os estudos migratórios, estudos sobre identidades, corpo e minha opção pelos referenciaisteórico e metodológico oriundos do que se possa chamar de sociologia relacional, em especial, a de Pierre Bourdieu. Nessa direção, penso que é possível refletir e mesmo produzir subsídios para políticas públicas, em três frentes que se articulam entre si: pensar a pandemia e a dimensão do contágio e das mortes a partir do paradigma do embodiment (Csordas), que contempla os conceitos de habitus e hexis, de Bourdieu − nesse ponto, podemos entender o contágio e a morte dele decorrente como objetivação da mobilidade espacial e da vulnerabilidade social expressas pelas condições de habitação, nível socioeconômico (quem pode suportar o isolamento em termos sobrevivência – alimentação, por exemplo), variáveis que se cruzam com classe social, origem nacional, etnia/ raça, sexo/gênero; como já mencionado, a mobilidade espacial é um componente central da pandemia – como o vírus chegou até nós, como ele circula entre nós? aqui há questões de extrema relevância que precisam ser elucidas para, também, combater o preconceito, o racismo e a xenofobia, e seria pertinente perguntar qual a dimensão de classe desta pandemia a partir de modalidades de mobilidade: turismo, migração e refúgio; essa questão nos remete ao debate sobre alteridades/identidades,e a imprensa, bem como colegas da área dos estudos sobre migração, vem alertando sobre o fato de que narrativas racistas e xenófobas têm sido construídas e disseminadas de modo a associar a pandemia a nacionalidades (chineses) e imigrantes de várias origens – nesse caso, assistimos à reedição do processo de conversão do imigrante em ameaça e, portanto, em “bode expiatório” do problema.

    3. O presente e o futuro dependem das disputas e correlações de forças em curso; portanto, é difícil prever a direção das mudanças sociais. Podemos, não obstante, imaginar ao menos dois cenários. Em relação à mobilidade humana, até o momento é previsível que imigrantes e refugiados continuem sendo utilizados como ameaça e sirvam de pretexto para maior seletividade da circulação de pessoas no plano global, o que continuará a resultar no cerceamento de direitos, formas de discriminação e opressão, vulnerabilizando ainda mais aqueles grupos, por um lado, e mantendo o status quo em que forças ultraconservadoras são hegemônicas. Um segundo cenário, que foge ao meu campo de estudos, tem a ver com como e por quem as sociabilidades virtuais serão apropriadas. Darão origem a novas dinâmicas de aproximação e solidariedade entre indivíduos, grupos, nações etc.? Terão o poder de ampliar e potencializar pautas de caráter pós-materiais voltadas para a equidade, justiça social e sustentabilidade ambiental, social e econômica? Ou serão apropriadas pelas forças hegemônicas e se converterão em novas formas de dominação e exploração?

    4. Penso que os autores que dialogam com a perspectiva relacional têm muito a contribuir. Por exemplo, Norbert Elias para pensar a pandemia como expressão de configuração social. Bourdieu para pensar o processo de incorporação, bem como o campo de disputa em que nos encontramos por meio de seu sistema conceitual (habitus, hexis, campo, capital e estratégia) – em obras como Meditações pascalinas, Senso prático e “Notas provisórias sobre a percepção social sobre o corpo”. Giddens e Ulrich Beck para pensar a associação imigração, coronavírus e risco. Recomendaria também estudos que tratam do imigrante como ameaça.

    Marcelo Arnold-Cathalifaud

    1. Tengo un moderado optimismo sobre las explicaciones e interpretaciones que se hacen desde las ciencias sociales. Respecto a los problemas globales contemporáneos las “teorías de la sociedad” disponibles han demostrado profundas limitaciones, sus representantes se han volcado al periodismo o a la crítica moral sin esforzarse en profundizar sus argumentos. En las conceptualizaciones que más recurrentemente se aplican pareciera que la pandemia no les ha traído muchas novedades a sus reflexiones habituales. Apreciamos que lo frecuente son la producción de relatos sobre el fin “de algo” y el principio de “otro algo”, sin ahondar con contenidos ni con proyecciones lo que se quiere expresar. Ciertamente, existe mucha y buena investigación empírica, pero esta no logra integrar niveles de síntesis que sirvan de guía para nuevas interrogantes o para poder proponer formas de abordar problemas equivalentes. Estamos colmados de datos locales y escasean las reflexiones sobre los mismos. Tengo la expectativa que la pandemia ha sorprendido a las ciencias sociales y que se están elaborando las respuestas que se esperarían.

    2. Mis aplicaciones provienen de la teoría de sistemas sociales; sin entrar a profundizar, destaco los siguientes reglones teóricos: una concepción de sociedad, como sociedad global (incluyendo una definición de la misma); una observación de la sociedad que considere su diferenciación interna en términos de diferenciación sistémica; la distinción entre riesgo y peligro y las referidas a la distinción entre inclusión y exclusión. En el entendido que las tres últimas distinciones son subsidiarias de una teoría consistente de la sociedad, como sociedad global, enmarcada en una perspectiva sistémica y constructivista.

    3. Los efectos de la pandemia ocurrirán en todos los niveles de la sociedad, además serán dinámicos y multidimensionales. Todas las expresiones sociales tendrán modificaciones y, en sus interrelaciones, se proyectarán expresiones emergentes inimaginables por ahora. Pero, las primeras señales de estos cambios pueden indicarse en el campo de las actividades cotidianas, la co-presencia será más regulada y sus formas encauzadas en protocolos, más o menos explícitos, ello incluye desde variar las reglas de la proximidad hasta las vestimentas y las ocasiones para su uso. Probablemente, en compensación, las aplicaciones de realidad virtual se generalizarán. Como se puede prever lo anterior tendrá un enorme impacto en las interacciones intra e intergeneracionales, como en las verticales y las horizontales. En el plano organizacional el teletrababajo, la automatización y utilización de inteligencia artificial se incrementarán exponencialmente. Probablemente los ritmos de trabajo, horarios y sus estacionalidades se verán fuertemente modificados. En planos más generales pueden anticiparse cambios en los sistemas educativos formales con la tele-educación y re-adecuación de los programas; en el ámbito sanitario se generalizarán las informaciones sobre la salud a poblaciones que antes no lo consideraban (un nuevo tipo de terrorismo); la política pasará por importantes modificaciones y debates, por ejemplo con la probable aparición de nuevas variedades de formas democráticas; en el plano económico se verán cambios en su industria, nuevas formas de consumo parece lo más evidente, lo mismo en las industrias relacionadas con el transporte y el turismo. Los conocimientos científicos y las comunicaciones religiosas adquirirán posiciones centrales. A nivel mundial, la globalización, a diferencia de lo que se están planteando, se verá acelerada y cubriendo la mayor parte de las expresiones sociales. Esto último no será inmediato, pero la ejemplificación de la respuesta a la pandemia será un avance paradigmático. A quedado de manifiesto las limitaciones de decisiones delimitadas por fronteras nacionales, en compensación, veremos un auge de la cobertura de organizaciones con coberturas mundiales (previo el reformateo en sus composiciones, en la validación de evidencias y en los criterios de tomas de decisiones).

    4. Sin duda, junto a los textos clásicos de Luhmann sobre temas ambientales y respecto a la distinción riesgo/peligro, recomendaría una relectura de la trilogía de Manuel Castells, La era de la información, y revisar la de Ulrich Beck, Risk society: towards a new modernity.

    Marcelo Carneiro

    1. Acredito que um ramo específico da sociologia, a sociologia da sociedade do risco, desenvolvida a partir da obra de Ulrich Beck, forneça instrumentos teóricos importantes para a compreensão do surgimento da pandemia do coronavírus. Na introdução ao livro A sociedade do risco, Ulrich Beck dizia, de forma premonitória: “Diante das ameaças da segunda natureza, absorvida no sistema industrial, vemo-nos praticamente indefesos. Perigos que vêm a reboque do consumo cotidiano. Eles viajam com o vento e a água, escondem-se por toda a parte e, junto com o que há de mais indispensável à vida – o ar, a comida, a roupa, os objetos domésticos –, atravessam todas as barreiras controladas de proteção da modernidade”. Para analisar os efeitos sociais da pandemia, contudo, julgo que as abordagens inspiradas na análise de Karl Polanyi sobre a dinâmica de mercantilização da terra (natureza), do trabalho e da moeda oferecem uma perspectiva mais apropriada.

    2. Os estudos que realizo se situam na interface entre ambiente, trabalho e mercado, procurando compreender como diferentes formas de coordenação de atividades sociais (reciprocidade, mercado e redistribuição) se manifestam em campos de pesquisa como a produção de alimentos, o desenvolvimento de sistemas de certificação e de governança ambiental. Como falei antes, julgo que a crise da covid-19 confere muita atualidade à abordagem polanyiana da relação entre mercado, sociedade e Estado. Ela nos ajuda a pensar os efeitos deletérios dos processos de mercantilização da natureza, do trabalho e da moeda, as famosas mercadorias fictícias. A terra (natureza) talvez seja a mercadoria cujo caráter fictício mais sobressai nesse contexto. O tratamento da natureza como mercadoria, objeto de forte contestação nas últimas décadas, ganhou intensidade com o evento da pandemia. Temas como o desmatamento, a apropriação de recursos comuns e o aquecimento global, após a disseminação da covid-19, foram associados, por diversos especialistas, como fatores de produção de zoonoses. Como destacou Jane Goodall (2020), essas zoonoses, contudo, não provêm unicamente do comércio de animais selvagens, como no caso da transmissão inicial do vírus em Wuhan. As péssimas condições da criação de animais em grandes fazendas também proporcionam um ambiente favorável para a produção desse tipo de vírus. Nesse sentido, a crise atual indica também a necessidade de medidas que transformem o sistema agroalimentar vigente, que leve em consideração o bem-estar animal, a redução no uso de insumos agroquímicos e que aponte para o fortalecimento de circuitos curtos de comercialização alimentar.

      Se a mercantilização da natureza está na origem da pandemia, o tratamento do trabalho como mercadoria fictícia aparece como umas das facetas mais dramáticas, por seus efeitos destrutivos, provocados pela dispersão da covid-19. O número elevado de mortes entre trabalhadores(as) da saúde e dos cuidados (care), linha de frente do combate à pandemia em hospitais e asilos, além da alta taxa de contágio entre assalariados que foram obrigados a trabalhar para manter a economia funcionando, revelam as consequências da desproteção a que foi submetido um mundo do trabalho, sob o domínio de políticas neoliberais das últimas décadas. Por fim, mas, não menos importante, a pandemia interpela também a natureza da moeda, como produto da relação entre o Estado e o mercado na gestão da economia. De acordo com a interpretação de W. Streeck, a atuação dos Estados nacionais, diante da dinâmica recente do capitalismo global, tem sido a de postergar o conflito distributivo por meio de estímulos ao endividamento privado e público.

    3. De maneira geral, a crise provocada pela covid-19 explicitou claramente as fragilidades de Estados nacionais e da cooperação internacional para lidar com seus efeitos. Muitas vozes, de diferentes partes do espectro político, vêm se manifestando pela necessidade de fortalecimento dos sistemas de proteção social. Isso pode indicar que o pêndulo da história esteja se movendo no sentido de uma limitação da mercantilização de importantes esferas da vida social, como sugere a tese polanyiana acerca do movimento da sociedade se defendendo dos excessos do liberalismo. Como lembrado por Boltanski e Chiapello, todavia, o capitalismo pode também recuperar os elementos das críticas que lhe são endereçadas, colocando a crítica artística contra a crítica social ou, como argumentou Fraser, no mesmo diapasão, movimentos emancipatórios podem se unir com forças de mercado, em vez de se aliar aos atores que postulam maior proteção social, fragilizando, por conseguinte, a luta contra o neoliberalismo.

    4. Duas obras publicadas recentemente lançam luzes sobre o processo de mercantilização acima exposto. L’emprise des marchés, de Michel Callon, ajuda a compreender o papel crescente dos dispositivos mercantis em nossa vida cotidiana, ao passo que Capital e ideologia, de Thomas Piketty, num registro mais normativo, disseca de forma profunda os efeitos da ideologia neoproprietarista no mundo atual e apresenta o que seria uma agenda política capaz de enfrentar o desafio da redução das diferentes formas de desigualdade – social, ambiental e fiscal – vigentes. Nesse sentido, o livro representa, a meu ver, a contribuição mais promissora das ciências sociais para pensar as consequências da pandemia sobre o mundo contemporâneo.

    Marcia de Paula Leite

    1. Eu não posso responder por todas as áreas da sociologia, porque não as acompanho, mas na área da sociologia do trabalho, tenho visto muitas iniciativas nesse sentido. Acho que a teoria sociológica nos dá muita base para compreender e interpretar o fenômeno.

    2. Como já antecipei, a sociologia do trabalho tem produzido muita coisa sobre o tema. No caso do Brasil, como não podemos desvincular a pandemia do contexto político que estamos vivendo, de uma crise política profunda, nem das transformações que vêm ocorrendo nas relações de trabalho desde 2017, a sociologia do trabalho tem produzido muita coisa analisando as medidas provisórias que vêm sendo editadas pelo governo na área do trabalho, seus efeitos deletérios sobre os trabalhadores e trabalhadoras, assim como as implicações da maneira errática como os governos vêm enfrentando a crise sanitária sobre os(as) trabalhadores(as), especialmente os informais, os trabalhadores por conta própria, e, sobretudo, os da periferia, sem deixar de lado, obviamente, os(as) assalariados(as).

    3. No nosso caso, a pandemia está provocando um aprofundamento das mudanças em curso desde a reforma trabalhista de 2017. Isso significa uma insistência na ideia de que os(as) trabalhadores(as) não precisam de proteção estatal nem sindical, mas devem ser deixados à livre negociação das condições de trabalho com seus empregadores. Se isso não for obstaculizado, a tendência é de que as consequências para os(as) trabalhadores(as) no pós-pandemia sejam absolutamente desastrosas: de um lado, trabalhadores precarizados, mal pagos, terceirizados, em trabalhos parciais, intermitentes e autônomos, sem proteção social; de outro lado, sindicatos fragilizados, sem condições de os proteger.

    4. Há muitas obras da sociologia que poderiam nos ajudar a compreender o que está acontecendo. É difícil citar um livro ou uma pesquisa especificamente, mas eu entendo que há muitos autores que nos ajudam nesse sentido, entre os quais eu citaria Edgar Morin, Norbert Elias e Karl Marx.

    Marco Antonio Perruso

    1. Este engajamento público de cientistas sociais e intelectuais é de ressaltar. Universidades e ONGs têm-se mostrado ativas no diálogo com a sociedade na atual conjuntura inaugurada pela pandemia. É certo que devemos ampliar em muito o alcance desse diálogo. Até mesmo obras a respeito já foram lançadas, no calor dos acontecimentos, à maneira do ocorrido nos últimos anos no plano da política brasileira.

      Entendo que a sociologia está equipada para analisar a situação que vivenciamos, visto possuir em seu arsenal teórico – seja o clássico, seja o contemporâneo – balizas consistentes para tanto. Com a tradição marxista continuar-se-á a explorar analiticamente os limites e as contradições do capitalismo mundial, as implicações do industrialismo e da urbanização na produção de pandemias, bem como a disseminação de seus efeitos segundo a desigualdade social. Na trilha da matriz weberiana, pode-se acionar o desencantamento do mundo para compreender a indiferença pela ciência, vigente no universo simbólico-cultural de determinados estratos sociais. Consoante à interpretação habermasiana, desnudam-se as reações do mundo da vida, à direita e à esquerda, à crise de legitimidade popular hoje sofrida igualmente por neoliberalismos e desenvolvimentismos progressistas. Temos a leitura frankfurtiana da técnica como ideologia, útil para questionarmo-nos sobre o ideário e o repertório de ação de conservadorismos e populismos tão visíveis. As teorias democráticas estão igualmente desafiadas a ajudar a repensar o mundo social. Creio que elas não devam se restringir a uma mirada intelectual que privilegia exclusivamente a manutenção da democracia política burguesa, mas ir além, investigando a reoxigenação da participação cidadã experimentada em certos lugares. Por fim, a produção em torno da desigualdade de acesso à saúde e ao saneamento, notadamente em sociedades localizadas na periferia do capitalismo, é capaz de explicar a contínua promoção de pandemias e endemias nas últimas décadas (dengue, Chikungunya, Zika, gripe suína).

    2. A área de estudos sobre o pensamento social brasileiro e uma sociologia dos intelectuais têm muito a contribuir para o conhecimento aprofundado deste momento histórico. Primeiramente, demonstrando como foram concebidas epidemias anteriores, como a sociedade e a cultura nacionais interagem com os desafios da saúde pública, do saneamento e do urbanismo. Por conta de acontecimentos marcantes (gripe espanhola, Revolta da Vacina), a produção acadêmica a respeito é notória. Em segundo lugar, dimensionando o desempenho das ideias, da ciência e de seus agentes sociais (intelectuais, cientistas, tecnocratas) no Brasil. Será possível então responder à inquietante indagação: na era das fake news e do modismo terraplanista, que legitimidade social nós, profissionais do capital intelectual, produtores da cultura e da ciência, possuímos? Com que segmentos – elites, setores médios, classes populares – ou entes sociais (o mercado, o Estado, os movimentos sociais, a própria universidade) nos relacionamos? Creio ser importante, também, retomar o pensamento brasileiro que lê o país em chave antidualista, de modo que estejamos instrumentalizados a perceber como o progresso nacional – da década passada, por exemplo – sempre, de alguma maneira, acaba permitindo a reposição e a reinvenção do atraso (no tempo presente, o bolsonarismo). A superação da dualidade moderno/tradicional nas ciências sociais brasileiras pode ser uma resposta positiva gestada desde a quarentena. Por fim, nossa área oferece vastas análises sobre o conceitual em torno do populismo – novamente em voga, ainda mais em tempos de confinamento. Para além da justa crítica ao elitismo presente na acepção liberal do termo, o retorno ao exame dos clássicos do pensamento brasileiro e da sociologia marxista (de meio século atrás) sobre o tema talvez propicie leituras que fujam à reabilitação nacionalista do populismo enquanto fenômeno político. Esta, tão forte num certo senso comum intelectual atual, reflete, contudo, a impotência populista em nos tirar da crise em que estamos.

    3. É sempre difícil para os cientistas sociais apontar tendências em meio à complexidade do real, mas não nos furtemos a indicar diferentes vetores presentes dialeticamente no mundo social. Olhando para as estruturas sociais, alguns fenômenos devem ter sua disseminação acelerada pela pandemia: trabalho remoto e alterações na sazonalidade da mobilidade urbana – serão mais ou menos precarizantes das condições de vida a depender da agência dos trabalhadores, a qual só pode ser fortalecida por meio de uma renovação classista do movimento sindical. A articulação coletiva dos “de baixo” talvez fortaleça outras pautas recolocadas pela crise econômica já instalada: renda básica universal, imposto sobre grandes fortunas, abolicionismo penal. Quanto a outras sociabilidades possíveis, e no mesmo sentido de aceleração de tendências, vários movimentos sociais podem reforçar eixos programáticos emergentes: a crítica – ecológica ou mesmo identitária – ao produtivismo e ao economicismo como nexo existencial da contemporaneidade, por exemplo.

      Em direção contrária, o drama em curso da saúde pública enfraquece o ultraliberalismo e seu agitprop em torno dos mercados, reforçando o paradigma do estado de bem-estar social. Mas novamente: o resultado será democratizador – quem sabe inaugurador de novos horizontes emancipatórios – caso se desenvolva um processo de empoderamento das classes subalternizadas mundo afora, cujos direitos continuam sob ataque.

    4. Sobre a escala planetária da pandemia e a insegurança social diante do entrelaçamento com o “outro” ainda desconhecido, são úteis teóricos da globalização como Manuel Castells (O poder da identidade e A sociedade em rede) e Ulrich Beck com a atualíssima Sociedade de risco mundial – em busca da segurança perdida. Paralelamente, A teoria do agir comunicativo, de Jürgen Habermas, e Necropolítica, de Achille Mbembe, são inescapáveis. Quanto ao patamar em que as sociedades da periferia do capitalismo enfrentam a situação ora vigente, destaco As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, guinada ecoterritorial e novas dependências, de Maristella Svampa, e Pós-extrativismo e decrescimento: saídas do labirinto capitalista, de Alberto Acosta e Ulrich Brand. No que se refere às interpretações antidualistas do Brasil, em que se tornam inteligíveis o otimismo e o pessimismo que cultivamos sobre o povo brasileiro e sobre nós mesmos: o clássico de Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista – o ornitorrinco, e, de Paulo Arantes, Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz, dois pensadores radicais. A respeito da agência das classes populares, necessária se faz a leitura da produção recente sobre movimentos sociais de autores como Maria da Glória Gohn e Breno Bringel. Por fim, indico os livros recém-editados Sopa de Wuhan – pensamiento contemporáneo en tiempos de pandemias (com artigos de Judith Butler, Byung-Chul Han e outros) e Coronavírus e a luta de classes (com autores como Alain Badiou, Raúl Zibechi, entre outros).

    Maria Arminda do Nascimento Arruda

    1. A primeira pergunta remete a duas ordens de consideração: a mobilização dos cientistas sociais – e dos sociólogos em particular – para oferecer respostas aos problemas produzidos pela pandemia; e a capacidade da teoria sociológica, isto é, a existência de uma acumulação analítica na teoria social que a habilite a construir referências capazes de dar conta de fenômenos provocados pela pandemia. Deriva da formulação, embora não esteja explicitamente indicado, a pergunta sobre o caráter da participação dos cientistas sociais na agenda pública, quando a ela se segue a indagação sobre a existência de um instrumental teórico capaz de fundamentar a compreensão dos efeitos adversos da pandemia na vida social. Portanto, subjaz à primeira pergunta a alusão ao modo como os cientistas sociais estão atuando na esfera pública. Primeiramente, cabe considerar que os objetos de pesquisa dos cientistas sociais já os predispõem ao debate público, o que, em larga medida, explica a participação social dos seus praticantes. No presente momento, outros profissionais habilitados, a exemplo daqueles das áreas da saúde, passaram a intervir diretamente no debate público de modo qualificado.

      A teoria social oferece instrumental em condições de respaldar a intervenção pública dos cientistas sociais. Refiro-me, por exemplo, ao instrumental durkheimiano sobre a anomia e a solidariedade social. A pandemia rompe com todas as certezas, produz isolamento e tem instituído formas novas de solidariedade social, até recriando modos de convivência típicos das comunidades. Retomo a tradição weberiana a respeito das modalidades de reconhecimento e legitimação do saber de grupos profissionais e do aparato burocrático do Estado. Finalmente, a questão dos efeitos socialmente diferenciados do vírus em contextos de extrema desigualdade social, que está no centro da tradição marxiana.

    2. A área de pesquisa à qual eu me dedico – a sociologia da cultura – possui um quadro de referências em condições de oferecer instrumentos à reflexão. Refiro-me, de modo geral, à mudança nos padrões culturais. Especificamente, permite desnaturalizar e dessubstantivar as manifestações aparentemente neutras e técnicas, sejam as oficiais, sejam as especializadas. O campo da sociologia da religião oferece importantes contribuições ao entendimento das crenças em tempos de crise e medo social.

    3. Certamente, após a pandemia, o mundo será outro. Os consensos sobre os quais a globalização se assentava – trânsito intenso, flexibilização de direitos, consumo, domínio das regras do mercado, financeirização, entre outros – estão em xeque. O isolamento, o retorno às políticas sociais, a presença do Estado são expressões das mudanças. Tende a se acentuar a cultura eletrônica, e o ativismo digital, com todos os seus efeitos positivos e negativos, deverá se desenvolver ainda mais. No conjunto, pode-se reconhecer uma transformação no cânone da cultura. O futuro não está posto e dependerá dos rumos para os quais as decisões, lutas e embates se encaminharão.

    4. Creio que os livros de Castells sobre o mundo em rede, bem como as obras sobre os direitos, as desigualdades sociais, são referências importantes.

    Maria Eduarda da Mota Rocha

    1. Penso que não. O esforço de construção dos objetos a partir das teorias é sempre a parte mais delicada do nosso trabalho, mas, diante de uma ruptura como a que estamos vivendo, as mediações que precisamos estabelecer são ainda mais complexas porque é como se estivéssemos testemunhando uma parte da vida social “em estado bruto”, como uma ferida que ainda não cicatrizou. Normalmente, as instituições sociais se sedimentam, se naturalizam, e sua origem não se ativa na memória dos que vivem tais instituições. Uma parte da experiência social, talvez uma pequena parte, está se refazendo sob os nossos olhos, e, em um curto espaço de tempo, vamos testemunhar o processo de institucionalização de algumas práticas, aquilo que o senso comum já nomeou de o novo normal, em luta com a tremenda força de inércia do já estabelecido. Então caberá a nós percorrer, junto com todo mundo, o caminho que vai da perplexidade rumo a alguma compreensão. Por outro lado, a perplexidade foi o que fez nascer a sociologia, que surgiu para tentar explicar as profundas mudanças trazidas com a modernização. De certa maneira, a ciência está sempre correndo atrás do prejuízo. Somos provocados pela realidade. Mas, felizmente, não respondemos a essa provocação a partir do zero. Temos uma disciplina muito rica, que oferece muitas pistas para pensar o que estamos vivendo.

      Por exemplo, a ideia do taken-for-granted world, de Alfred Schutz, se mostra muito poderosa nesse contexto. Como ficamos perdidos sem a rotina e as garantias ontológicas que ela parece nos oferecer! A pandemia revelou o profundo nível de naturalização que envolve a vida social, suas atividades corriqueiras, e o quanto isso é importante para a atribuição de um sentido imediato para a existência. Talvez por isso seja tão difícil abrir mão de certas atividades, especialmente aquelas ligadas à sociabilidade. É que, entre a “realidade” da doença e a experiência vivida, se interpõem as maneiras de interpretar o mundo, e essa é uma lição preciosa da sociologia que muitos não conseguem entender. Ao refletir sobre a pandemia, entretanto, o que salta aos olhos no Brasil mais uma vez é a desigualdade social: as condições materiais e culturais de enfrentamento da doença são muito diferentes. A covid-19 evidencia de modo brutal o quanto a distância em relação à necessidade tem peso decisivo nas chances de vida das pessoas. Diretamente, determinando o acesso à informação de qualidade, ou se elas podem ficar em casa, e em que condições. Mas também de modo indireto, sob a forma de uma maneira de estar no mundo que as predispõe ou não a antever as consequências das medidas de prevenção e a levar a sério essas consequências. Bourdieu levantava a hipótese de que as classes mais vulneráveis costumam ser capturadas pelo presente, enquanto as demais internalizam a disposição de investir no futuro. É possível imaginar o impacto disso na relação com os riscos trazidos por uma pandemia.

    2. Eu trabalho com temas da sociologia da cultura e, preferencialmente, da comunicação. As produções artística e intelectual, que são objetos dessas áreas temáticas, são lugares privilegiados de elaboração dos sentidos das experiências vividas. E, por conseguinte, das disputas sobre esses sentidos. O campo midiático em que circula essa produção poderia fornecer amplo material para a compreensão desses conflitos no presente. Como as diferentes classes sociais e grupos políticos estão respondendo à questão sobre o que está acontecendo no Brasil hoje? À primeira vista, ele evidencia o aprofundamento de uma primeira clivagem que já vinha se desenhando desde pelo menos as eleições de 2018, entre as redes sociais que o então candidato Bolsonaro usava intensamente para estabelecer uma “relação direta” com o núcleo duro de seu eleitorado, e a mídia tradicional, cuja posição naquele momento era menos definida do que parece ser durante a cobertura da pandemia. Agora, temos claramente o telejornalismo da Globo questionando de maneira direta o comportamento do presidente, de um lado, e apresentadores como Ratinho e Datena, do SBT e Bandeirantes, respectivamente, apoiando a posição de Bolsonaro. Os discursos em disputa parecem se organizar de modo bastante binário, em torno de oposições centrais como religião versus ciência, economia versus vida. A ênfase em cada um dos polos tem rebatimentos no plano da concepção da gravidade da pandemia e do lugar que ela deve ocupar em termos da hierarquia de prioridades do governo federal. Seria muito interessante aprofundar a análise da organização do campo da oferta de opiniões político-ideológicas e de sua articulação com o campo político propriamente dito, por exemplo, a partir da oposição entre o presidente Bolsonaro e as demais instâncias do poder federal, como o Congresso e o STF, de um lado, e os governadores dos estados mais afetados ou mais atuantes, de outro. O caso atual abre a oportunidade para outro plano de análise que já vem sendo estudado e que diz respeito às diferentes portas de entrada nesse campo de oferta de opiniões político-ideológicas, em que cada vez mais a mídia tradicional parece ter que lidar com a concorrência de atores situados nas redes sociais e que, eventualmente, podem balançar as hierarquias consolidadas nas instituições mais consagradas, incluídas as universidades. No plano propriamente midiático, mas não somente, as instâncias tradicionais têm tentado resguardar sua autoridade na luta com os difusores de fake news, demarcando uma posição como os que podem dizer o que é ou não notícia. É como se em vários subcampos da produção cultural, os polos dominantes estivessem sendo obrigados a lidar com um tipo novo de concorrente, menos disposto a respeitar o valor supremo em disputa (a verdade científica, as regras do fazer jornalístico etc.), que a possibilidade de uso massivo das redes sociais introduziu na luta por legitimidade diante de um certo tipo de público não especializado. De todo modo, o que me parece crucial é que a sociologia brasileira abra mais espaço para os temas ligados à mídia que foram de certa forma delegados às pós-graduações em comunicação, mas sobre os quais nossa formação especializada tem muito a dizer.

    3. Vejo muitos discursos em circulação que apontam para o “nada será como antes”; mas, durante a pandemia, os mesmos atores sociais disputam um jogo que já vinha sendo jogado, agora em um novo contexto. Se pensarmos, para simplificar, em uma combinação tripartite entre mercado, Estado e comunidade, como faz Boaventura de Sousa Santos em Toward a new common sense, a conjuntura joga a favor dos dois últimos em detrimento do primeiro, de um ponto de vista simbólico que pode se refletir no plano político a médio prazo. A crise sanitária global tende a desacreditar os defensores de políticas neoliberais, uma vez que respostas individuais como as propostas pelo mercado aos problemas gerados pelo coronavírus são praticamente inócuas. Virou passatempo para internautas colecionar frases de neoliberais convictos, dentro e fora do Brasil, afirmando a importância do sistema público de saúde, das políticas de renda mínima e de proteção social, mesmo que isso seja uma medida de urgência.

      No Jornal Nacional, o quadro “Solidariedade S.A.” mostra ações de empresas de ajuda no combate aos efeitos da crise sanitária, em nome da responsabilidade social. Mostrei que essa tendência se desenha na publicidade brasileira desde os anos 1980, articulada ao avanço do neoliberalismo, como uma resposta ao enorme poder social e político do capital na sociedade, em nível global e nacional, e ao descontentamento que esse poder provocava. Esse esforço retórico é uma tentativa de atenuar uma contradição profunda, que ele obviamente não resolve, e que a pandemia põe a nu porque muitos são os discursos críticos que estão tentando fazer dela um momento de aprendizado coletivo acerca das insuficiências do mercado no tratamento de questões humanitárias urgentes, muito além do coronavírus, como a miséria, a violência, a crise ambiental. Esses discursos tocam no velho problema da alienação. A pandemia é a forma mais violenta e direta de nos lembrar que existimos como espécie, ao contrário da crença firmada em uma sociedade capitalista de que somos exclusivamente indivíduos que se relacionam por meio da troca de mercadorias.

      Se as respostas que virão a essa “revelação” serão as que esperamos, é uma outra questão. A crise sanitária e social que vivemos deverá acirrar as disputas entre constelações de valores organizadas em torno da solidariedade e do individualismo extremo, que já vinham desenhando clivagens políticas fundamentais por todo o globo. A questão mais importante, contudo, é saber quais as forças sociais que sustentarão a luta em nome desses valores. No Brasil, já tínhamos a estranha situação de insatisfação crescente com o desmonte das políticas públicas e a dificuldade de articulação das forças de oposição, sobretudo na interlocução entre a sociedade civil e o sistema partidário. Enfim, a profundidade da crítica social despertada pela experiência da crise não será um reflexo imediato da história, mas dependerá, mais uma vez, da capacidade coletiva de transformar o sofrimento em impulso de transformação.

    4. Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento; Pierre Bourdieu, A distinção e O senso prático; Teresa Caldeira, Cidade de muros: crime, cidadania e segregação em São Paulo; Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil; Gilberto Freyre, Sobrados e mocambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano; Erving Goffman, Quadros da experiência social; Francisco de Oliveira et al., Os sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global; Alfred Schutz, Fenomenologia e relações sociais; Boaventura de Sousa Santos, Toward a new common sense: law, science and politics in a paradigmatic transition; Jessé Souza, A construção social da subcidadania; Charles Wright Mills, A elite do poder.

    Mariana Chaguri

    1. Procurando uma resposta direta, sim. Alongando o argumento, podemos começar pensando que, entre as questões centrais a organizar a teoria sociológica, está o tema da mudança social. O fenômeno da pandemia tem promovido um conjunto de transformações cujos sentidos estão em aberto, tanto no que se refere à dinâmica do processo social quanto à capacidade dos diferentes agentes sociais de encaminhar suas demandas, o que, sem dúvida, abrirá um campo variado de interpretações e disputas teóricas.

      As controvérsias teóricas geradas a partir do esforço de interpretação desse fenômeno serão (e já são) muitas, e, em minha visão, têm potencial para promover alargamentos dos conceitos e das categorias da teoria sociológica, aumentando nossa capacidade de falar sobre o mundo social. Para seguir com a resposta, então, gostaria de pontuar que estou tomando a teoria sociológica como imaginação a qual, numa chave ampliada, não é apenas invenção (o que é importante), mas é especialmente a atribuição de inteligibilidade ou a construção de novos sentidos para a experiência social, isto é, para as experiências de estar no mundo.

      A epidemia impactou enormemente tais experiências, articulando marcadores sociais da diferença, tais como gênero, raça e classe, em sentidos ora esperados da reprodução de desigualdades, mas também em novas direções que nos desafiam a pensar a dimensão processual implicada na disputa e reconstrução dos pactos sociais entre indivíduos e sociedade. Instâncias socializadoras e produtoras de solidariedade, tais como o mercado e a família, também nos desafiam a pensar o que mais poderíamos estar perguntando e de que modo poderíamos fazê-lo para avançar em nossa capacidade de explicar esse fenômeno.

    2. Minha trajetória de pesquisa está ligada ao pensamento social, com diálogos com os estudos rurais, de gênero e pós-coloniais. Vou me ater à dimensão propriamente teórico-metodológica do pensamento social, explorando algumas inflexões a partir dos demais diálogos. Metodologicamente, a área de pensamento social sempre nos desafiou a pensar as articulações reflexivas entre a empiria dos processos sociais e a dinâmica da produção das ideias. Compreender e explicar sociologicamente um fenômeno como a pandemia implica, me parece, investigar as mudanças sociais promovidas em seu bojo, o que, entre outras coisas, significa também observar o regime de ideias e os imaginários políticos, sociais e culturais que lhe dão significado e ajudam a organizar o próprio sentido da mudança.

      Articulando teoria e metodologia, o pensamento social nos ajuda a perceber que ideias ou imaginários acionados para narrar e disputar os sentidos das mudanças provocadas pela pandemia ou em seu bojo não possuem significado crescente, cumulativo e estável, ao contrário, tais significados dependem das controvérsias e de experiências – individuais e coletivas – que as constituem. Como exemplo, e observando o caso brasileiro, a área de pensamento social auxilia a perceber quais são os circuitos de produção, circulação e de polarizações políticas e culturais em torno de questões como o isolamento social, por exemplo.

      Tematicamente, ainda importa destacar que algumas das questões que organizam parte substantiva dos temas e problemas analisados no interior dessa área de pesquisa emergiram com força acentuada neste contexto, tais como, por exemplo, questões em torno da domesticidade e do lugar da família, ou os arranjos e impasses entre público e privado na sustentação de pactos mais ou menos abrangentes de solidariedade e proteção social.

    3. Como tentei indicar nas respostas anteriores, o fenômeno da pandemia tem promovido um conjunto de transformações cujos sentidos estão em aberto. Questões sobre as bases sociais, políticas e culturais do neoliberalismo têm se colocado na ordem dia, com os consequentes embates acerca do papel do Estado e da amplitude de redes públicas de proteção social. Do mesmo modo, a pandemia impactou a geopolítica da solidariedade internacional, com medidas tais como fechamento de fronteiras ou mesmo o questionamento da legitimidade de protocolos e orientações pactuadas em órgãos multilaterais. De modo mais específico, é possível notar que, em diferentes partes do mundo, a extrema-direita encontrou circuitos e agentes para colocar suas ideias e visões de mundo em circulação, organizando uma reação sistemática e consistente contra medidas de isolamento social. Cabe investigar de que modo tais forças políticas e sociais continuarão tendo capacidade de encaminhar o conflito social a partir de suas demandas.

      No caso brasileiro, os contornos mais visíveis do mundo pós-pandemia parecem dizer respeito ao lugar da família como unidade econômica básica numa conjuntura que articula desemprego e recessão econômica. O tema, porém, se desdobra na indagação decisiva sobre as bases sociais – bem como sobre a força política – do liberalismo e do conservadorismo para a construção de pactos sociais estáveis e duráveis no país.

    4. Algumas obras que têm me ajudado a perceber dinâmicas contemporâneas como as apontadas na resposta anterior são: Melinda Cooper, Family values: between neoliberalism and the new social conservatism; William Callison et al., Mutant neoliberalism: market rule and political rupture; Quinn Slobodian, Globalists: the end of empire and the birth of neoliberalism; Nancy Fraser, O velho está morrendo e o novo não pode nascer.

    Martina Löw

    1. Como sociólogas e sociólogos precisamos perguntar o que a pandemia de covid-19 significa para a sociedade como um todo, agora e no futuro. A situação atual está obviamente ligada a questões de espaço e refiguração. Para superar os limites (linguísticos e nacionais) do discurso público atualmente em vigor, a sociologia está bem preparada para apresentar teoria relativa ao espacial para descrever e explicar o fenômeno.

      A dimensão social da pandemia não é apenas fundamentalmente espacial em sua natureza. Como uma lente de aumento, a crise também revela uma tensão típica das sociedades da modernidade tardia, uma tensão entre duas lógicas espaciais – nesse caso aquela entre espalhamento global e fechamento nacional. Levando-a ao extremo, as dinâmicas básicas da refiguração dos espaços como os compreendemos estão visíveis a olho nu. Na nossa perspectiva, a refiguração do social resulta precisamente da tensão entre duas lógicas espaciais. Por um lado, temos o fechamento territorial. Países, áreas residenciais e casas são tratadas como “contêineres” de vírus ou que precisam ser isolados dele. Por outro lado, vemos o espalhamento incontido, global dos corpos infectados com o vírus, a densificação das redes digitais e uma abertura massiva de redes de comunicação desempenhando novas funções na crise. A mesma tensão entre duas lógicas espaciais básicas se expressa na figuração do Estado territorial centralizado em oposição à globalização transnacional, e nas fortes hierarquias verticais e análises lógico-conceituais versus a formação de redes horizontais ou “rizomas” e metáforas ontológicas.

    2. Minha área de pesquisa é a sociologia do espaço, que pode contribuir para a pesquisa da pandemia pela análise das suas lógicas espaciais implícitas. Espaços territoriais seguem lógicas de posicionamento e arranjo com fronteiras nitidamente definidas (externamente) e restrições à diversidade (internamente). Em regra, elas são percebidas como algo estático. Em contraste, espaços em rede seguem uma lógica de criação de relações na heterogeneidade. Em espaços em rede, elementos distantes são colocados em relação, e sua característica básica se dá pelas diferenças entre os seus elementos.

      A tensão entre lógicas territoriais e de rede, entre hierarquia e heterarquia, entre limitação e delimitação e entre homogeneidade e heterogeneidade se faz particularmente aguda na crise da covid-19. Em primeiro lugar, estamos lidando com uma pandemia sem limites espaciais. Por outro lado, o vírus oferece um risco letal, fatal para aqueles que podem sofrer morte terrível por sufocamento.

      O vírus se tornou um risco global. Viajando pelo mundo com botas de sete léguas, como o Pequeno Polegar, ele se espalha por intermédio de turistas, pelos que viajam a negócios e por outras formas e sistemas de circulação, se condensando em locais onde as pessoas se divertem e interagem: em restaurantes finos e mercados em Wuhan, resorts de esqui nos Alpes ou em corona parties celebradas em boates techno urbanas. Nesse contexto, é notável que essa expansão global não tenha sido enfrentada com uma resposta global. Em vez disso, decisões unilaterais e solitárias de fechamento de fronteiras foram tomadas. Fronteiras que há décadas não eram controladas ou fortificadas foram fechadas sem aviso prévio ou consultas entre Estados, como ocorreu por exemplo na França e Alemanha. E não apenas territórios nacionais foram fechados, como cidadão nacionais expatriados foram rapidamente “trazidos de volta” em ações de “repatriação” sem precedentes.

    3. A epidemia da covid-19 não é um mero produto da “primeira” modernidade. Ela é também uma consequência da “segunda modernidade”, seu alto nível de digitalização, turismo em massa pelo mundo e de uma economia cujas redes são construídas principalmente por cadeias de suprimentos globais. A covid-19 é o resultado de mudanças, não o seu início.

      Minha expectativa é de que as sociedades pós-pandêmicas fiquem hipercomprimidas em termos de espaço, enquanto o mundo digital compensará parcialmente a falta de encontros públicos em que grupos interagem, se escuta música e atividades esportivas são exercidas. O estímulo à mediação digital que aparece atualmente em muitos setores é ambíguo. Suas implicações para políticas governamentais de informação ainda serão analisadas. Enquanto nos beneficiamos de infraestrutura (subsidiada pelos Estados) ao trabalhar de casa, gigantes como a DHL e a Amazon também o fazem. Esse é um fato que projeta mais do que mera sombra sobre a refiguração atual dos espaços. Além disso, o imenso e amplamente compartilhado conhecimento (científico) sobre o vírus provavelmente modificará nossa compreensão social da proximidade física para sempre, com a expectativa de transformações em todas as escalas e níveis do mundo social, incluindo uma percepção aumentada da respiração e tosse das pessoas, a administração de comércios e eventos públicos no interior das cidades e a continuidade da União Europeia, do euro e da “ordem mundial” global como a conhecemos.

      A vulnerabilidade e o medo da morte, o isolamento e a quarentena são experiências de crise genuínas – a doença e a morte representam adversidades individuais e coletivas sérias. Transformações sociais ameaçadoras, contudo, são parte vital da experiência de crise. Podemos considerar que a ordem emergencial será apenas de curto prazo, e não permanente. A escalada da crise da covid-19 tornou as dinâmicas resultantes do crescimento de tensões espaciais absolutamente nítidas. E essa tensão definitivamente permanecerá sendo uma questão porque não desaparecerá quando a pandemia for contida. A covid-19 apenas a trouxe à cena.

    4. Teoria social, teoria espacial, pesquisas sobre risco, pesquisas relativas ao corpo, teoria da globalização e pós-colonial, pesquisas sobre regulação estatal etc.

    Mary Tuti Baker2 2 Respondeu em texto único.

    As coisas desmoronam e nós as arrumamos de volta

    Ontem à noite avisaram ao grupo que esperasse um código no éter.

    Ele vai aparecer nos nossos computadores cerebrais, ativados de uma casa no campo.

    Mas eu não tenho como chegar.

    As coisas desmoronam e nós as arrumamos.

    Sento à minha mesa improvisada. O sol se levanta. Posições giram.

    Syzygy

    Desviando de tarefas por cumprir

    Convivendo com as plantas no parapeito

    Alcançando o sol encoberto e o ar gelado em quietude e silêncio.

    As coisas desmoronam e precisamos arrumá-las de volta

    de formas novas e surpreendentes

    No dia 28 de abril, acordei de sonhos irregulares e ansiosos com essas palavras na boca – as coisas desmoronam, nós as arrumamos de volta. Elas me deram algum conforto, já que de fato parece que em todos os cantos do planeta as coisas estão desmoronando. O vírus fez caírem as máscaras. Em tempo real, presenciamos o trabalho coletivo dos melhores entre nós, criando formas de maximizar a sobrevivência coletiva numa situação humana terrível enquanto os piores entre nós lucram com a situação sem quase nenhum respeito para com os futuros coletivos.

    O colapso social não é novo ou incomum para comunidades indígenas. Não faz muito tempo que vírus foram usados como armas pelos colonizadores brancos para eliminar os nativos da paisagem americana. E ainda assim tantas nações indígenas sobrevivem ao trauma continuado do imperialismo. Há lições a ser aprendidas desses povos – lições sobre cuidado e construção de comunidades e sobre a atenção ao solo embaixo dos nossos pés, ao ar que nos cerca.

    Eu sou uma pesquisadora e educadora Kanaka Maoli (nativa do Havaí). Eu ensino teoria política indígena em cursos universitários, e minha pesquisa se concentra em redes de ressurgência e resiliência em estruturas sociais baseadas no espaço. Nesse semestre eu estava ensinando introdução ao pensamento político indígena para alunos de segundo ano na Universidade de Brown. Enquanto a pandemia marchava pelos Estados Unidos, estudamos um repertório de pensadores indígenas e aprendemos sobre a produção de conhecimento indígena, ressurgência, resiliência e como as comunidades vivem em relação de reciprocidade com tudo o que existe. Na sessão final os alunos me contaram que o curso havia sido diferente de qualquer outro que eles fizeram até ali porque, mais importante do que “o que” é o pensamento político indígena, eles aprenderam “como” se dá esse pensamento. Acredito que os alunos saíram do curso com uma apreciação da forma pela qual as teorias indígenas criam mundos. Eles também adquiriram uma série de ferramentas que abriram sua compreensão para o uso de múltiplas lentes. Me sinto grata por poder ensinar nestes tempos de convulsão e transformação. Ensinar os jovens a pensar diferente é crucial, já que será a sua missão rearrumar as coisas de formas novas e surpreendentes. Essa é minha pequena contribuição para a nossa sobrevivência coletiva nesta pandemia – e não só sobrevivência, mas prosperidade em futuros resilientes, num mundo em que muitos mundos caibam.

    Mokong Simon Mapadimeng

    1. Tenho a tendência de acreditar que a sociologia é a mãe de todas as ciências sociais e que é uma disciplina que alcança amplo espectro e diversidade de especializações. Isso, como sabemos, inclui a subdisciplina sociologia da saúde e da doença, que por sua vez é respaldada pelas teorias gerais da sociologia (derivadas tanto do sul quanto do norte globais). Essas teorias e suas metodologias auxiliares são bem desenvolvidas e estão preparadas para nos ajudar como sociólogos a compreender o que está acontecendo no momento atual com a pandemia que engoliu a maior parte senão a totalidade do globo.

    2. Nos últimos tempos, a maior parte da minha pesquisa tem se dedicado a garimpar, divulgar e contribuir para o desenvolvimento e expansão dos conhecimentos indígenas africanos, os quais cobrem todos os aspectos da vida social humana, incluindo origem africana da filosofia e conhecimento sobre governança, medi- cina, manejo ambiental, economia, agricultura, arquitetura, educação e ensino. No momento, estou trabalhando na edição de um livro que examina as legislações e políticas estatais na África do Sul visando determinar se elas permitem ou impedem os sistemas de conhecimento indígena africanos, bem como suas implicações para intervenções futuras. Um dos capítulos do livro tem relevância direta para assuntos relacionados a doenças e curas similares à pandemia da covid-19: “O tesouro oculto da vida oceânica do desenvolvimento das medicinas indígenas africanas – seguindo pistas das medicinas terrestres”. Acredito que os ricos insights e anseios que perpassam os sistemas de conhecimento indígena africanos, se bem explorados, teriam muito a contribuir no sentido da aspiração de “africanos encontrando soluções autenticamente africanas para problemas africanos”. Isso pode parecer utópico, mas trata-se de uma utopia necessária.

    3. Não há dúvidas de que essa pandemia impôs novos modos de vida para as sociedades, tendo particularmente perturbado a ordem socioeconômica e política do capitalismo neoliberal e suas instituições. O conceito de distanciamento social já rompeu a norma de organização do trabalho nos espaços físicos, a qual exigia que os empregados se reunissem em um determinado lugar a fim de executar suas respectivas atividades, mesmo que interligadas. Isso, de certo modo, reforça a tendência de adesão às novas tecnologias de comunicação e informação, ainda que com alguns sinais de precaução, como, por exemplo, a preocupação de que as inovações 5G possam contribuir para as mudanças climáticas e para surtos de doenças transmitidas por vias aéreas, tais como a covid-19. Isso pode ser uma típica contradição interna que, na visão de Marx, define a ordem econômica do capitalismo. Ou talvez implique que essa ordem econômica jamais será a mesma, ou seja, pode ser que venhamos a testemunhar grandes mudanças na direção de uma ordem econômica mais ou menos significativamente modificada. Alternativamente, pode ser que a ordem social que prevaleceu desde o período pós-guerra se reconfigure, como o fez no passado, para sobreviver às atuais perturbações causadas pela covid-19. Do modo como as coisas estão ainda não é possível saber exatamente como será a ordem emergente. Para aqueles de nós no sul global, que temos pouca ou nenhuma fé na atual ordem hegemônica do capitalismo neoliberal, desdobramentos como a covid-19 apresentam uma oportunidade para nossas nações reavaliarem suas economias e sistemas sociais de um modo que possa garantir relevância e substância ao nosso jeito próprio (cultural, religioso, político e econômico). É uma oportunidade de desenhar nosso próprio destino autônomo sem depender mais das economias das chamadas nações desenvolvidas. A China mostrou-nos como isso pode ser feito. Acredito que nossas nações, especialmente na África, possam se sair ainda melhor sem replicar os modelos chineses. Na África, temos agora a oportunidade de reexaminar nossas relações com as sociedades da Europa Ocidental e da América do Norte (especialmente os EUA) para forjar relações mutuamente benéficas (por exemplo, priorizar o comércio interno africano antes de negociar com o mundo exterior, e com relação a este último ter como segunda prioridade as nações do sul global). Temos diante de nós uma oportunidade de nos rever e encontrar novos modos de fortalecer nossos sistemas de governança política para uma maior transparência e responsabilidade para com os cidadãos. Isso também ajudaria a acabar com a maldição do fim dos recursos naturais, por meio de um processo visando à industrialização local e à autossuficiência. Não há melhor oportunidade do que essa.

    4. Acredito que a rica literatura atual sobre sociologia ambiental e sociologia da saúde e da doença, bem como os ricos e ainda não explorados sistemas de conhecimento indígenas (aqui na África nós denominamos sistemas de conhecimento indígena africanos), tenha muito a contribuir tanto para a compreensão do que está acontecendo quanto para a busca de caminhos para sair desta crise que é um desafio à nossa própria sobrevivência e das futuras gerações.

    Nadje Al-Ali

    1. [Optou por não responder]

    2. As ciências sociais, mais do que nunca, são desafiadas a ser interdisciplinares usando uma gama de métodos não apenas mistos em termos de seu caráter quantitativo e qualitativo, mas também online e offline, e a ser sensíveis às desigualdades interseccionais históricas e contemporâneas experimentadas globalmente pelas pessoas. Nós, cientistas sociais, precisamos perseguir de maneira mais confiante agendas emancipatórias transformativas em vez de esconder nossa política atrás de alegações de objetividade positivistas. Informadas e informados por abordagens feministas transnacionais e decoloniais, estudiosos e estudiosas feministas têm procurado cada vez mais epistemologias e metodologias alternativas, além de práticas políticas, ao mesmo tempo em que se alinham a “processos e forças de regeneração, revitalização, rememoração e visualização”, citando Leanne Simpson.

    3. É muito cedo para prever se a pandemia vai acelerar ou alterar radicalmente as mudanças e os processos que temos visto se desenvolver durante as últimas décadas devido à neoliberalização das economias, a mudanças climáticas, à ascensão do autoritarismo político, ao crescimento da mídia social e das assim chamadas operações de influência com uso de fake news. Sabemos, no entanto, que a crise atual se desdobrará de forma diferente a depender de contextos globais, além de ampliar desigualdades de gênero, raciais, econômicas e políticas existentes. Ela vai impactar os mais marginalizados, incluindo mulheres, indivíduos LGBTIQ+, pessoas com deficiências, idosos, pobres e os refugiados. Meu próprio trabalho sobre mobilização de gênero no Oriente Médio e suas diásporas procurou mostrar como guerras, conflitos e mudanças drásticas em políticas econômicas impactam mulheres e relações de gênero de forma desproporcional. Buscou também, todavia, analisar como mulheres e indivíduos LGBTIQ+ se mobilizam contra as crescentes desigualdades interseccionais e as políticas públicas autoritárias que emergiram na região, e a elas resistem.

    4. NadjeAl-Ali, “Feminist dilemmas: how to talk about gender-based violence with reference to the Middle East?”; KristinaHinze e Izadora Zubek, “Why the covid-19 pandemic needs an intersectional feminist approach”; Jose Itzigsohn e Karida L. Brown, The sociology of W.E.B. Du Bois: racialized modernity and the global color line.

    Nísia Trindade Lima

    1. Sim. Na teoria sociológica temos importantes trabalhos que, seguindo diferentes perspectivas e metodologias, podem contribuir de forma mais ampla para a análise dos efeitos sociais e políticos da pandemia da covid-19. Em primeiro lugar, faz-se necessário lembrar que os processos de saúde e doença têm sido objetos de estudos antropológicos, sociológicos e da ciência política, além dos estudos históricos, uma vez que eles são fenômenos, a um só tempo, biológicos e sociais indicadores de processos mais amplos, tais como desigualdades e inequidades sociais; relações público e privado; representações sobre o corpo e os fenômenos biológicos, para citar apenas algumas das questões mais frequentes nesse campo temático.

      No caso de uma doença causada por um vírus novo, altamente transmissível e acarretando graves complicações em alguns indivíduos, para a qual não há medicamentos eficazes e seguros, tampouco vacina, as estratégias de enfrentamento implicam complexa engenharia social de controle epidemiológico: distância social; isolamento social; rastreamento de contatos com pessoas infectadas. Tais medidas tornam-se referências constantes deslocando-se do discurso epidemiológico para a gramática do cotidiano das populações em todo o mundo.

      Frente ao desafio representado pela covid-19, um dos temas-chave são os grupos vulneráveis e a análise de conceitos e práticas epidemiológicas à luz de questões centrais para a teoria social, tais como desigualdades e sua percepção; impacto nas relações de gênero e nas discussões sobre ciclo de vida, especialmente no que se refere aos idosos. Ainda que com financiamento restrito comparativamente a outras áreas do conhecimento, as ciências sociais têm sido contempladas em alguns editais e, na Fiocruz, o Programa Inova Covid abrange todos os campos disciplinares. À guisa de exemplo, cabe mencionar também que o CNPq aprovou um projeto integrado de pesquisa em ciências sociais dedicado ao estudo dos impactos sociais da pandemia da covid-19, com foco em grupos vulneráveis, e coordenado pelos pesquisadores Jean Segata (UFRGS) e Denise Pimenta (Fiocruz Minas Gerais). O projeto enfatiza a ampla agenda de pesquisas que relaciona preocupações socioantropológicas e emergências sanitárias, envolvendo questões como equidade e desigualdade; relações humano-animais; bioética e biopolítica.

    2. Na área de pensamento social no Brasil, alguns temas fundantes têm grande importância para o estudo da pandemia. É o caso das discussões sobre nação e região, que trabalhei em diferentes textos, como por exemplo no livro Um sertão chamado Brasil, e mereceram uma bela síntese em artigo de Elide Rugai Bastos, “Região e nação: velhos e novos dilemas”, publicado no livro Agenda brasileira (organizado por André Botelho e Lilia Schwarcz). Um tema de forte presença no imaginário da pandemia é o do “país continental” e que, portanto, teria diferentes momentos de manifestação epidêmica. Bem, qualquer pandemia trará diferentes relações tempo/espaço, não se configurando como fenômeno sincrônico nos diferentes países por onde o vírus circula. Isso parece um tanto óbvio, mas o que precisa ser acentuado diz respeito às desigualdades entre as regiões de um mesmo país, o que é bem o caso do “continente chamado Brasil”. No que se refere à dualidade nação/região, o texto de Elide Rugai Bastos ressalta a atualidade do problema, referindo-se à distribuição desigual de bens entre as regiões e os componentes da população brasileira, expressos não somente na participação na renda, mas na “desigualdade de acesso à educação, à saúde, à moradia, ao transporte, aos bens culturais, aos direitos de cidadania, à representação política para a própria formulação dos problemas”. Pode-se acrescentar a participação desigual em um processo de desenvolvimento econômico e social que requer a ciência, a tecnologia e a inovação como seus fundamentos.

      No caso da pandemia da covid-19, a análise do que ocorre nas diferentes regiões desnuda essa desigualdade e põe em destaque aspectos que não vêm sendo adequadamente considerados seja pela análise sociológica da epidemia, seja pelas políticas públicas muitas vezes propostas. No caso da pandemia tem-se falado em vulnerabilidade relacionada à desigualdade social não apenas de renda, mas de moradia, acesso a saneamento e a outros serviços públicos. Pouca atenção vem merecendo a distribuição espacial dos recursos públicos e os problemas de mobilidade geográfica. Quanto a esse aspecto, vale mencionar a dramática situação vivida na Região Norte, em que se verificou a grande importância da distância em relação a centros hospitalares e os problemas de circulação e mobilidade. Especialmente no estado do Amazonas constatou-se que os caminhos do vírus foram os mesmos dos barcos, muitos navegando ilegalmente, percorrendo os rios, principais vias de transporte. A interiorização da doença vem sendo intensa e, segundo o inquérito sorológico realizado pela Universidade Federal de Pelotas, a Região Norte responde pelo maior índice relativo de contaminação. Outro grave problema refere-se à contaminação dos indígenas, em grande parte como resultado das atividades de garimpo e grila- gem de terras, problema também observado no Centro-oeste.

      O par nação/região, contudo, não deve ser visto apenas sob o prisma das desigualdades regionais, mas também como uma relevante construção política. Verificamos durante a pandemia o fortalecimento de alguns arranjos locais, a exemplo do Consórcio Nordeste, associação criada originalmente com o mesmo propósito de outros arranjos regionais no país para facilitar processos administrativos dos governos estaduais, e que hoje tem ganhado maior identidade e protagonismo na definição de diretrizes e ações frente à pandemia.

    3. Discussões sobre mudanças sociais, políticas e culturais profundas relacionadas às epidemias e pandemias há muito tempo fazem parte do repertório das ciências sociais. Como a covid-19 provém de um vírus, SARS-Cov-2, que originalmente não infectava humanos, e o contexto de transmissão está relacionado ao mercado de Wuhan, na China, um primeiro ponto que me vem ao examinar a questão consiste na relação entre humanos e animais não humanos. Para melhor pensá-la remeto os leitores ao instigante texto de Claude Lévi-Strauss “A lição de sabedoria das vacas loucas”, publicado em Estudos Avançados e originalmente artigo divulgado em La Repubblica, em 1996. Nele, o antropólogo francês analisou o fenômeno da vaca louca como uma indução ao canibalismo, uma vez que a fonte da contaminação estaria na farinha de origem bovina com a qual o gado era alimentado. Segue-se interessante texto com referências à premonição de Comte sobre animais como laboratórios nutritivos e os prováveis efeitos da pandemia, entre eles a possível mudança no regime alimentar das sociedades humanas. Sobre o papel da ciência e da técnica, ele diria “os agrônomos se encarregarão de fazer aumentar o teor proteico das plantas alimentares, os químicos, de produzir em quantidade industrial proteínas sintéticas. Mas, ainda que a encefalopatia espongiforme (nome científico da doença da vaca louca e de outras aparentadas) se instale de forma duradoura, apostamos que o apetite pela carne nem por isso desaparecerá. Sua satisfação se tornará apenas uma ocasião rara, custosa e cheia de risco”.

      Desse modo, uma primeira ordem de problemas a ser considerada refere-se às relações entre humanos e animais não humanos e a natureza. Esse é, por exemplo, o principal argumento levantado pelo biólogo Jared Diamond ao discutir a chegada de novos vírus, a exemplo do novo coronavírus. O autor vem observando os riscos de novos patógenos originados de animais silvestres e com potencial transmissão para humanos, situando o problema entre os mais importantes referidos à questão ambiental na contemporaneidade.

      Outra ordem de problemas consiste no impacto das medidas de distanciamento social, necessárias em parte enquanto não houver recursos científicos e tecnológicos, especialmente vacinas, para efetivo controle da doença. A médio prazo, interessantes análises abordam um novo tipo de estratificação social entre trabalhadores, com favorecimento dos que apresentarem anticorpos para a covid-19. Ainda que não exista qualquer evidência científica sobre essa imunidade, chamada com frequência pela mídia de passaporte imunológico, em recente artigo publicado no periódico The Guardian, “Are you immune? The new class system that could shape the Covid-19 world”, epidemiologistas e cientistas sociais advertem para as implicações da crença de que a presença de anticorpos, detectados por testes sorológicos, seja evidência de imunidade. No texto são enfatizadas possibilidades discriminatórias no mercado de trabalho, bem como nas políticas imigratórias, com benefício para pessoas covid free, conforme se passou a dizer em linguagem informal.

      No que se refere ao mercado de trabalho, a tendência mais forte, que já estava em curso, consiste na redução do trabalho formal e consequente aprofundamento da perda de mecanismos de proteção social, no qual se observa a tendência para dramática redução das políticas do estado de bem-estar social em países europeus e, no caso do Brasil, para perda de direitos sociais, cujo histórico de implementação remonta aos anos 1930, e cuja efetiva ampliação se dá com a Constituição de 1988. Desemprego e mudanças de vínculo no mundo do trabalho são os mais importantes desafios, acelerando tendências já em curso. Ao mesmo tempo, para as classes médias a intensificação do chamado home office trará novos desafios para a sociabilidade no mundo do trabalho e os vínculos com as organizações empresariais. No que se refere à proteção social e à atenção à saúde, a análise dos distintos cenários no mundo vem demonstrando a importância dos sistemas universais de saúde – e, no caso brasileiro, do SUS – para o enfrentamento das iniquidades realçadas no contexto da pandemia. A imagem positiva de um sistema de saúde, objeto em regra de forte valoração negativa por parte da mídia e outros setores, é um efeito positivo, mas que não se pode efetivamente afirmar como duradouro.

      No plano global, a pandemia põe em relevo a relação entre os Estados nacionais, o controle de fronteiras e, também, a vulnerabilidade até mesmo de países ricos no que diz respeito à concentração da produção industrial de itens fundamentais para a saúde. Todos os dias lemos notícias sobre a falta de respiradores, equipamentos de proteção industrial e medicamentos. No Brasil, esse debate tem motivado o fortalecimento de um conceito e um conjunto de práticas há muito defendidos por instituições como a Fiocruz e que logrou institucionalização no âmbito do Ministério da Saúde: o do Complexo Econômico e Industrial da Saúde, englobando um conjunto de ações que partem da premissa de que ciência, tecnologia e inovação em saúde são parte constitutiva e crucial para o desenvolvimento socioeconômico sustentado do país e devem combinar poder de compra do Estado, capacidade de transferência tecnológica e acesso aos produtos por intermédio do SUS.

      Ao se tratar de um evento multifacetado, o desenho de possíveis cenários remete a um amplo conjunto de problemas a ser analisado pelas ciências sociais. Impossível, e mesmo não desejável, situar o debate nos termos ingênuos do par otimismo/pessimismo. Fato é que a eclosão da pandemia coincidiu com outros processos sociais em curso. Já me referi ao impacto no mundo do trabalho, mas é importante também mencionar a presença de fortes argumentos científicos em um período no qual o ataque à ciência e aos cientistas tem sido uma constante, como bem analisou Jeffrey Alexander no artigo “Vociferando contra o Iluminismo”, publicado por Sociologia & Antropologia.

      Por fim, o controle da covid-19 hoje e, ao que tudo indica, nos próximos anos, ainda que atinjamos êxito com o desenvolvimento de uma vacina, requer o aprofundamento da democracia e de relações virtuosas entre direitos individuais e coletivos; estes últimos de reconhecimento tardio, mas de importância crucial para o futuro da humanidade. Desse modo, é na dimensão política das relações sociais que se pode antever algum aprendizado positivo com capacidade de construção de projetos orientados por mais equidade, justiça e cidadania. É apenas assim que se pode projetar outro mundo após a trágica experiência hoje vivida em escala planetária.

    4. De natureza essencialmente controversa, como o foram outras pandemias, o processo em curso não pode ocorrer sem graves dissensos, e a efetivação de mecanismos de controle só pode se dar com fortalecimento da solidariedade social. Daí o relativo paradoxo de medidas de isolamento social parecerem indicar maior presença da sociedade, no sentido que um autor da teoria sociológica clássica, Émile Durkheim, tão bem desenvolveu em obras como O suicídio: a força da sociedade estaria na sua presença nas mentes individuais e capacidade de orientar comportamentos. Em outra perspectiva, Reinhard Bendix também contribui para esse debate sociológico sobre solidariedade social em seu conhecido livro Construção nacional e cidadania.

      Em texto publicado no mês de abril no blog da BVPS, Tatiana Landini recorreu a outro autor clássico da teoria sociológica, Norbert Elias, especialmente a sua obra O processo civilizador, para discutir a interdependência em tempos de covid-19. Ao se deter na obra do sociólogo holandês Johan Goudsban, mais especificamente Public health and the civilizing process, a autora retoma o conceito de interdependência como chave explicativa para a ação social e remete à discussão da interdependência provocada pelas doenças transmissíveis. Isso não implica simetria nas relações sociais, pois, inversamente, as desigualdades sociais se manifestam na história das doenças, do que seria exemplar a criação de conselhos de saúde e medidas de quarentena na Europa durante os tempos de peste. As classes altas teriam muito mais condições de proteção, refugiando-se em casas protegidas, restando aos pobres o isolamento em instituições asilares. Esse veio analítico também aparece na análise de Abram de Swaan sobre a interdependência entre Estados nacionais e a definição de políticas públicas de saúde, desenvolvida no livro In care of the State. Tema retomado por Gilberto Hochman em A era do saneamento, livro no qual realizou estudo da gênese de políticas públicas em saúde no Brasil, sobretudo o fortalecimento do papel do Estado nacional como resultado do aumento da consciência da interdependência social motivada pelas doenças transmissíveis.

      Em termos contemporâneos um grande divisor de águas foi a epidemia de aids. A própria expressão com que a epidemia foi inicialmente denominada pela mídia, câncer gay, mobilizou importantes linhas de pesquisa em todas as ciências sociais, tal como se pode ver na produção da pós-graduação na área de ciências sociais e também na área de saúde pública ou saúde coletiva (denominação consagrada no Brasil). Discussões sobre estigma e grupos de risco, processos de negociação entre ativistas, comunidade científica e autoridades políticas em torno de acesso a tratamentos, entre outras reivindicações, performaram a história dessa epidemia e têm valor heurístico para se pensar a covid-19. E também se reforçaram, durante os anos 1980 e 1990, os estudos históricos sobre doenças sexualmente transmissíveis, a exemplo da sífilis, que no Brasil foi objeto, entre outros trabalhos, da tese, posteriormente publicada em livro, Tributo a Vênus, de Sergio Carrara.

      No campo dos estudos históricos remeto os leitores à excelente coleção de textos direta ou indiretamente relacionados à pandemia publicados na página da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Alguns deles, a exemplo de “O laboratório e a urgência de mover o mundo”, de Simone Kropf, mobilizam os estudos sociais da ciência e perspectivas como as de Bruno Latour para nos lembrar que o papel das ciências sociais não se restringe ao impacto social, econômico e político das epidemias, mas antes nos permite pensar as condições de possibilidade para o surgimento das doenças e sua construção como fato científico. Caminhos como esse nos ajudam a entender, ao mesmo tempo, a gênese da epidemia e a construção social dos conhecimentos a ela relacionados, uma chave de leitura importante a permitir que sigamos o percurso da covid-19 do mercado de Wuhan aos laboratórios de virologia, à disseminação dos vírus por meio das viagens aéreas em um primeiro momento, até a construção dos diferentes cenários epidemiológicos e regramentos nos Estados nacionais e orientações da Organização Mundial da Saúde.

      Por fim, é preciso não se descuidar da dimensão subjetiva dos fenômenos mais amplos citados. Para tanto, nos auxilia a perspectiva sociológica proposta por Norbert Elias, na qual as relações de interdependência social, entre grupos e também entre indivíduos, configuram uma economia dos afetos e nos ajudam a estabelecer uma hipótese que confere papel decisivo às ciências sociais em tempos de pandemia. De fato são as relações sociais que medeiam a relação biológica entre os corpos humanos e os vírus.

    Olli Pyyhtinen

    1. Eu penso que sim. Para mim, a tarefa política crucial da teoria sociológica é participar da tentativa de dirimir alguns dos desafios mais significativos e urgentes do nosso tempo. Desse modo eu vejo a teoria não apenas como um sistema de ideias, mas também – e essencialmente – como uma prática, como uma forma de se conectar e se importar com o mundo. E estou convencido de que a teoria sociológica tem muito a oferecer não só em termos de uma compreensão das consequências políticas e sociais da covid-19, mas também do acesso a um senso da gênese e espalhamento do vírus e como ambos estão emaranhados em relações humanas no mundo dinâmico, parcialmente incontrolável, fluido e relacionalmente complexo em que vivemos. Em última análise, a teoria sociológica pode também nos ajudar a aprender “com” a covid-19, não apenas “sobre” ela.

      Não vejo, no entanto, como as grandes teorias (grand theory) podem ser muito úteis nesse caso. E também não penso que podemos compreender as múltiplas escalas espaçotemporais do vírus e seus efeitos recorrendo a categorias sociológicas tão preconcebidas e costumeiras quanto agência e estrutura, micro e macro ou indivíduo e sociedade. Para realmente ver o que está acontecendo, do que se trata a pandemia de covid-19 e o que ela significa para nós individual e coletivamente, não podemos nos posicionar acima ou fora do mundo como ele era, mas sim cultivar nosso conhecimento e teorias a partir do engajamento com ele. E é claro que também precisamos prestar atenção em maneiras de fazer com que nossas vozes sejam ouvidas. É verdade que a sociologia está bastante marginalizada nas grandes discussões públicas sobre a sociedade e o futuro da humanidade. Ter algo a dizer não é o suficiente. Precisamos encontrar formas de alcançar as pessoas e falar para diferentes públicos.

    2. Meu próprio campo ou método de abordagem é o pensamento processual-relacional. Penso que as relações constituem muito da substância central da vida social; tudo o que acontece na vida surge de montagens, processos, fluxos e movimentos. Acredito que o pensamento relacional pode contribuir de maneira significativa para o nosso entendimento da gênese, natureza e efeito do vírus. Analogamente ao que o sociólogo italiano Pierpaolo Donati chamou de bens relacionais, a covid-19 é uma espécie de “risco relacional”, uma vez que tem a ver com relações. Ela não pode ser explicada por meio de referência a agentes individuais e seus objetivos, intenções ou ambições. De fato, independentemente de suas possíveis boas intenções (ou empatia pessoal), indivíduos podem infectar inadvertidamente um grande número de outras pessoas e espalhar a doença. O vírus é absolutamente relacional: ele se originou, ao que parece, de relações entre humanos e animais, é transmitido por gotículas (e possivelmente via partículas de aerossol) no contato humano ou pelo contato com superfícies contaminadas, e também nos força a impor medidas protetivas sobre relações humanas, como quarentenas, lockdowns e distanciamento espacial.

      O pensamento relacional também pode ajudar a nos reconciliar com a natureza simultaneamente local e global do vírus. A pandemia de covid-19 mostrou como antigos pressupostos microssociológicos a respeito da autonomia de interações locais e seu confinamento a um espaço demarcado simplesmente não são adequados. Nossos contatos sociais são simultaneamente constitutivos de formações sociais globais e por elas afetados. A pandemia é produzida e organizada por meio de contatos aparentemente minúsculos, insignificantes e locais, assim como pela mobilidade de pessoas entre lugares. Isso também significa que ela deixaria de existir caso esses contatos localizados fossem eliminados ou temporariamente suspensos com sucesso. O fato de que esse não foi o caso, entretanto, mostra como a vida não pode ser contida, uma vez que a nossa subsistência depende do “vazamento”.

    3. A pandemia é certamente uma catástrofe global no que toca a todos e cada um: não apenas a cada um individualmente, mas a todos em conjunto, todas as nossas ações e tudo o que nos acontece, possivelmente toda a ordem mundial como a conhecemos. Ela, contudo, não nos afeta todos da mesma maneira. Para pessoas razoavelmente privilegiadas como eu, que têm podido ficar em casa durante esse tempo todo, a vida tem sido bastante segura e protegida. Mas também estou absolutamente consciente de que essa não é a realidade de muitos outros, como enfermeiros, enfermeiras ou médicas e médicos fazendo o melhor que podem todos os dias para salvar as vidas de pacientes infectados; imigrantes apertados em apartamentos pequenos; e pessoas sem teto que não têm onde praticar o autoisolamento. E há muitos outros para quem a casa não é um ambiente seguro por conta da violência doméstica, por exemplo.

      Consequentemente, ao mesmo tempo em que somos todos afetados pela pandemia, não estamos exatamente juntos ou unidos por ou contra ela. Parece que estamos testemunhando uma colisão violenta de duas realidades. Alguns, como eu, vivem numa realidade de contenção, em que tudo fica paralisado, e o mundo inteiro parece que entrou em pausa, o que produz uma estranha sensação de calma. O espaço fechado do contêiner protege os habitantes do caos exterior (tão ilusório quanto a sensação de segurança e proteção produzida nesse caso, dado o vazamento inevitável). No entanto, para além desse mundo há uma realidade fluida habitada por pessoas em desvantagem. Essa é uma realidade de que não é possível se abster, uma realidade em que as coisas flutuam, se misturam e mudam incontrolavelmente, uma realidade de encontros incontroláveis e involuntários, contágios potencialmente fatais e transformações. No geral, a pandemia parece mais ampliar divisões sociais existentes que criar novas divisões, mas definitivamente precisamos de pesquisa empírica sobre isso para saber se esse é de fato o caso. De qualquer forma, o que acontece depois do estado de exceção é decisivo para a ordem mundial pós-pandemia.

    4. Além do tipo de sociologia processual-relacional que mencionei, a análise de redes sociais também pode ser muito frutífera, assim como os estudos globais (global studies), a sociologia da desigualdade social, a sociologia da saúde, a sociologia do espaço, novos materialismos, novas abordagens vitalistas, o estudo das mobilidades… pode escolher. Acho que os recursos teóricos e metodológicos mais úteis dependem das perguntas que fazemos, ao mesmo tempo, é claro, em que as ideias, conceitos e perspectivas que usamos em larga medida modelam os problemas que colocamos.

    Pablo de Marinis

    1. Desde la irrupción de la pandemia ha habido una verdadera explosión de contribuciones en el campo científico-social en todo el mundo. Tanto en intervenciones breves en las redes sociales como en textos más extensos en revistas o periódicos político-culturales, muchxs colegas han sentido la necesidad o se les (se nos) ha pedido que interpreten (interpretemos) los perfiles de este “nuevo mundo” emergente ante nuestros ojos. Esto no debería sorprendernos. Después de todo, es nuestro trabajo, y se nos paga un salario (también) para hacer precisamente eso. Las ciencias sociales siempre han estado comprometidas con la creación de imágenes del mundo.

      Ahora bien, la pregunta acerca de si la teoría sociológica está bien equipada (o no) para asumir este desafío, en su generalidad, me resulta de muy difícil respuesta. Intentaré de todos modos hacerlo. La pandemia (y la cuarentena) nos han sorprendido en la situación en la que nos encontrábamos antes como sociedad (con sistemas de salud y seguridad social fuertes o débiles, con mercados de trabajo protegidos o precarios, con gobiernos más o menos democráticos) y como individuos (en la familia, en la vivienda, en las redes relacionales, y en el puesto de trabajo que teníamos). Queda por elucidar si de todo esto saldremos mejores (más allá de lo que quiera entenderse por “esto” y por “salir”, e incluso por “mejores”). Lo mismo vale para las teorías con las que contábamos. Es necesario ponerlas ahora a funcionar en esta coyuntura excepcional, y ver qué sucede con ellas, si reaccionan bien, si resisten el desafío. Si pasan el examen, quizás podamos explorar qué nuevos rendimientos nos van a dar. Pero, más importante aún, si no superan la prueba, me parece fundamental estar dispuestos a revisarlas o descartarlas. En el marco de esa intensa proliferación discursiva de la que hablaba más arriba, pocos ejercicios resultan más patéticos que los de quienes (por pereza, por comodidad o por temor) se aferran obstinadamente a sus esquemas interpretativos previos, aun cuando ellos puedan haber envejecido de manera irremediable.

    2. Mi campo de especialización tiene dos aspectos interrelacionados. Uno es teórico-conceptual, el otro es metodológico. Dentro del primero, vinculado al estudio de teorías sociales clásicas y contemporáneas, mi trabajo se ha centrado mayormente en los conceptos de “comunidad” y de “masas/multitudes”. En el segundo, me han interesado sobre todo los procesos de importación-exportación cultural entre “sur” y “norte”, los cambios conceptuales derivados de estos procesos y, más precisamente, las formas mismas de analizarlos.

      No pretendo meramente legitimar mi propio espacio académico, pero creo tener algunos elementos de reflexión para ofrecer de cara a las reconfiguraciones de la vida colectiva que están emergiendo ante nuestros ojos. En las teorías sociales, “comunidad” y “masas” siempre han designado determinadas formas de vinculación social. Con gran probabilidad, de la mano de la pandemia y sus efectos, estas formas van a resignificarse en el futuro, por ejemplo, en el nuevo alcance que en ellas pase a tener la co-presencialidad. No es ahora la primera vez que en la historia de estos conceptos se experimenta un “revuelco” de lo que venía manifestándose previamente (como en su momento fue el pasaje de la crowd a la mass, o la propia idea de “comunidad imaginada”). Lo único claro es que, por el momento, no nos resulta posible saber si estos cambios serán provisorios, y luego de un cierto tiempo recobrarán su forma previa; o bien si asumirán nuevos formatos más o menos estables. Y todo esto vale tanto para los actores sociales legos que participan de estas cambiantes formas de vinculación social, como para quienes, en su condición de expertos, toman esas configuraciones como objeto de análisis.

      Vivimos un momento histórico en el cual las diferencias entre “sur” y “norte” se vuelven más irrelevantes que nunca, porque la pandemia no se ha detenido ante las fronteras, y ha atacado de manera igualmente impiadosa países con las más disímiles formas de organización social, política, religiosa etc. Pero a la vez se refuerza el alcance de las diferencias previamente existentes entre regiones, y aún dentro de ellas. Valga esto sólo como un ejemplo para subrayar el hecho de que nuestro presente está signado por una fuerte ambivalencia, pero que no es ésta la primera vez en la que ello sucede (¿no decían esto mismo los sociólogos clásicos acerca de la modernidad y el capitalismo?). Lo que vuelve a quedar claro una vez más es que si las teorías sociales no se ponen a la altura de la multidimensionalidad de este escenario, quedarán condenadas a ser apenas comentarios deshistorizados y empecinados en que las cosas funcionen como ellas quieren que lo hagan, pero ciertamente poco capaces de la descripción y el análisis de las complejidades emergentes.

    3. Para calibrar adecuadamente el alcance de los cambios en curso, creo que será necesario tomar la precaución de no sucumbir ante dos tendencias habitualmente presentes en numerosos análisis sociales, y que me parecen igualmente erróneas. Una, la que parte del básico supuesto de que “no hay nada nuevo bajo el sol”. Otra, la que postula la “absoluta novedad” de las configuraciones emergentes. A la primera, con su insistencia en el eterno retorno o en la persistencia de “lo mismo”, podría escapársele de las manos la irrupción de fenómenos que quizás sean enteramente nuevos (la “tesis del cambio social profundo” sugerida en la primera pregunta). A su vez la segunda, al abonar unilateralmente la idea de “lo nuevo”, podría perder densidad histórica en su incapacidad de reconocer que lo presuntamente novedoso quizás sólo exhiba un cambio de grado o de intensidad de lo ya existente con anterioridad (es decir, la “tesis de la aceleración” indicada en la segunda pregunta).

      Como puede verse, a las dos preguntas las estoy contestando simultáneamente por “sí” y por “no”. Eso es, por el momento, lo único para lo que me siento autorizado, con las herramientas teóricas con las que cuento y con las extremadamente precarias evidencias hasta ahora construidas. Creo que necesitaremos algo de tiempo y de perspectiva histórica para que los estados de cosas hoy en plena ebullición y excepcionalidad se estabilicen de alguna forma, y así poder elucidar estas cuestiones con algo más de precisión (¡el viejo tema del viejo búho de Minerva hegeliano, reloaded!). Un momento en el cual en buena parte de la humanidad se han detenido los sistemas de producción, de transporte, educativos, de entretenimientos masivos, las migraciones y muchos etc. más, no parece ser el más proclive para alumbrar diagnósticos de futuro muy contundentes.

    4. Más allá de algunas indicaciones incidentales, como científicxs sociales no hemos sido mayormente capaces de prever la irrupción de una pandemia de esta magnitud. Tampoco parece que estemos en las mejores condiciones de anticipar los perfiles del porvenir. Si bien toda mi vida he consumido “Grand Theories”, y he escrito, investigado y enseñado durante años sobre ellas, hoy por hoy, en especial en la situación en la que estamos viviendo, encuentro mucho mayor provecho en aproximaciones de “alcance intermedio”, que vuelen “más bajo” y piensen “más corto”, que formulen buenas preguntas y que no necesariamente ofrezcan rutilantes respuestas. Me aburren considerablemente y me parecen huecos e irrelevantes los textos en los que se afirma de manera categórica que “vamos hacia un mundo X o Y”, con juicios en los que no suelen escasear prefijos del tipo “neo” o “post”. “El trabajo”, “la sociedad”, “el sujeto”, “la historia”, “el capitalismo”, “la clase obrera” y “Dios” ya fueron dados por muertos en numerosas ocasiones. No voy a decir que siguen sanxs y salvxs, pero cabe al menos admitir que allí están, entre nosotrxs, quizás golpeadxs y reconfiguradxs, seguramente reinventadxs, pero están, cambian, mas no perecen.

      Por todo esto, en lugar de rimbombantes cantos de sirenas, de Grandes Nombres que producen eso que conocíamos como Grandes Obras del Pensamiento Universal, me gustaría realzar aquí el trabajo de esos ignotos equipos de investigación, del norte y del sur, que están tratando de describir y comprender, a escalas diversas pero siempre con gran sentido de la situatedness, qué significa enseñar y aprender cuando no hay ya aula “física”, cómo se reconfigura la dupla ver/ser visto en entornos laborales virtuales, como cambian las pautas de movilidad en el espacio urbano cuando se desestandarizan los horarios y ritmos de la actividad colectiva, qué significado asumen las relaciones entre lo global y lo local cuando los Estados nacionales parecen haber recobrado un protagonismo que habían perdido, cómo se redefine el papel del conocimiento experto en la producción de la verdad cuando se multiplican los discursos que pugnan por hablar en nombre de ella, y muchos temas más que hoy están en plena efervescencia.

    Patricia Hill Collins

    1. As tradições de pesquisa sociológica empírica, em políticas públicas e da sociologia pública estão bem posicionadas para analisar aspectos variados da pandemia de covid-19. A pesquisa sociológica empírica quantitativa, por exemplo, descreve importantes dinâmicas organizacionais, estruturais e culturais da covid-19, e mais visivelmente como desigualdades sociais de classe, raça, gênero, etnia e cidadania fazem dessa uma experiência amplamente diferente para populações privilegiadas e desprivilegiadas; descreve por que pessoas negras e pardas, pobres, idosos e aquelas que fazem o trabalho pesado têm mais chances de morrer de covid-19; como políticas públicas em saúde e questões de financiamento têm impacto importante no espalhamento e tratamento da covid-19; e como a mídia modela as percepções da própria pandemia. As tradições de pesquisa sociológica empírica qualitativa oferecem discussões nuançadas de como as pessoas experimentam essas tendências sociais mais amplas em suas famílias, locais de trabalho, comunidades, escolas e entre si.

      Ao mesmo tempo a teoria sociológica hegemônica, em especial na sociologia norte-americana, talvez seja menos útil para iluminar as forças sociais por trás dessa pandemia global, principalmente porque ela tem sido tímida demais na assunção de uma postura crítica em face de temas importantes dos nossos tempos. A covid-19 é um desses temas, assim como os protestos em todo o mundo contra o racismo estrutural que ocorreram no contexto de uma pandemia global, e a vulnerabilidade econômica de uma grande porcentagem da população mundial cujas demandas ficaram mais nítidas. Essas três questões sociais interligadas estão visíveis hoje, mas também sinalizam problemas sociais globais de longa duração que demandam análises estruturais. As tradições sociológicas teóricas e de pesquisa podem ter ferramentas para produzir uma análise crítica de fenômenos como esses, mas é improvável que o façam se uma postura crítica não for construída dentro do próprio tecido da área.

      A pandemia da covid-19 revelou uma clivagem na sociologia enquanto disciplina acadêmica. Fundamentalmente, a teoria sociológica hegemônica permanece desconectada das análises teóricas que podem informar e guiar as cada vez mais sofisticadas ferramentas metodológicas de sua própria pesquisa empírica. Mais do que isso, ela está desconectada do engajamento em questões sociais importantes de desigualdades na área da saúde, racismo estrutural e vulnerabilidade econômica que permanecem marginalizadas no mainstream da teoria sociológica. Muito da teoria predominante enfatiza demasiadamente questões que interessam sobretudo a elites, ou aborda tais questões de forma direcionada a elas, à custa dos tipos de questões que preocupam pessoas comuns.

      A teoria social “dentro” da sociologia se atrofiou, com o valor da teoria sociológica mainstream sendo progressivamente reduzido a fim de providenciar algum tipo de enquadramento explicativo para conjuntos de dados previamente coletados, numa reflexão posterior em vez de anterior aos trabalhos. Temos pesquisas sociológicas empíricas fortes que “descrevem” tópicos como as diferenças profundamente enraizadas e crescentes de patrimônio e renda, disparidades raciais na saúde e diferenças de gênero indo de encontro a problemas sociais como a violência. Nossas teorias, no entanto, não importa o quão bem amarradas ou eloquentes, permanecem escritas em prosa densa que a maioria dos sociólogos não consegue ler ou entender. Num contexto em que questões relativas a uma pandemia global, racismo estrutural e insegurança econômica mundial para pessoas desfavorecidas demandam análises estruturais do poder e da riqueza, a ênfase excessiva da teoria sociológica predominante sobre questões culturais e de identidade individual parecem estranhamente fora de tom em relação às preocupações das pessoas comuns. O produto disso é uma área que se omite de investigar questões de pesquisa e interpretar conclusões que se afastem muito do conhecimento convencional.

      Porque eu sou alguém de dentro da sociologia, eu ofereço essas críticas de um lugar de amor. Vejo um tremendo potencial na teoria sociológica contemporânea se fizermos um trabalho melhor no desenvolvimento de tradições teóricas “críticas” dentro da sociologia, que confrontem os problemas sociais dos nossos tempos. Ir de encontro ao desafio de entender e explicar essa pandemia global exige abordagens arrojadas e imaginativas que ironicamente pensem fora da caixa de modo a fazer uma nova “caixa” para a teoria contemporânea. As peças dessa análise arrojada existem, mas não necessariamente na sociologia enquanto disciplina. Quando eu ensinava teoria sociológica contemporânea para alunos de graduação, dependia cada vez mais de teorias sociais desenvolvidas fora da disciplina. Outras áreas de estudo me ofereceram muito mais espaço para a exploração teórica crítica de questões importantes sobre descolonização, opressão das mulheres, racismo, direitos humanos e fenômenos globais semelhantes do que a própria sociologia norte-americana. A filosofia, a crítica literária e tradições narrativas nos estudos de mídia, estudos de mulheres, estudos americanos, estudos culturais e áreas interdisciplinares semelhantes oferecem insight analítico rico para pensar o mundo social. Apesar disso, porque essas áreas de estudo geralmente não têm a análise estrutural da sociologia e das ciências sociais, seus enquadramentos teóricos críticos foram incorporados de forma assimétrica à sociologia.

      A teoria social crítica desenvolvida fora da sociologia, contudo, não substitui a teoria social crítica desenvolvida dentro dela. A covid-19 oferece uma oportunidade importante para a sociologia examinar seus próprios pressupostos e práticas. Como uma disciplina de fronteira, ela faria bem em direcionar seu olhar para fora, em direção às muitas áreas que também estão lidando com o significado desta pandemia, e construir novos padrões para a prática sociológica. Eu ofereço um diagnóstico de um problema de primeira ordem dentro da área: a relação entre a teoria sociológica crítica e a pesquisa sociológica empírica ilustra um vão que existe entre a produção de análises fortes acessíveis a um grande número de sociólogos na esfera pública que estejam preocupados com a abordagem de problemas sociais e a pesquisa sociológica em andamento que informa questões sociais. Questões de discriminação no mercado de trabalho, desemprego estrutural, deficit de moradia e disparidade na educação, moradia adequada e bem-estar das famílias são todas estudadas na sociologia. Todas essas questões refletem preocupações econômicas e podem formar a base para o desenvolvimento de uma teoria sociológica crítica que analise, explique e/ou sugira estratégias de ação em termos que possam ser compreendidos por leigos.

      A teoria sociológica equipada para o desafio de lidar com uma pandemia global não surgirá da natureza detalhada, metódica e cumulativa da pesquisa empírica em ciência social nem da desconexão com as necessidades de nossos estudantes e do público em geral. Estou cansada de ver gente ofegante com as descobertas das disparidades na atenção a negras e negros no sistema de saúde, chegando à conclusão de que talvez seja por causa do racismo, sem ter muita exposição à teoria crítica da raça. Antes da covid-19 e dos protestos globais contra o racismo estrutural os sociólogos podiam se esconder atrás dos seus dados, produzindo análises eloquentes de tendências que eles não ajudaram a criar e em relação às quais nada podem fazer. Os teóricos da sociologia têm estado mais afastados que seus colegas que fazem trabalhos mais empíricos, e é fácil assumir que o racismo, o sexismo e a pobreza estão acontecendo com alguém e não nos afetam. A covid-19, no entanto, implodiu essa fantasia. Essas práticas dentro da sociologia que nutriam consensos teóricos agora parecem tacanhas e míopes no contexto. Por exemplo, os sociólogos estão muito mais de acordo a respeito do que a teoria sociológica foi no passado do que a respeito de para onde ela pode estar indo. Ironicamente, Marx, Weber, Durkheim e Simmel, os pais fundadores da sociologia, entre outros, aparentemente têm mais a dizer sobre como a teoria sociológica informa a pesquisa sociológica contemporânea do que a teoria sociológica do nosso próprio tempo. Suas ideias duram porque eles foram pensadores críticos dos grandes problemas de suas épocas. Esses pensadores incorporaram ao coração da disciplina ideias sobre o mundo social com que eles se confrontavam. A teoria sociológica contemporânea faria bem em copiá-los.

    2. Essa é uma pergunta direta e frustrante de se responder, para mim, principalmente porque não estou surpresa com as maneiras pelas quais as múltiplas formas de desigualdade social modelaram a emergência da covid-19 enquanto um fenômeno global, bem como a vasta gama de reações organizacionais, políticas e emocionais a ela. Desigualdades sociais de raça, classe, gênero, nacionalidade e sexualidade não são simplesmente diferentes especialidades acadêmicas para mim. São signos de sistemas de poder que constituem enquadramentos explicativos importantes para a compreensão do mundo social, mas, mais do que isso, também modelam minha vida cotidiana, incluindo minha carreira como socióloga. Enquanto mulher negra criada entre a classe trabalhadora, não era esperado de mim que tivesse um assento na mesa da teoria sociológica e certamente nem uma posição de comando dentro da própria disciplina. Enquanto teórica social crítica, já tive que perguntar muito a respeito das próprias condições que fazem meu trabalho possível e acessível e, caso elas não existam, trabalhar para que passem a existir. A economia política da produção e do consumo da teoria social em geral, e da teoria sociológica em particular, modela as questões, as bases do conhecimento e as implicações de todo trabalho intelectual.

      Para mim, no entanto, tem sido fascinante e desalentador ver como a mídia norte-americana e muitos de meus colegas, assim como o público norte-americano aparentemente se surpreendeu com o que eu experimento como fatos sociais, nomeadamente, que afro-americanos morrem em taxas mais altas de covid-19 do que norte-americanos brancos, um padrão também observado entre latinos, membros do povo Navajo e outras pessoas de cor, além de idosos vivendo em casas de repouso. Essa narrativa das mortes em excesso na sociedade norte-americana não é nova, e reaparece com uma frequência deprimente nas estatísticas de abuso policial, negligência médica, altas taxas de encarceramento, ou qualquer outra vulnerabilidade associada à pobreza. Afro-americanos, latinos, lideranças indígenas e intelectuais progressistas vêm levantando esses tópicos há algum tempo. Conforme a pandemia se desenvolveu, padrões semelhantes de mortes em excesso emergiram em variados contextos nacionais. Como essas mortes nos EUA e no Brasil tornam dolorosamente visível, a qualidade da liderança nacional faz uma grande diferença na abordagem de temas sociais importantes mesmo no melhor dos momentos. E a covid-19 é o pior dos momentos. Essa pandemia desfez um acordo de cavalheiros de não falar de desigualdades sociais de raça, classe, gênero e sexualidade, um acordo com o qual muitos acadêmicos foram coniventes. Ao longo da minha carreira, tem sido exaustivo encontrar uma espécie de ingenuidade a respeito das desigualdades sociais em pessoas que querem que eu as veja como boas pessoas. Essa ignorância é benigna ou profundamente conivente? De qualquer forma, qual deveria ser minha resposta numa situação assim? Lidar com a covid-19 é emocionalmente exaustivo, em especial quando é necessário confrontar as mesmas perguntas que já escuto há anos.

      Intelectualmente, seria muito mais fácil identificar aspectos aparentemente não controversos das minhas pesquisas já feitas e simplesmente dizer mais do que já venho dizendo há algum tempo. Se eu bater na tecla da desigualdade social no contexto da covid-19, pode ser que finalmente seja ouvida, mas de formas que podem ser tão facilmente esquecidas no futuro quanto as legiões de intelectuais antes de mim que pensaram que mais evidência era a solução para a falta de sensibilidade. Acho, entretanto, que precisamos nos esforçar para além do que pensamos ser verdade e nos perguntar como a covid-19 desafia tudo que pensamos saber, especialmente sobre os enquadramentos que invocamos com total certeza. Para muitos acadêmicos, a pandemia criou uma oportunidade para “vender” mais das mesmas ideias dentro da academia, um lugar que valoriza nosso pensamento e mesmo nosso corpos se servirmos a agendas neoliberais. Nossas experiências com o capitalismo e sua forma-mercadoria dentro de espaços acadêmicos refletem processos de suavização intelectual modeladores de nossa habilidade de resistir agressivamente às condições de mercado que limitam nossa habilidade de enquadrar os argumentos de que precisamos. Esse tipo de autorreflexividade e diagnóstico é desafiador mesmo no melhor dos momentos. Ele é especialmente difícil agora, porque tentar analisar assuntos-chave em meio a eventos que explodem diariamente e podem mudar de direção tão rapidamente é algo extremamente complexo. No entanto, a disrupção da economia global significa que talvez esse seja exatamente o momento para recuar e avaliar onde estamos.

      Quando comecei a responder às perguntas desta entrevista, tive que me relembrar de que minha fadiga e meu estresse relativos à forma como a covid-19 estava se desdobrando significavam que eu precisava pensar e sentir ao mesmo tempo – a razão acompanhada da paixão sempre me serviu bem. A explosão de protestos sociais globais contra o racismo estrutural sob a bandeira do Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) me energizou. Os protestos sociais globais não me deram um olhar novo em relação à forma como meu trabalho pode dialogar com o contexto da pandemia, mas eles me deram uma paixão renovada para esse trabalho. Esse é o outro público que forma os leitores do nosso trabalho. Se pensarmos, muito estritamente, que só estamos falando para acadêmicos, nossas análises serão tão limitadas quanto esse raciocínio.

      Atualmente, estou questionando meu próprio trabalho sobre interseccionalidade a fim de avaliar onde estou com ele e para onde quero ir. Como os dois livros que acabei de escrever sobre interseccionalidade seriam lidos se eu os estivesse escrevendo durante a pandemia ou no contexto de um cenário pós-pandemia (ver Intersectionality as critical social theory, 2019; e Intersectionality, com Sirma Bilge, segunda edição, 2020)? Meu trabalho em andamento sobre o tema se apoia num fundamento que consiste em tomar o mundo social como meu texto e colocar ideias que tipicamente não estão juntas e em diálogo umas com as outras. A interseccionalidade oferece uma análise especialmente robusta tanto do porquê de certos padrões de desigualdade social existirem quanto da forma como as pessoas que se dedicam a combater essa desigualdade o fazem. A interseccionalidade faz uso e contribui para disciplinas existentes, por exemplo, o foco da sociologia em documentar padrões existentes de desigualdade social (seu foco em estruturas sociais bem como na agência individual). Mas a interseccionalidade é tão boa quanto o uso que se faz dela – seu significado emerge pelo uso, e a pandemia a põe à prova.

      Em resposta à falta de sofisticação teórica a respeito do que a interseccionalidade é – a supracitada “descoberta” das desigualdades profundas de raça, classe e gênero, entre outras, inscritas na sociedade norte-americana –, estou aproveitando essa oportunidade para identificar o que se destaca a meu ver dentro da interseccionalidade, ainda que isso seja algo silencioso dentro do meu próprio trabalho. Uma das premissas fundamentais da interseccionalidade é que a ideia de que as pessoas estão interconectadas por categorias de raça, gênero, classe, sexualidade, habilidade, etnicidade e status de cidadania é um constructo teórico importante nesta pandemia. Porque todas as categorias têm suas histórias específicas com a desigualdade social, a interseccionalidade fornece uma ferramenta maleável para examinar intersecções específicas, por exemplo entre raça e sexualidade ou gênero e habilidade em localidades específicas. Porque a covid-19 é um fenômeno global, sem favoritismos nas suas rotas de transmissão, ela reforça a tese da interseccionalidade de que é necessário examinar a interdependência entre seres humanos, não o que os separa. Estudar as interconexões de todos os aspectos do mundo social é algo profundamente sociológico. A pandemia nos trouxe a um momento histórico que torna essas conexões mais nítidas. O protesto social global que salienta essas interconexões reflete a forma pela qual pessoas comuns e protestos locais contra o racismo estrutural abriram caminhos mostrando como esforços separados estão de fato entrelaçados e são mutuamente dependentes. Nesse contexto, a interseccionalidade enquanto teoria social crítica fornece um enquadramento importante para se pensar sobre a globalização por meio da qual as vidas das pessoas estão interconectadas e mutuamente dependentes mesmo que tais conexões permaneçam invisíveis. Não há necessidade de tentar conectar as coisas – a questão, em vez disso, é por que falhamos em ver as conexões que já existem. De que maneira os muros no nosso entorno prejudicam não apenas nossa análise, mas também nossa humanidade? Sem inventariar as interconexões existentes, é difícil imaginar e trabalhar por um mundo social pós-pandêmico mais justo.

    3. Como a situação da pandemia muda diariamente, minhas respostas a essas perguntas parecem mudar da mesma forma. Estou escrevendo para o simpósio passados três meses do início da pandemia, e logo depois dos protestos globais contra o racismo estrutural, e considero que é cedo demais para prever uma realidade pós-pandêmica. Eu certamente espero que o impulso gerado pelos protestos continue a iluminar o problema do racismo estrutural, e que a interseccionalidade enquanto ferramenta da teoria social crítica tenha protagonismo na reflexão sobre a desigualdade social global. Dito isso, porém, de fato vejo dois temas que se têm tornado cada vez mais visíveis na cobertura midiática da pandemia e espero que produzam mudanças em políticas públicas nas sociedades pós-pandemia. O grande número de pessoas que perderam renda e trabalho, assim como outros benefícios, sublinha a importância do significado do trabalho na vida das pessoas. De maneira semelhante, a visibilidade da fome não apenas entre os mais pobres, mas também entre aqueles que achavam que sempre teriam o que comer, reforça a importância da segurança alimentar para a vida em si. Antes da pandemia, suposições a respeito dessas questões eram subestimadas, representando aquilo que eu chamo de assuntos escondidos debaixo dos nossos narizes e que naturalizaram e normalizaram a desigualdade social. A pandemia trouxe o trabalho e a alimentação à consciência pública.

      A covid-19 abalou as estruturas de tudo que pensávamos que sabíamos em relação à organização e ao significado do trabalho em nossas vidas. Aquilo que já foi subestimado não pode mais o ser. Por exemplo, a pandemia criou o espaço necessário à reavaliação da importância dos diferentes tipos de trabalho na sociedade. Numa pandemia, quem são os trabalhadores essenciais? A situação ressaltou a natureza vital daqueles que servem à sociedade – os trabalhadores da linha de frente em hospitais, técnicos em emergências médicas, enfermeiros e médicas. Seu trabalho atualmente é celebrado, mas eles estão protegidos contra a exposição à covid-19 e são adequadamente remunerados? A covid-19 revelou o caráter essencial do trabalho de cuidado. Ela nos mostrou como trabalhadores dos ramos da alimentação, saúde, cuidados especiais e educação (muitos dos quais levaram suas aulas e atividades para o ambiente virtual), além daqueles que ajudam a alimentar, nutrir e ensinar, são trabalhadores essenciais. Esses trabalhadores são o fundamento da riqueza e prosperidade de uma sociedade. A experiência de ver quem realmente importa numa pandemia estimula algumas perguntas desconfortáveis a respeito de que tipo de trabalho é valorizado e bem pago ou não. Quão importante ou essencial é um publicitário? E um influencer no Instagram?

      A covid-19 desestabilizou as compreensões acerca dos supostos direitos e inseguranças relativos ao trabalho. Os tipos de trabalho que as pessoas fazem, como são vistos e como nos sentimos em relação a eles são algo que varia muito em sociedades democráticas e autocráticas, assim como em Estados-nação pobres e ricos. Ainda assim, a verdadeira alma de uma nação está em como valoriza e trata as pessoas que exercem trabalhos de cuidado e que fazem o trabalho pesado, assim como aquelas que por uma variedade de motivos não podem trabalhar. Se os trabalhadores essenciais são tão “essenciais” assim, por que tantos deles são tão maltratados como os da indústria de proteína animal, ou tão mal pagos (como os trabalhadores de creches) ou considerados tão descartáveis que precisam deixar suas famílias e mandar dinheiro para casa (trabalhadores sazonais empregados em colheitas)? Em alguns Estados nacionais a mensagem é crua: “trabalhe ou passe fome”.

      Isso me leva a um segundo tema: a visibilidade da segurança alimentar enquanto um assunto político. Todos os humanos precisam se alimentar todos os dias, mas os alimentos não são distribuídos igualmente, de maneira que muitos passam fome e são subnutridos. Eu vivo num país em que quantidades imensas de comida são desperdiçadas em bairros nobres e por restaurantes que servem clientes de classe média, e onde as pessoas pobres que precisam de assistência alimentar são estigmatizadas. A segurança alimentar é um tema político nos EUA, mas não tem sido encarado como tal.

      Atualmente, a segurança alimentar pode ser um subtema para o movimento ambientalista, especialmente em sua ênfase sobre a natureza insustentável dos nossos modos de vida contemporâneos. Os povos indígenas têm liderado o debate sobre a santidade da terra e a necessidade do seu cuidado como forma de garantir a sobrevivência humana. Esse é um esforço coletivo que requer a atenção das pessoas não apenas para as suas relações de interdependência (algo difícil até no melhor dos momentos) como para as suas relações com a terra. Junto com outros atores sociais, as lideranças indígenas apontam para os danos feitos à terra pela agricultura em escala industrial e o agronegócio como formas não sustentáveis de produzir alimentos. Ironicamente, a conexão humana crucial oferecida pela alimentação é frequentemente soterrada em discussões sobre o meio ambiente de acordo com as quais, uma vez que o ambiente fosse corretamente tratado, a fome deixaria de ser um problema.

      A crise global da covid-19 revela como a abundância, escassez ou ausência de alimentos entre diversos bairros, populações e Estados-nação traz essa discussão para o centro dos debates. Possivelmente, haverá mais mortos de fome durante essa pandemia do que em decorrência direta do vírus. Cientistas sociais e ativistas políticos fariam bem em nutrir análises e ações de advocacy capazes de alimentar as pessoas. Politicamente, é muito mais fácil organizar grupos em torno de problemas relativos à segurança alimentar em suas próprias casas, bairros, e regiões do que com base numa preocupação amorfa pelo planeta. É difícil trabalhar de maneira eficiente pelo ambiente se você estiver com fome. A alimentação tem o potencial de interligar movimentos já existentes dedicados à justiça ambiental e a disparidades de saúde de formas bastante agudas, sublinhando como a comida é central tanto para a saúde quanto para a mortalidade.

      Trabalho e alimentação são dois temas intimamente ligados, e ambos apontam para o que há de essencial na vida de todos nós. Os significados da segurança alimentar e do trabalho constituem dois temas nucleares sociologicamente embasados, teoricamente ricos e que provavelmente não desaparecerão nas sociedades pós-pandêmicas. Ambos mudaram ou prometem mudar dramaticamente em resposta à pandemia e suas consequências. Ambos são capazes de demonstrar a interdependência entre as pessoas, seja num bairro, numa região e/ou entre fronteiras nacionais num contexto global. A covid-19 está criando as bases para um pensamento relacional sobre o trabalho, a alimentação e mesmo sobre a mudança social. Está ficando cada vez mais visível para muitos de nós o fato de que nossas ações cotidianas têm implicações que estão para muito além do que podemos ver.

    4. A sociologia sempre teve que enfrentar o desafio de tentar compreender mudanças no mundo social enquanto elas aconteciam. Se não soubermos ler os sinais que nos cercam por nos apegar demais a nossas crenças sociológicas, vamos perder mudanças sociais importantes. Por exemplo, quem poderia esperar a emergência de protestos globais e multirraciais contra o racismo estrutural sob a bandeira Vidas Negras Importam? E quem poderia prever que eles aconteceriam no contexto de uma pandemia global? É sempre mais fácil ver as mudanças que estavam acontecendo quando elas já nos ultrapassaram.

      Dito isso, a covid-19 apresenta uma oportunidade para que a sociologia enquanto área de pesquisa possa repensar a relação entre teoria sociológica e – tendências mais amplas da teoria social crítica, especialmente a identificada com mulheres, pessoas de cor e outras que enfrentaram barreiras no trabalho intelectual; – tradições empíricas internas à sociologia enquanto ciência, em defesa da ciência ocidental contra as acusações de fake news, mantendo simultaneamente uma postura crítica da sua participação no racismo e colonialismo; – uma prática sociológica renovada que perspectivas mais teoricamente informadas tendem a evitar; – e a insistência para que a teoria “sociológica” seja mais intimamente associada a temas sociais importantes do presente, e não apenas aos interesses idiossincráticos de um teórico.

      Pode parecer muita coisa, mas não é impossível. O corpus formado pelo trabalho de Zygmunt Bauman modela o tipo de teoria e prática sociológica que eu gostaria de propor. Em Para que serve a sociologia? Bauman explica como o seu trabalho tenta abordar essa ampla questão no contexto de uma longa entrevista. Em linguagem acessível, ele fornece um olhar dos bastidores para a complexidade envolvida na produção de teoria social crítica e trabalho empírico em sociologia. Como teórico social, Bauman enfrentou a questão existencial de qual uso sua sociologia teria para a análise do holocausto. O diagnóstico é de primeira qualidade – seu livro clássico Modernidade e holocausto oferece uma tese provocativa a respeito dos contornos burocráticos da naturalização e normalização do ato de matar na era moderna. Faríamos bem em nos colocar a pergunta que move o trabalho de Bauman – para que serve a minha sociologia? Coletivamente, poderíamos perguntar: para que serve a teoria social?

      As ferramentas que nos ajudarão a pensar este mundo não podem ser receitas de bolo, algo como a escolha de um texto favorito para explicar a pandemia. Isso serviria apenas para reforçar o que já acreditamos ser verdade, em vez de desafiar nossas próprias práticas de leitura. O significado de um texto não está contido no texto em si, somos nós que o atribuímos. Precisamos nos equipar com as ferramentas do pensamento crítico para diagnosticar problemas sociais e desenvolver soluções criativas para eles. A noção de letramento e consciência crítica em Paulo Freire reverbera sua proposição da “leitura” do mundo social por uma lente dupla de diagnóstico e ação social. Estou menos preocupada em me voltar para textos que já existam à procura de orientação – há muitos textos assim na sociologia – do que em refinar habilidades diagnósticas que me capacitem a ler nossos tempos sem minhas próprias vendas.

      Essa pandemia nos dá uma oportunidade para avaliar criticamente nossos estimados enquadramentos e práticas. Assim como tudo associado a ela parece estar de ponta-cabeça no momento histórico, esse também é o caso dos nossos marcos teóricos. Se formos tímidos e nos escondermos atrás de uma posição eterna de crítica do que existe, vamos desperdiçar esse momento. Se nos furtarmos a assumir responsabilidade pelos nossos argumentos e suas motivações, por definição, a teoria social acadêmica crítica será crítica cada vez mais só no nome. Os contornos do novo normal que vai emergir depois da pandemia dependem do que faremos agora para nos preparar para ele. Nosso ativismo intelectual está na habilidade de fazer novas perguntas, elaborar argumentos arrojados e propor estratégias de ação que resolvam problemas, e não meramente os diagnostiquem. Em termos da teoria social crítica, esse não é o momento para seguir o rebanho. Devemos pensar além do aqui e agora para imaginar a sociedade que queremos criar. E as sementes dessa sociedade estão no que pensarmos e fizermos agora.

    Peter Wagner

    1. A reação inicial dos cientistas sociais de modo geral foi partir do instrumental utilizado individualmente e aplicá-lo à situação em tela, sem muita reflexão sobre se tais ferramentas são de fato adequadas para o propósito. Essa reação é bem compreensível ao considerarmos uma combinação de três fatores: uma situação sociopolítica altamente nova, mas sobre a qual se pensa estar em condições de dizer algo; a falta de uma competência específica para tratar da matéria, afora uma pequena área de especialização que, além do mais, é marginal nos debates sociológicos (sociologia médica e o componente ciência social da pesquisa em saúde pública); e um anseio de estar presente no debate público. Não obstante, não é justificável agir desse modo, que poupa o cientista social de fazer aquilo que ele deve fazer em primeiro lugar, a saber, examinar mais de perto o fenômeno que se quer entender.

      Com o tempo, as intervenções se tornaram mais nuançadas e sutis. Agora é mais amplamente reconhecido que estamos lidando com um fenômeno que para a sociologia, mesmo que não para a epidemiologia, ocorreu de modo totalmente inesperado. Temos, portanto, uma profunda falta de conhecimento tanto das causas quanto das consequências, ainda que ambas sejam significativamente “sociais”, não do vírus em si mesmo, mas relacionadas ao modo como ele se alastra em meio a seres humanos e consequentemente aos modos de prevenção de que isso ocorra. Com relação às consequências, há, além disso, um alto grau de incerteza, espelhando de certa forma a incerteza também presente na epidemiologia e na virologia – conforme por exemplo ela se exprime em figuras amplamente divergentes da modelagem matemática, mas aplicada ao escopo expandido das relações sociais em suas variações de intensidade e extensão.

      No que diz respeito à teoria sociológica propriamente dita, duas observações devem ser feitas. Primeiro, ao atingir o âmago da socialidade – ou seja, o contato humano –, o fenômeno revela uma teoria sociológica despreparada para chegar a esse âmago, tendo preferido teorizações mais gerais sobre formas de laços sociais e questões de coerência ou contradição na estrutura das relações sociais. Segundo, os debates do final do século XX sobre agência e estrutura levaram a um reconhecimento mais amplo da agência e criatividade humanas, bem como, consequentemente, da contingência das resultantes sociais, em contraposição ao determinismo e funcionalismo vigentes nas vertentes teóricas anteriores. Mas diante de um acontecimento altamente contingente – uma pandemia possível, mas não necessária – parece haver, ao menos até o momento, pouco que possa ser extraído desses insights teóricos.

    2. Dada a novidade da situação, impõem-se especialmente duas formas de questionamento: reflexões sobre conhecimento e a busca por comparações úteis. A primeira invoca a sociologia do conhecimento e das ciências. Uma corrente endereçaria o conhecimento do vírus. A questão é que tipo de conhecimento virológico e epidemiológico está disponível e como ele pode ser ampliado, e quais técnicas, tais como a modelagem matemática, podem ser proveitosamente aplicadas. Há uma tensão significativa entre, de um lado, o conhecimento que está geralmente disponível sobre os vírus e como eles se propagam e, de outro lado, a necessidade de conhecer “esse” vírus em particular, que difere de outros vírus em muitos aspectos relevantes. Ademais, em contraste ao que nós cientistas sociais costumamos pensar sobre o conhecimento da natureza, é importante notar que o vírus também muda, e que, portanto, o conhecimento atual não pode prever inteiramente o futuro.

      Outra corrente buscaria entender os modos pelos quais esse conhecimento entra na sociedade e na política. Nesse caso o foco incidiria na formação de comunidades epistêmicas, na pluralidade das formas de conhecimento e na disputa entre elas e a possibilidade de hegemonia ou dominação epistêmica.

      A busca por comparações invoca a sociologia histórico-comparativa, dado que estamos diante de um fenômeno que costumava ser chamado de macrossociológico, ou seja, de larga escala, com potencial de alcançar muito rapidamente a extensão global e de gerar grande transformação social. Faz algum tempo que a sociologia histórico-comparativa está fora de moda, mas dada a desorientação geral em face do fenômeno, ela pode ser útil ao fornecer abordagem e reserva de conhecimento passíveis de ser mobilizadas para entender o presente.

    3. Isso é o que todos gostariam de saber e sobre o que muitos estão especulando. Se no debate público e político podemos observar a intenção quase obsessiva – e compreensível – de voltar ao “normal”, nas ciências sociais e na filosofia grandes visões proliferam, seja na forma de utopias ou de distopias. A médio prazo, entretanto, é mais provável que venhamos a perder a noção do que é ou foi “normal” e que passemos a nos referir ao passado meramente para designar o modo como as coisas foram “um dia”. Eu proponho três fragmentos para futura discussão.

      Primeiro, podemos comparar as mudanças por vir, uma vez que é provável que elas incluam monitoramento e vigilância, com as políticas de “securização” em vigência há décadas. Há muito tempo um amigo e colega me disse que durante anos ele esperou que Israel se tornasse mais parecido com o resto do mundo, quando na verdade era o resto do mundo que cada vez se assemelhava mais a Israel em termos de medidas de segurança. Tornamo-nos habituados a muitas práticas que eram consideradas inconcebíveis até um pouco antes de ser introduzidas. Não as consideramos parte de uma transformação social maior pela qual nossas sociedades passaram recentemente (mesmo que talvez devêssemos fazê-lo).

      Segundo, podemos também comparar a covid-19 com o HIV/aids, tratando-se de uma pandemia que surgiu de maneira súbita e chocante, e que levou a reflexões sobre a importante mudança social que poderia desencadear. Mais concretamente, esperou-se essa mudança sobre o comportamento sexual, mas também havia uma impressão difundida de que se experimentava o “fim de uma era”. A mudança certamente ocorreu, mas em escala muito menor do que amplamente se esperava; o mundo “seguiu seu fluxo”. Retrospectivamente, sabemos que o principal componente da resposta veio da ciência médica por meio de melhorias no tratamento. Agora, novamente, as expectativas se concentram em uma solução médico-científica, que também mobiliza uma visão de volta ao “normal”. Se devemos de fato esperar que tal solução se apresente o mais breve possível, não devemos negligenciar a tendência de nossas sociedades de trabalhar em prol de um “conserto” científico para evitar que tenhamos de contemplar grandes mudanças em nossas práticas. A mudança climática fornece o exemplo mais preocupante tendo em vista essa atitude.

      Terceiro, observou-se que a pandemia de 1918-1920 (à qual Max Weber sucumbiu) foi sucedida de importantes mudanças nas instituições sociopolíticas, sobretudo de uma abrupta reviravolta nas tendências anteriores de “globalização”. Podemos deixar em aberto a questão de pensar se não foi a Primeira Guerra Mundial, mais do que a pandemia, o fator decisivo para essa reorientação. De um modo ou de outro, temos aqui um exemplo relativamente recente de uma transformação social importante condicionada por uma experiência amplamente compartilhada de que algo inaceitável havia acontecido e que medidas deveriam ser tomadas para evitar a recorrência de qualquer coisa semelhante no futuro. Esses eventos permitem, assim, uma comparação útil com nossa atual situação. Eles devem ser cuidadosamente reexaminados em todas as suas nuanças visando distinguir entre resultantes desejáveis e indesejáveis.

    4. À luz do que foi dito, deveríamos lançar um novo olhar sobre análises de transformações sociais que adotem uma abordagem verdadeiramente histórica, ou seja, que considere o conhecimento e a orientação dos atores no momento mesmo em que tiveram de agir (tais como Lógicas da história, de William Sewell, 2005). Em vez de ver a mudança social como determinada por interesses e funções, devemos examinar os modos pelos quais os autoentendimentos das sociedades foram transformados em reação a experiências cruciais – em particular os modos pelos quais instituições coletivas, em grande medida, ainda vigentes foram criadas a partir do final do século XIX; e compará-los aos modos pelos quais as sociedades do final do século XX embarcaram no desmantelamento de tais instituições coletivas. Além disso, devemos tentar entender melhor como a imaginação social é – e foi – utilizada para estabilizar expectativas em relação a futuros marcados por grande incerteza, e para orientar a ação coletiva (Futuros imaginados, Jens Beckert, 2016).

      Finalmente, a covid-19 é um alerta sobre nossa dependência de processos naturais, apresentando, portanto, uma ocasião suplementar, com relação à mudança climática, para reconectar nosso conhecimento das relações sociais e naturais. Esse é um trabalho em andamento, para o qual Bruno Latour forneceu importante abertura (Jamais fomos modernos, 1991) e Dipesh Chakrabarty (“O clima da história”, 2009) ampliou na direção da historiografia e da teoria da história, mas que necessita de mais reflexão e investigação detalhada, sobretudo no âmbito conceitual em que operam as noções de antropoceno e sustentabilidade.

    P. S. Vivek

    1. Desde o seu princípio, a temida covid-19 esteve relacionada com elites que viajam pelo mundo e que trouxeram o contágio para seus respectivos países. As circunstâncias concretas exigiram a quarentena desses viajantes específica e rigorosamente determináveis, dos quais a maioria pertencia a elites políticas ou às classes economicamente dominantes. Medidas de quarentena em massa representaram um desvio de atenção conveniente em relação às medidas pouco firmes do próprio governo no que toca às elites recém-chegadas do estrangeiro. Nesse processo, reduziu-se todo cidadão a um potencial transmissor de covid-19. Não foi possível identificar a doença com os trabalhadores pobres ou suas partes da cidade. As experiências vividas dessa assim chamada quarentena se provaram drasticamente diferentes para as classes privilegiadas e a massa trabalhadora. Os trabalhadores pobres desesperados e famintos aparecem em contraste marcado com as elites nacionais; das quais uma maioria se arrebanhou e comprou as campanhas populistas do governo pela “necessidade” do lockdown; a importância do “distanciamento social”; considerações superficiais para com trabalhadores da área da saúde que no entanto continuaram a ter que lidar com a falta aguda de recursos como EPIs etc.

      As classes privilegiadas têm estado ocupadas “trabalhando de casa”, esse luxo que escapa às massas. Esse mesmo lockdown significou literalmente a ausência de trabalho para a maioria dos trabalhadores pobres. “Casa” se tornou um termo elusivo para um grande número de trabalhadores migrantes que se acumulam em cortiços improvisados perto dos seus locais de trabalho, como em canteiros de obras. Existe incerteza em torno das possibilidades de sobrevivência em cidades estranhas e hostis, fazendo com que trabalhadores imigrantes ficassem desesperados para retornar à segurança relativa da sua terra natal. Esse lockdown é uma grande oportunidade para refletir sobre o que fizemos de errado, não apenas durante o período da covid-19, mas na década ou duas que o precederam. Não é vulgar tentar enriquecer. Vulgar é ver trabalhadores famintos caminhando dias seguidos com crianças nas costas.

    2. O lockdown em consequência da pandemia foi uma experiência nova para o mundo como um todo, algo para o qual ninguém estava preparado. É um ataque frontal às noções de mobilidade e conectividade fundamentais na sociedade humana hoje. Cientistas nos alertaram para o fato de que uma mutação chamada D614G na região da proteína spike do vírus SARS-Cov-2 – que causa a covid-19 – é urgente por tornar o vírus mais contagioso. Nesse sentido, há muitas dimensões da pandemia que requerem investigações urgentes. O lockdown compulsório foi reforçado pelo medo voluntário. Estão todos preparados para o admirável novo normal. Esse foi um lockdown que destrancou milhões de indianos. Enquanto a Índia se abrigava em casa desde a última semana de março de 2020, uma parte do país ia às ruas desafiando a ordem de isolamento. A migração deveria servir como um corretor para o olhar dos que ainda não compreenderam as crescentes vulnerabilidades urbanas da Índia. As pessoas se perguntam por que os migrantes não escutam os governos. Eles escutam, mas não se convencem de que os governos podem cumprir com suas próprias palavras. Isolados e desempregados, eles se baseiam na própria fé (ou falta de fé, na verdade) mais do que em qualquer outro raciocínio. Em todo o mundo, um pico de incidentes de violência doméstica está sendo reportado desde o início do lockdown. Quanto mais grave o abuso, maior é o impacto na saúde física e mental da vítima. Na nossa sociedade altamente patriarcal, os homens estão frequentemente presos a seu próprio machismo. Contrariamente aos mitos segundo os quais esse fenômeno é mais comum entre os mais pobres, na realidade nem as mulheres ricas ou de classe média estão poupadas dele. O espalhamento do coronavírus resultou numa mudança nos mecanismos de gestão sanitária. Ainda que muito do lixo que produzimos seja domiciliar, a presença de detritos biomédicos nele – mesmo em pequenas quantidades – faz do descarte especial uma necessidade. Atualmente, durante o lockdown, além de incinerar o lixo médico, o lixo comum de regiões quarentenadas e partes contaminadas de favelas é descartado em aterros sanitários com o uso de produtos químicos. O risco de transmissão da covid-19 por gotículas respiratórias e partículas aerossóis expiradas já foi bem documentado e cuspir, hábito na Índia, é uma das formas comuns de transmissão do vírus para além da respiração. Espirrar e tossir são condutas involuntárias em muitos casos, mas o uso de máscaras pode reduzir riscos. Já o cuspe é um ato consciente reforçado pelo hábito. Chegamos a ponto de precisar de uma doença infecciosa virulenta para a maior parte das pessoas se dar conta da implicação entre higiene pessoal e saúde pública. Outro inimigo invisível nos espreita: reportagens de diversos estados sugerem que o estigma e o medo da covid-19 infligem dano adicional à sociedade, pois o estigma em torno de pacientes infectados chegou a desencorajar algumas pessoas a se testar num estágio inicial da doença. Esse tipo de impedimento não só representa um inconveniente para as pessoas como também atrapalha a retomada da atividade econômica já que produtores, fornecedores e compradores estão interligados entre estados.

      A pandemia do coronavírus nos humilhou e tornou mais humildes ao passo em que nos encontramos perplexos, inquietos e desamparados. Na verdade, o vírus não está vivo; ele é programado para se proliferar, e quanto mais gente ele infecta, mais atrapalha nossas vidas. Seria necessário fazer avanços maiores e mais consistentes em direção à retomada econômica, com uma mudança de ênfase do “combate” à covid-19 para sua “gestão” ou “administração” (já que ela não pode ser totalmente eliminada). Abdul Kalam, o ex-presidente da Índia, identificou cinco áreas que ajudam criticamente na melhoria das condições de vida, nessa ordem: saúde, educação, agricultura, comunicação e tecnologia crítica (como biotecnologia, nanotecnologia, farmacêutica). Outra área poderia ser adicionada à lista – a fé em Deus. Sem ela, poderia haver a melhor das tecnologias, mas com o pior da humanidade. No fim das contas, nosso valor depende dos nossos valores. Nossa grandeza depende da nossa bondade.

      Estamos em 2020, e de repente voltamos o foco para um tipo de saúde que possa nos salvar. A educação passou a ocupar o centro do palco uma vez que nossos filhos precisam estudar de casa. E se o lockdown continuar, a agricultura decidirá que nação poderá florescer. Alimentos e farmacêuticos se tornarão epicentros da economia, não apenas produtos de luxo. É necessário notar que nada do que foi feito anteriormente em nome do objetivo declarado de promover o bem comum institucionalizou de forma tão firme as iniquidades inerentes à nossa república quanto as consequências do lockdown. Num só movimento cirúrgico, ele deixou milhões de cidadãos – trabalhadores ocasionais e migrantes – abandonados, desabrigados, desempregados, desnutridos, sem dinheiro e trancafiados. No entanto, em tempos de distanciamento social e autoisolamento, é a comunicação virtual que nos ajuda a nos conectar mais do que nunca enquanto famílias, nações e seres humanos.

    3. O coronavírus chegou num momento em que o mundo já estava se virando para dentro, em grande parte em reação à crise financeira global de 2008. As nações têm levantado barreiras à liberdade de fluxo de pessoas, bens e recursos. Ele desmascarou todas as instituições sociais e seus atores. Seja a classe política, a mídia, a burocracia, a polícia, médicos ou mesmo um indivíduo comum, essa pandemia realçou o melhor e o pior da humanidade. Enquanto por um lado existe um ambiente de medo, preconceito, paranoia, humilhação e sectarismo político, por outro há uma onda de amor, apoio, bondade, empatia e caridade sem precedentes que reafirma a fé na humanidade. A pandemia também desvelou a hipocrisia e brutalidade dos magnatas, executivos e proprietários de grandes negócios. A incerteza da subsistência causaria mais danos às pessoas comuns que a pandemia. E os lockdowns forçam as pessoas a trabalhar, comprar, estudar e se divertir em casa criando novos hábitos em graus variados que podem durar para além da pandemia.

      Muitas nações estariam se engajando numa forma de nacionalismo alimentar. França, Espanha e Itália estavam entre os países que pressionavam a União Europeia a proteger seus agricultores antes da pandemia, e eles farão mais pressão ainda agora. Muitos países poderão não estar dispostos a se expor ao comércio mundial, bancos globais e migração internacional. As economias seriam mais dependentes de indústrias locais. Pessoas de todos os lugares se recolhendo em zonas livres do coronavírus; buscando empregos, educação e entretenimento no mundo imersivo da economia online. A desglobalização do mercado financeiro está chegando às profundezas dos mercados de dívidas também. Os lockdowns econômicos podem reduzir o fluxo de caixa de empresas muito endividadas dos Estados Unidos, Europa e Ásia, ameaçando levá-las à falência e também onerando muitas delas com casos severos de fobias em relação à dívida.

      O movimento para dentro inspirou muitas nações a repensar linhas de suprimentos que agora contornam o mundo e levam, na maioria das vezes, a fábricas na China. Motivado originalmente pelo crescimento dos salários na China e depois pelo crescimento das preocupações com as incertezas de se fazer negócios lá, esse movimento está em andamento há anos. Líderes de todos os estilos políticos assumiram poderes anteriormente impensáveis para fechar a economia, direcionar a produção, fechar fronteiras e colocar empresas na UTI e podem ainda ficar mais encorajados a perseguir estrangeiros. Embora a ascensão da economia virtual também seja uma virada para dentro, em direção ao trabalhador solitário seguro em casa em frente a uma tela, seu foco renovado em relação à eficiência e criatividade poderia aumentar a produtividade dos anos que vêm e aliviar a desaceleração global.

      A pandemia está de fato trazendo o futuro mais para perto. Tendências que talvez demorassem cinco ou dez anos para se desdobrar o fizeram em semanas, em alguns casos, e todas apontam na mesma direção. Num momento em que uma resposta coletiva era necessária para conter a covid-19, o establishment político, com ajuda da mídia e agências de RP, tendeu a dividir as pessoas em nome de religião e regionalismos, espalhando ódio e criando narrativas falsas.

    4. Os efeitos totais da pandemia ainda serão aferidos, mas veremos que a mudança já estava lá. Algumas tendências como a educação digital e o trabalho remoto (WFH, work from home) se acelerarão. Alguns hábitos serão interrompidos: não será possível viajar casualmente entre continentes. Não seria a primeira vez que uma crise de saúde pública causa mudanças na arquitetura e planejamento urbano. Propositores de políticas públicas serão forçados a questionar se estamos prontos para outra pandemia. Espera-se que as pessoas tenham medo de voar por um longo período de tempo, e peritos em aviação dizem que haverá uma redução drástica em voos ao redor do mundo. Além do medo, as tarifas podem chegar a um pico. Aqueles indianos andando nas ruas, famintos, despossuídos, quebrados, traídos pelo governo que levaram com seus votos ao poder, traídos pelas pessoas cujos negócios eles ajudaram a estabelecer – são eles as pessoas que construíram o lugar que agora te abriga nessa tempestade das tempestades. Eles não são trabalhadores migrantes: são os fundadores originais da sua casa. Se defrontar com a própria mortalidade pode nos incentivar a ser mais conscientes a respeito da forma como vivemos e do que precisamos. Os que ficam na fila fazem uma tentativa elegante de seguir as regras do distanciamento social. Mas a distância se desintegra quando o desespero os alcança.

      Tendo em vista a magnitude da realidade pós-pandêmica em expansão, valeria a pena examinar essas mudanças da perspectiva das teorias estabelecidas: entender como as pessoas usam signos e símbolos na construção de significados, enquanto percebidos pelos sentidos e interpretados como tal (Ferdinand de Saussure, Roland Barthes); nada pode existir sem significado, tudo tem significado, e ele emerge por meio do diálogo, qualquer que seja o nível em que esse diálogo aconteça, uma vez que viver é estar em diálogo (Mikhail Mikhailovich Bakhtin); uma sociedade crescentemente preocupada com o futuro (e também com sua segurança) que gera a noção de risco e um modo sistemático de lidar com perigos e inseguranças (Anthony Giddens, Ulrich Beck); ondas de racionalização tecnológica e mudanças no trabalho e sua organização; além disso, mudanças nos estilos de vida e nas formas de amar, nas estruturas de poder e influência, nas formas de repressão política e participação, nas visões de mundo e normas do conhecimento, que compreendem e remodelam toda a estrutura social (Ulrich Beck) além de outras mais recentes.

    Raewyn Connell

    1. Nessa semana as mortes reportadas por covid-19 somam mais de 400 mil. Já que existe subnotificação, provavelmente mais de meio milhão de pessoas morreram do vírus em apenas alguns meses. Há muitos por vir. Segundas ondas estão sendo reportadas em países que conseguiram conter suas primeiras ondas. Os governos nacionais de países que se saíram mal na primeira onda, incluindo os EUA, o Brasil, a Grã-Bretanha e a Índia, sabotaram as práticas de interação interpessoal eficientes para deter um agente infeccioso (como des- cobrimos com o “sexo seguro” em relação ao HIV). Em vez disso, esses governos, junto com a ditadura chinesa, produziram uma enxurrada de mentiras e fantasias hostis projetadas para desviar a responsabilidade sobre a crise, criar confusão e desempoderar seus cidadãos.

      É um desastre no sentido mais profundo do termo. Os contatos sociais humanos são precisamente os meios do crescimento populacional do coronavírus. Em face da má gestão e da malevolência na escala em que as vemos, que teoria sociológica estaria equipada para o desafio que está colocado? A teoria da escolha racional está eliminada de partida. Teorias da reprodução social parecem irrelevantes quando olhamos para a destruição intencional de consensos culturais e ideológicos. Teorias dos sistemas, marxistas ou neofuncionalistas têm pouca aderência quando olhamos para a irrupção de uma ameaça biológica e a súbita metástase do poder arbitrário. Existe a sociologia dos desastres, mas ela analisa sobretudo desastres depois de seu acontecimento para entender como a gestão da situação de emergência poderia ter sido mais bem feita – e aqui estamos, no meio do acontecimento, e a gestão é o desastre.

      A teoria sociológica como a conhecemos é muito branda para lidar com esse show de horrores global. Precisamos de formas de pensar a crueldade fria dos centros de poder globais e seus avatares regionais; a cascata tóxica de consequências da imensa concentração de riqueza; o fracasso sinistro da solidariedade humana envolvido na incitação deliberada do racismo, nacionalismo, sexismo e ódio religioso do nosso tempo. Não precisamos de uma ciência social contemplativa; precisamos da imaginação para organizar novos caminhos.

    2. Certamente precisamos de novas formas de compreensão dos poderes econômicos, estatais e seus portadores de maneira adequada às suas atuações na crise da covid-19. Para pesquisadores da área de gênero, não é mistério nenhum que a maioria dos detentores de poder é de homens, embora eu ainda não ache que os estudos da masculinidade tenham criado os vínculos necessários com a discussão do Estado e das elites corporativas. Em especial, ainda não fizemos as sinapses necessárias para compreender de forma satisfatória a irresponsabilidade homicida evidente em figuras como Johnson, Modi, Duterte, Bolsonaro e Trump.

      Para pesquisadores de classes sociais, não é mistério algum o fato de que poder político e privilégio econômico estão ligados. Mas nossas antigas ideias sobre “autonomia relativa” e tipos de capital não ajudam muito. A sociologia do imperialismo e colonialismo me parece a ferramenta mais útil para entender nossa situação. Essa área tem alguma aderência com a discussão sobre raça, Estados, capital transnacional, trabalho forçado, estupro e genocídio; mas é muito influenciada por teorias dos sistemas e por isso tem dificuldades em perceber os deslocamentos selvagens do nosso mundo.

      A sociologia do corpo parece necessária para a compreensão de qualquer epidemia. Grande parte do que é produzido como sociologia do corpo, porém, é na verdade sociologia do discurso ou do controle social, ou biociência, ou medicina. Os corpos suados, fedorentos, que sangram não estão eles próprios tão em evidência, e nem sua agência social. Uma recalibragem é necessária aqui também.

    3. Eu não sei. O comentário sociológico mais frequente no meu feed online é que o vírus desvelou ou aprofundou distâncias sociais que já existiam – em contraste com a retórica Estamos-Todos-Juntos das autoridades. Talvez. Alguns ricos correram para os seus abrigos nas montanhas, abandonando a classe trabalhadora à própria morte. É impossível, nas favelas do Brasil ou nas periferias da África do Sul, praticar o distanciamento social recomendado por médicos de classe média alta dos bairros nobres. (Não é impossível que outras formas de conter a doença não possam ser desenvolvidas pelos moradores locais, se tiverem a chance, como fizeram as comunidades locais com o HIV e o Ebola.) Outras distâncias sociais são agravadas durante a “recuperação”. Nosso governo de direita na Austrália tem despejado dinheiro na indústria da construção civil, em que muitos homens trabalham, e sufocado o financiamento de creches, onde trabalham mulheres, majoritariamente. Ao passo que maiores partes do trabalho e da vida social são transferidas para o modo online, as barreiras digitais existentes terão maiores consequências.

      Certamente a epidemia criou um escopo maior para a expansão do militarismo no governo, e de prerrogativas administrativistas na vida econômica. É mais difícil organizar ações sindicais, mobilizar movimentos sociais ou articular outras formas de resistência quando temos um lockdown com apoio popular. Estranhamente, os manifestantes de direita que protestaram (com armas, nos EUA) contra o lockdown dificultaram o controle da população pelos próprios políticos de direita. Os protestos Black Lives Matter (BLM, Vidas Negras Importam) nos EUA depois do assassinato de George Floyd tiveram efeito internacional. Na Austrália, por exemplo, apesar das tentativas do governo de detê-las, grandes manifestações ocorreram em solidariedade ao BLM, dando força súbita à campanha local em torno das mortes de aborígenes encarcerados.

      Talvez os eventos da epidemia mostrem a um número maior de pessoas os fundamentos brutais das nossas estruturas econômicas e sociais. Se isso de fato as deslegitimará não é algo determinado mecanicamente pela epidemia; isso depende de lutas sociais futuras.

    4. Vale a pena prestar atenção em trabalhos sociológicos sobre outras epidemias. Ancestors and antiretrovirals (2013), de Claire Decoteau, sobre a política em torno do HIV/aids no país mais atingido pela doença, é bastante iluminador. Sustaining safe sex (1993), de Susan Kippax et al., documenta a resposta comunitária criativa ao mesmo problema.

      No geral, entretanto, é preciso olhar para além da sociologia a fim de encontrar textos adequados ao horror da nossa cena e à frieza do poder. Crítica da razão negra, de Achille Mbembe (2013), deve ser lido por sociólogos de qualquer forma; ele aborda a modelagem profunda da vida intelectual e cultural pela violência imperial e pela escravidão. O ensaio de Mbembe de 2003, “Necropolítica”, agora disponível num livro com o mesmo título, é a melhor anatomia do tipo de política que se desdobrou durante a pandemia. Silent Spring, de Rachel Carson (1962), é a clássica exposição da frieza e negligência do mundo corporativo não apenas com a vida humana, mas com toda vida.

      Algumas respostas literárias à guerra mundial mostram autores às voltas com o poder, a moralidade e o extermínio em massa com a intensidade e escala de que precisamos. Exemplos: Matadouro 5, o romance de 1969 de Kurt Vonnegut centrado no bombardeio de Dresden, e o postumamente publicado Vida e destino, de Vasily Grossman, centrado na terrível batalha de Stalingrado.

      The end of capitalism (as we knew it), livro de 1996 de J. K. Gibson-Graham é não apenas uma crítica importante de balanços hipersistematizados do “capitalismo”, mas também um recurso de esperança em novas formas da vida econômica para além do regime atual. Existe uma segunda edição de 2006.

    Renan Springer de Freitas

    1. Essa pergunta traz consigo um pressuposto cuja validade me parece duvidosa: o de que o conhecimento produzido pela teoria sociológica é indispensável, ou, na pior das hipóteses, muito importante, para a produção de conhecimento sobre fenômenos sociais específicos. Se jogamos uma moedinha para cima, ela cai. Por quê? A resposta, como sabemos, está em um conceito nos legado pela física, o de força gravitacional. Da mesma forma que sem a ajuda desse conceito não podemos compreender o referido fenômeno, sem a ajuda de conceitos nos legados por outras disciplinas científicas não podemos compreender fenômenos como a respiração, a transpiração, a especiação, a inflação e os “buracos negros”. Existe algum fenômeno cujo conhecimento que temos a respeito é nulo ou, na melhor das hipóteses, “meramente intuitivo”, sem a ajuda de algum conceito produzido sob a rubrica “teoria sociológica”? Se existe, certamente não é a desigualdade social, a mobilidade social, a criminalidade, a expansão do ensino superior, a própria produção de conhecimento e mais uma dúzia de fenômenos sociais que poderiam ser enumerados sem grande esforço. Se o conhecimento que se produz a respeito de qualquer um desses fenômenos prescinde do conhecimento produzido pela teoria sociológica, por que seria diferente quando o fenômeno a ser estudado é a epidemia em curso? Penso que a teoria sociológica é uma área de estudos com sua própria agenda de indagações, e não uma espécie de “farol” para a produção de conhecimento sobre os mais diferentes fenômenos sociais – a propósito, defendi essa tese no livro Ciladas no caminho do conhecimento sociológico, que acabo de publicar. Conforme pretendo deixar claro ao responder às questões 2 e 4, penso que a sociologia tem muito a contribuir nesse momento, mas sua contribuição não depende de algum “equipamento” conceitual ou analítico que a teoria sociológica porventura possa ter a oferecer.

    2. Pode contribuir oferecendo respostas para perguntas ainda não feitas. As já feitas são bem conhecidas: como o vírus se propaga? com que velocidade? há medicamentos nos quais vale a pena investir? há alguma perspectiva de vacina? como conter a propagação do vírus? como minimizar os custos sociais da pandemia? Minha ex-área de pesquisa especializada, a sociologia do conhecimento, pode se atribuir a tarefa de responder a perguntas como as seguintes: como a comunidade científica pôde chegar a alguma conclusão a respeito de como o vírus se propaga, da velocidade com que se propaga, de como conter a propagação, de que medicamentos testar e prescrever, e das perspectivas de produzir uma vacina? Como se chegou a alguma conclusão sobre como minimizar os custos sociais da pandemia? A conclusão foi consensual? Se sim, como o consenso foi alcançado? Se não, que diferença isso fez (se é que fez alguma)? Há modos “culturais” distintos de lidar com as cinco primeiras perguntas citadas – um modo que possa ser identificado segundo regiões geográficas ou o que for? Os modos de conceber o que é uma “evidência empírica”, um “fato científico”, um “experimento bem-sucedido”, “custo social” ou mesmo o próprio conhecimento científico e o que se pode esperar dele variam de acordo com países ou regiões? De que maneira? Existem tensões entre diferentes especialidades médicas (infectologistas e pneumologistas, por exemplo) a respeito de como conter a propagação do vírus ou de como avaliar a eficácia de algum medicamento? Em caso afirmativo, quais são suas implicações e como são resolvidas (se é que o são)? Há formas diferentes pelas quais o conhecimento dito científico é mobilizado na discussão a respeito dos “custos sociais” do isolamento social? Penso que a sociologia do conhecimento pode se dar por satisfeita se conseguir oferecer respostas razoáveis para perguntas como essas.

    3. Inicio pela última pergunta. Sim, é possível vislumbrar os contornos das sociedades pós-pandemia porque é sempre possível especular sobre o que está por vir quando se vive em uma sociedade cuja estabilidade econômica foi subitamente posta em xeque e cujas normas de convívio foram subitamente subvertidas, quer o fator diretamente responsável pela instabilidade e pela subversão tenha sido uma pandemia ou qualquer outro. Fiz uma rápida pesquisa na internet sobre o assunto e, sem qualquer surpresa, descobri que são incontáveis as especulações a respeito do mundo que nos aguarda, muitas das quais assinadas por figuras públicas respeitáveis. Não me vejo capaz de acrescentar qualquer contribuição digna de nota a esse formidável corpo de conhecimento. Quanto às outras perguntas, não sei se a elas posso responder. Em primeiro lugar, porque penso que seria necessário esperar o fim da pandemia para podermos saber se passamos mesmo a viver um “novo tempo” e, em caso afirmativo, que características peculiares a esse novo tempo podem ser atribuídas a nossa inédita experiência de isolamento social. Em segundo lugar, porque não sei que tipo de mudança social, política ou cultural pode ser, em princípio, atribuída à ocorrência de alguma pandemia. Entendo que pandemias causam mudanças econômicas e demográficas. Eventualmente podem causar mudanças geopolíticas. Mas não entendo que possam causar, por si mesmas, mudanças sociais, políticas e culturais. Procurei, sem êxito, o registro da ocorrência de mudanças de tal natureza na literatura sobre a pandemia da gripe espanhola. Como não obtive êxito, sinto-me incapaz de antever o surgimento de alguma mudança – excetuado, evidentemente, o estrago inevitável que já está sendo provocado na economia. Claro que mudanças sociais, políticas e culturais podem vir a acontecer, mas como um resultado (na verdade, um subproduto) da catástrofe econômica e não da experiência, em si, de “viver” uma pandemia.

    4. O simples fato de essa pergunta admitir várias respostas aponta para um fato instigante: estamos diante de um tema sob medida para a investigação sociológica, mas, não obstante, não sabemos que contribuição temos a oferecer. Sociedades muito diferentes sob os mais variados aspectos se veem, subitamente, reviradas de ponta-cabeça. O que é feito das diferenças (e das semelhanças) em um caso como este? Penso que a obra que colocará o pensamento sociológico na “conversa” sobre a pandemia ainda está para ser escrita. Ela responderá à seguinte pergunta: que diferença fazem, ou deixam de fazer, as semelhanças e diferenças de natureza econômica, política, social e cultural quando o desafio que se coloca é o de atravessar uma súbita e avassaladora crise sanitária e, uma vez amenizada a “tempestade”, reestabelecer alguma forma de “bonança”? Enquanto essa obra não for escrita, minha aposta é em obras que de alguma maneira tenham se movido nessa direção, o que remete quase que automaticamente à literatura sobre a gripe espanhola. Destaco, do historiador Alfred W. Crosby, America’s forgotten pandemic: the influenza of 1918. Há ótimos trabalhos sobre a pandemia da gripe espanhola no Brasil, seja no Rio de Janeiro, em São Paulo ou na Bahia. Infelizmente não há espaço suficiente para citálos aqui. Foi, todavia, fora da literatura sobre esse tema que, com a ajuda de colegas, pude chegar à referência que presumo possa servir de modelo para a elaboração da obra destinada a colocar a sociologia na “conversa” sobre a pandemia. Trata-se do livro In care of the State. Health care, education and welfare in Europe and in the US in the Modern Era, de Abram de Swaan. Eu o escolhi em razão de ser uma das raras obras que discutem o modo como diferentes sociedades enfrentaram desafios incontornáveis e de alguma forma os superaram.

    Renato Ortiz

    1. A pandemia que conhecemos pode ser definida como um fato social, isto é, algo que se exerce, do exterior, de maneira coercitiva, sobre os indivíduos. Nos acostumamos a diversas críticas em relação a tal “exterioridade”, e em muitos casos, eram corretas, mas a situação de crise que enfrentamos desloca a dimensão individual (não desaparece, longe disso) para outro plano. De certa forma, um dos emblemas da modernidade, o indivíduo, se enfraquece diante das necessidades prementes. Primeiro, em relação ao combate à própria epidemia, é necessário organizar as forças sociais para conter a ameaça; para isso medidas drásticas (quarentena, confinamento, lockdown) devem ser tomadas. O paralelo com a guerra torna-se uma metáfora corriqueira e plausível. Momentos excepcionais exigem medidas excepcionais. Não é somente o que difere que importa, entretanto; a excepcionalidade nos fala sobre algo maior, os mecanismos da própria vida em sociedade. Retomemos, por exemplo, alguns debates contemporâneos (globalização, pós-modernidade, sociedade de consumo, celebridades etc.) − em todos eles a dimensão do indivíduo é determinante. O consumidor “escolhe” os produtos de sua preferência, a celebridade é a personificação de alguém que se projeta para além do círculo de conhecidos, as diferenças definem o meu Eu. Há, portanto, um deslocamento em relação à discussão anterior. Um exemplo, a ideologia neoliberal. A ideia de Estado mínimo (espaço da ação econômica dos indivíduos “livres” no mercado) perde em convencimento sendo contraposta pela ideia de um Estado que se transforma em demiurgo do protagonismo econômico. O lema da sociedade de consumo – “I want, and I want it now” – também fica em suspenso diante da magnitude da crise. A noção de bem coletivo retorna e nos faz pensar sobre os limites do individualismo. É um pouco como se nos deparássemos com a interrupção (para não usar o termo fim) de uma narrativa superficialmente convincente, isto é, a fragilidade de uma crença que se contentava com a contemplação de sua própria debilidade.

    2. A literatura sobre os meios técnicos de comunicação sempre foi superlativa; isso se repetiu com a internet. Há vários textos ditirâmbicos que a consideram espaço privilegiado da democracia por excelência (lembro os escritos de Pierre Lévy sobre a ciberdemocracia). Uma das dimensões que surge no debate contemporâneo diz respeito ao “isolamento” do indivíduo e sua capacidade de desfrutar os bens materiais e culturais a partir da posição resguardada de sua “moradia”, de seu “lar”. Diante da expansão das trocas digitais tudo se resumiria ao acesso que cada um teria em relação a esses bens. Lembro um livro, A sociedade de acesso, de um desses escritores globais que repetem o jargão do senso comum planetário (Jeremy Rifkin). A ideia principal é a seguinte: o indivíduo, senhor de si, teria a sua disposição um conjunto de técnicas que lhe permitiria desfrutar o mundo. Tudo se resumiria ao acesso. A situação de pandemia coloca algumas questões sugestivas. Primeiro, a diferença, até então sublimada, entre isolamento digital e isolamento social. Tudo parecia em harmonia. Mas percebemos que são coisas realmente distintas. O fechamento das relações sociais é claramente um empobrecimento da vida, das relações amorosas às questões econômicas. O confinamento forçado suspende as relações sociais (não as anula) limitando-as a um espaço exíguo no qual sua materialidade é predominantemente virtual. Dizer que o indivíduo isolado digitalmente é o senhor de seu mundo (como se fazia antes) é não perceber que seu “confinamento” é metafórico, isto é, o mundo a que ele se refere permanece em pleno funcionamento “lá fora”. O confinamento forçado diz outra coisa, o mundo “lá fora”, pelo menos temporariamente, ruiu, devemos dele nos retirar para nos preservar. Há, portanto, um hiato entre a metáfora e a realidade, isto é, entre a idealização digital e o confinamento como fato social coercitivo. Segundo, pode-se ainda perguntar: as técnicas digitais criam realmente laços sociais ou elas apenas reforçam os vínculos existentes anteriormente? Dito de outra maneira: elas criam solidariedade (como as religiões ou as ideologias)?

    3. Existiriam realmente sociedades pós-pandemia? Tenho sérias dúvidas. A utilização do pós, como na discussão sobre a pós-modernidade, demarca claramente dois tempos diversos. Uma ruptura se instaura entre eles. Mas haveria ruptura? Um reinício da história? Sinceramente não creio que a crise, na verdade, qualquer crise, abale inteiramente os alicerces da sociedade. O capitalismo não irá desaparecer, a China não deixará de lado suas ambições geopolíticas, os Estados Unidos continuarão a conhecer um declínio relativo em relação à sua hegemonia mundial, a desigualdade social permanecerá. Poderíamos elencar diversos outros temas, mas a ideia subjacente ao argumento é que “gostaríamos de voltar aos tempos normais”. Ou seja, recuperar o que foi gasto em energia e paixão no momento anterior à crise. A menos de sermos hegelianos – toda crise é sinônimo de um avanço do Espírito Absoluto – é perfeitamente possível imaginar a permanência deste mesmo mundo, talvez, com problemas mais graves. Não digo que tudo permanecerá idêntico a si mesmo, imóvel; é plausível esperar a revisão de algumas políticas públicas, sobretudo em relação às área da saúde e da ciência. O combate à pandemia pode mudar alguma coisa nesse plano. É também possível avançarmos em relação à nossa perspectiva predadora a respeito da natureza: o vírus como limite à expansão humana. Essa era uma questão anteriormente levantada pelos ecologistas, a natureza como barreira ao progresso. Nesse sentido, abre-se a possibilidade de uma consciência maior dos problemas do meio ambiente, que são globais e exigem uma estratégia global para ser enfrentados. Mas há também ambiguidades. Espera-se da ciência a cura de nossos males. Paradoxalmente, a crença no progresso da ciência se fortalece, ela ganha até legitimidade enquanto arma política no combate à pandemia. Não quero minimizar as mudanças, certamente ocorrerão; entretanto, parece-me exagerado imaginar uma nova era: numa perspectiva otimista, o reencontro harmônico entre os homens (um mergulho nos valores civilizatórios perdidos ao longo da história); noutra pessimista, um mundo distópico devorado por suas próprias contradições (uma espécie de Prometeu desacorrentado). As estruturas sociais são duras, não se dobram facilmente aos diagnósticos apressados.

    4. Não creio que sejam tanto as obras sociológicas que contem para nosso entendimento dos fatos. A situação de crise traz uma dimensão que habitualmente temos dificuldade de perceber; ela nos retira do conforto do quotidiano. Nesse sentido, estimula a imaginação e o pensamento. Os fenomenólogos diziam que para se pensar com profundidade era preciso nos colocar “entre parêntesis”, isto é, cultivar uma distância em relação à imanência dos fatos. O isolamento forçado, a quebra da rotina que se impõe, é uma espécie de suspensão do tempo, vivido numa restrição do espaço. Somos projetados numa situação na qual a normalidade das coisas é interrompida por algo extraordinário. Esta é uma dimensão crucial para o trabalho intelectual, retirar-se do mundo, de nossas certezas, para melhor apreendê-lo em sua “essência” (diriam os filósofos).

    Ricardo Abramovay

    1. Quando se trata de medir os impactos socialmente diferenciados da pandemia, a resposta é afirmativa e já existem trabalhos mostrando, nos Estados Unidos e no Brasil, por exemplo, que os pobres, os negros e os presidiários (em sua esmagadora maioria pobres e negros) são as maiores vítimas da pandemia. Há teorias e base de dados que permitem testar hipóteses referentes a esse tema.

      A pandemia, porém, exige inovações teóricas e metodológicas em duas áreas fundamentais. A primeira é a percepção e a gestão de riscos. É um tema que envolve não só os riscos pandêmicos globais, mas também outros “riscos existenciais” (Toby Ord), como o nuclear, o representado pela crise climática e o da inteligência artificial. Os mais importantes trabalhos sociológicos sobre esses temas vinculam esses riscos aos interesses econômicos e políticos dos responsáveis por seu virtual desencadeamento. A difusão de informações (incluída a informação que denuncia esses interesses) aparece como o principal meio de promover mobilização social no enfrentamento desses riscos. No entanto, por mais que a informação seja importante e por mais que haja, de fato, trabalho explícito e organizado de difusão de mentiras, o que estudos recentes sobre vacinas, homofobia, agressão a estrangeiros, clima e epidemias mostram é que a informação objetiva é largamente insuficiente como meio de alterar a percepção sobre o mundo social. Se a sociologia até aqui tem lidado com esse tema a partir de estudos sobre cultura e ideologia, é fundamental incorporar a contribuição da psicologia evolutiva e das neurociências. No caso recente da pandemia, já são vários os trabalhos, com base nessas disciplinas, que mostram o viés partidário na adesão ou na rejeição ao isolamento social como forma de atenuar seus impactos (ver última pergunta). Uma das mais interessantes explicações vindas da psicologia evolutiva e das neurociências é a tendência a que as informações recebidas pelos indivíduos sejam interiorizadas a partir de referenciais que lhes são oferecidos pelos grupos identitários a que pertencem. É claro que a dependência humana dos dispositivos digitais que fazem parte do cotidiano de cada um de nós torna esses mecanismos identitários ainda mais importantes como base para explicar comportamentos sociais. É fundamental que a sociologia incorpore essa contribuição da psicologia evolutiva e das neurociências em sua interface com os impactos do uso permanente dos dispositivos da revolução digital.

      A segunda inovação teórica e metodológica que está emergindo com a pandemia refere-se ao uso dos dados produzidos incessantemente pelos dispositivos digitais em que a vida social contemporânea está mergulhada. Até dez anos atrás, as ciências sociais estudavam os comportamentos ou a partir do acompanhamento detalhado de pequenos grupos pelo trabalho de campo do pesquisador ou a partir de dados massivos produzidos por levantamentos censitários e periódicos. A revolução digital abre caminho, pela primeira vez, a que a vida cotidiana seja acompanhada e os comportamentos detectados de maneira massiva e, ao mesmo tempo imediata, como mostra Alex Pentlad. O rastreamento das pessoas mostra-se como um dos principais caminhos para localizar os portadores do coronavírus, por exemplo. Apesar dos inúmeros exemplos em que a coleta, a análise, a armazenagem e o uso de dados podem ser positivos, já há trabalhos denunciando a emergência de uma sociedade de vigilância que é ameaçadora não apenas aos indivíduos, mas à própria sociabilidade humana. A vigilância tende a suprimir o anonimato nos espaços públicos e, portanto, a fazer com que a interação social seja norteada pelo fato de cada um saber que está sendo permanentemente observado (e julgado em função dessa observação). Mesmo em governos democráticos (para não falar dos autoritários) os perigos para a saúde da vida cívica são imensos.

    2. A pandemia trouxe à tona a urgência de que os fenômenos sociais sejam pensados à luz de sua base material, energética e biótica. As ciências sociais se constituíram e evoluíram, desde o século XVIII, dando as costas à natureza: isso é verdade não apenas para a economia, mas também para a sociologia, com a única exceção, talvez, da antropologia cultural. Mas os problemas socioambientais contemporâneos intensificaram mudança de postura (que já vinha ocorrendo, claro) em ao menos três sentidos, e a covid-19 deixou isso ainda mais claro.

      Em primeiro lugar, a intensificação das doenças infecciosas emergentes nos últimos 40 anos e a origem florestal dos vetores de suas mais importantes expressões (HIV, SARS, MERS, Ebola, entre outras) agregam uma dimensão adicional à reflexão (e à percepção social) não apenas sobre o desmatamento, mas também sobre as formas de produção de proteínas animais no mundo contemporâneo. Tudo indica que o desmatamento amplie o risco de multiplicação de doenças infecciosas emergentes e a atual pandemia está revigorando o esforço demonstrativo nessa direção. A vulnerabilidade social à pandemia, contudo, está trazendo à ordem do dia outra discussão, que se refere às grandes criações concentracionárias de animais, responsáveis pela oferta global de proteínas relativamente baratas. A base dessa produção é o consumo massivo de antibióticos pelos animais. Hoje, 70% dos antibióticos produzidos pela indústria farmacêutica são consumidos por animais. Seus rejeitos são lançados no solo e na água, e sua detecção pelos sistemas de controle sanitário é nula. O resultado é a ampliação da resistência humana a antibióticos, que já mata, segundo dados da ONU, 700 mil pessoas anualmente. Os instrumentos para controlar um ataque bacteriano de larga escala podem estar seriamente comprometidos.

      Esse é um exemplo de um segundo tema fundamental: as maiores ameaças às sociedades contemporâneas não se originam em eventuais catástrofes naturais (asteroides e vulcões, por exemplo) e sim em alguns dos mais importantes resultados de conquistas científicas e tecnológicas. Além do já mencionado tema dos antibióticos, os modelos de produção alimentar que deram origem ao consumo em larga escala de ultraprocessados respondem pela epidemia global de obesidade, que, por sua vez, é um fator de agravamento das condições e das chances de sobrevivência dos atingidos pelo coronavírus. Uma inteligência artificial superior à inteligência humana e que escape totalmente à governança de instituições democráticas é considerada por alguns dos mais importantes especialistas no tema (como Stuart Russel, entre outros) um risco iminente. A pandemia traz à tona a urgência não de se limitar o avanço científico e tecnológico, mas de que haja uma postura mais reflexiva sobre sua dinâmica, seus resultados e seus beneficiários.

      O terceiro tema fundamental refere-se à campanha que o maior cientista vivo da atualidade, Edward Wilson, vem levando adiante: a necessidade de que se intensifique a relação entre ciências e humanidades. A reflexão social sobre a ciência e a própria economia e a pergunta decisiva sobre o sentido daquilo que a economia e a ciência oferecem à sociedade só podem ser respondidas pela mobilização sistemática das ciências do homem e da sociedade.

    3. Do ponto de vista político, pela primeira vez, desde o Brexit, a eleição de Donald Trump e de outros governos autoritários, os governantes que enfrentaram a pandemia negando sua importância e dirigindo-se (como de hábito) a suas bolhas de repetição e redundância (é o caso de Trump e de Bolsonaro) ganharam muito menos prestígio que aqueles que conseguiram unidade nacional em torno das orientações vindas das autoridades de saúde pública. A pergunta que essa constatação traz é se esse é um evento passageiro ou se pode marcar a crise de um estilo de comunicação (apoiado no próprio formato das tecnologias digitais contemporâneas) em que a disseminação do ódio e da falsidade abriu caminho ao poder da extrema-direita mundo afora. Ao que tudo indica, os maiores sucessos no combate à pandemia foram obtidos por governantes que inspiraram na sociedade os sentimentos de confiança e solidariedade e não os que reforçaram os ressentimentos e as mensagens de natureza conspirativistas.

      Do ponto de vista social e cultural, é óbvio que a vida online vai intensificar-se ainda mais. No Brasil esse aumento é especialmente importante em grupos etários com mais de 50 anos e nas classes C, D e E, segundo pesquisa do Instituto Locomotiva (Valor Econômico, 23/04/2020, p. A16). Como os programas de assistência (tanto oficiais como privados) são online, isso forçou que camadas de baixa renda, frequentemente vinculadas a mercados locais e sem condição de estabelecer comparações de preços, entrassem em mercados que até então não faziam parte de seu universo (apesar de suas óbvias limitações de renda para isso). A contrapartida é que, de forma geral, esse pequeno comércio corre o risco de passar por uma trágica fragilização: basta lembrar que 18 milhões de pessoas trabalham em bares e restaurantes no Brasil e que, além do impacto da interrupção de suas atividades, a reabertura será guiada por normas que nem sempre eles terão condições de seguir.

      Não há sinais, por parte do mundo corporativo, de que a pandemia seja uma espécie de ensaio geral para que seus investimentos se dirijam a bens e serviços que fortaleçam o desenvolvimento sustentável. Apesar de todo o movimento empresarial (no Fórum Econômico Mundial, por exemplo) para que se enfrentem as mudanças climáticas, na China e nos Estados Unidos não só houve relaxamento da legislação ambiental como, ao que tudo indica, uma retomada de investimentos de longo prazo em setores de alta emissão de gases de efeito estufa.

    4. O mais importante trabalho sobre os limites da informação clara e objetiva como base para a mobilização social no enfrentamento à crise climática é de George Marshall: Don’t even think about it: why our brains are wired to ignore climate change. O livro de Daniel Kahneman (Think fast and slow) é uma referência importante, sobre a contribuição da psicologia evolutiva ao estudo da percepção social. Esses trabalhos, bem como os de Paul Slovic inspiraram pesquisas realizadas durante a pandemia e que procuram explicar as atitudes dos indivíduos a partir de seus sentimentos identitários de pertencimento. Cito três em um conjunto maior: “Polarization and public health: partisan differences in social distancing during the coronavirus pandemic”, “Risk perception through the lens of politics in the time of the Covid-19 pandemic” e (este com resultados para o Brasil) “More than words: leaders’ speech and risky behavior during a pandemic”. Sobre riscos existenciais (nuclear, pandemias, clima e inteligência artificial) a melhor obra é o recém-lançado The precipice, de Toby Ord. Vale acompanhar a produção do Center for the Study of Existential Risk da Universidade de Cambridge e do Future of Humanity Institute de Oxford. O melhor trabalho para entender por que razão a inteligência artificial pode ser considerada um dos quatro riscos existenciais é o de Stuart Russel: Human compatible. São muito importantes também o livro de Brett Frischmann e Evan Selinger, Re-engineering humanity, e o de Shoshana Zuboff, The age of surveillance capitalism.

      A reflexão sobre os riscos das criações concentracionárias de animais e seus impactos potenciais no enfrentamento de doenças infecciosas é enriquecida por uma publicação da UN Environment: Frontiers 2017: emerging issues of environmental concern, que contém um capítulo sobre a dimensão ambiental da resistência antimicrobiana. Sobre as ameaças representadas pelo desenvolvimento (e pela autonomização) da ciência e da tecnologia no mundo contemporâneo O princípio responsabilidade, de Hans Jonas, segue sendo uma referência incontornável. Sobre a relação entre ciências e humanidades, da obra de Edward O. Wilson, eu destaco A criação e O sentido da existência humana.

    Richard Miskolci

    1. A sociologia já desenvolveu pesquisas empíricas, conceitos e teorias durante epidemias anteriores, dentre as quais destaco a do HIV/aids. A pandemia de SARS-Cov-2 impõe desafios novos devidos às suas especificidades e consequências sociais, econômicas e políticas. O primeiro desafio envolve reconhecer algo que aprendemos durante o auge mortal da aids nas décadas de 1980 e 1990: toda pandemia se desenvolve diferentemente de acordo com as características de cada país, e a covid-19 terá desenvolvimento e impacto diferentes em cada país. O segundo desafio, mais amplo e geral, é que o cenário pós-pandemia poderá unir características similares a de um pós-guerra mesclado a uma nova ordem social em que a saúde pública ganha maior relevância. Ainda não sabemos se isso se associará a um reconhecimento da necessidade de criar ou aprofundar políticas sociais. Também é de esperar uma reconfiguração das relações internacionais, tanto na reavaliação dos intercâmbios e mobilidades quanto nos meios de se proteger de situações similares no futuro. Isso pode se dar por meios cooperativos que criem ou aprofundem acordos e instituições internacionais ou por formas renovadas de nacionalismo focalizadas em soluções locais.

      A sociologia poderá colaborar em qualquer desses cenários ou contextos: no nível nacional mantendo seu papel histórico na pesquisa, criação e análise de dados empíricos para desenvolver, aprimorar e avaliar políticas públicas; e, internacionalmente, na análise comparativa de diferentes formas de abordagem em cada país, assim como na análise dos impactos das medidas que vierem a ser tomadas em nível global ou mesmo em reação a essa possibilidade.

    2. Minha atual área de expertise envolve as tecnologias da comunicação e informação e a saúde; portanto, pode contribuir de múltiplas formas para compreender o fenômeno. Assim como a aids intensificou o uso das tecnologias entre o segmento mais afetado, os homossexuais, é provável que a pandemia de covid-19 terá efeito similar, só que mais espraiado socialmente.

      As já estabelecidas teorias e reflexões sobre os impactos econômicos do advento da sociedade conectada tendem a ser corroboradas, mas a elas se somarão o necessário trabalho de pesquisa e o desenvolvimento de novas teorias e conceitos afeitos a suas dimensões culturais e psíquicas. A socialização por meio de plataformas dos serviços comerciais de rede social como Facebook, Twitter, Instagram e aplicativos de trocas de mensagens já vinha transformando a vida social e tendo impactos subjetivos diversos, mas sua possível universalização e intensificação terá novas consequências. Dentre elas, destaco as políticas, pois já se sabe que as redes digitais geram bolhas de opinião, segmentação ideológica e – ao menos até hoje – tenderam a cercear diálogos e semear conflitos.

      Sem aprimoramento, regulação legal e limites econômicos ao oligopólio que atualmente controla a internet tendemos a viver mais polarização e instabilidade política. A ordem geopolítica conectada tem os Estados Unidos como seu centro e maior beneficiário, a Rússia um dos agentes internacionais que melhor a manipula e a China mantendo sua estabilidade pelo controle da rede e o uso de plataformas nacionais alternativas às do oligopólio norte-americano. O restante do mundo sofre as consequências de um ecossistema informacional cujos modelos de negócios e interesses políticos lhe são estranhos, assim como suas características culturais disseminam modos de subjetivação e ação social assentados em individualismo e empreendedorismo. Na área de pesquisa que intersecta saúde e TICs, será necessário ampliar as pesquisas sobre os impactos subjetivos da disseminação das formas conectadas de socialização e como tais impactos modificam os laços e a agência sociais.

    3. A origem da pandemia é inseparável da globalização, do aprofundamento de desigualdades econômicas, além da falta de uma política mundial para o meio ambiente que regule a produção e circulação de alimentos, especialmente os de origem animal. Além disso, a disseminação da epidemia e transformação em pandemia foi rápida devido à alta mobilidade de certos segmentos sociais em nosso atual estágio das relações econômicas articuladas mundialmente e fenômenos associados como o turismo.

      A desigualdade social, além da questão sanitária e de meio ambiente, é um dos elementos presentes no mercado de Wuhan que resultou na passagem do vírus do animal para o ser humano. Pouca atenção tem sido dada a isso nas análises escritas no calor do momento, o que pode levar a respostas apenas sanitárias que deixem de reconhecer a miséria e a desnutrição entre trabalhadores que lidam diretamente com os animais. Reforçar medidas de controle sanitário ajuda, mas não elimina a desigualdade econômica e nutricional que expõe alguns a infecções que podem vir a se disseminar para a coletividade. Apenas um esforço articulado que envolva políticas sociais que articulem recursos econômicos e de saúde em termos globais pode nos proteger. Na ausência dessas iniciativas, a solução paliativa pode ser a de barrar os contatos, diminuir a mobilidade das pessoas e ampliar os controles de fronteira. Economicamente, isso pode levar a uma crise prolongada e ao aprofundamento das desigualdades entre as nações. Em termos políticos, é uma aposta em uma espécie de processo contrário ao da globalização que vivenciamos desde a década de 1990, com resultados incertos e desiguais. A pandemia pode se tornar um ponto de inflexão aprofundando e acelerando mudanças sociais, políticas e culturais que já vinham ocorrendo. Os contornos das sociedades pós-pandemia são incertos e dependerão das experiências diversas de seus impactos e extensão, assim como das respostas que elas provocarão.

    4. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade, de Ulrich Beck, e Alone together, de Sherry Turkle, mas também obras específicas sobre doenças e epidemias como Os homossexuais e a aids: sociologia de uma epidemia, de Michael Pollak, A doença como metáfora, de Susan Sontag, e abordagens sobre os medos coletivos como o estudo de Jean Delumeau intitulado História do medo no Ocidente, Folk devils and moral panics, de Stanley Cohen, e Ghostly matters, de Avery Gordon. Cabe incluir na lista abordagens literárias sobre epidemias e doenças como as feitas por Thomas Mann em clássicos como Morte em Veneza e Doutor Fausto, mas sobretudo seu retrato da decadência da burguesia europeia por meio da tuberculose em A montanha mágica.

    Rodrigo Santos

    1. Eu acredito que a sociologia, de modo geral, está equipada para explicar os impactos sociais e políticos da pandemia, tanto de um ponto de vista teórico, quanto a partir de trabalhos empíricos. Embora eu não tenha proximidade com as subáreas da sociologia que se relacionam à saúde, minha crença nessa capacidade explicativa se baseia, principalmente, no potencial, já demonstrado, das abordagens construcionista sociais e suas aplicações a situações de crise, ambientais, econômicas e políticas. Além disso, a reflexão propriamente moderna sobre integração e solidariedade sociais e seus desdobramentos contemporâneos ainda tem muito a aportar na compreensão de contextos como os que estamos vivendo.

    2. No âmbito dos meus temas de investigação, uma compreensão apropriada da escala global da pandemia de covid-19 e de seu enfrentamento não pode passar ao largo da sociologia econômica e da economia política, particularmente no que concerne aos riscos e disputas envolvidos na produção alimentar de tipo industrial, a sua fragmentação geográfica funcional e, mais recentemente, à (des)construção de capacidades produtivas e tecnológicas de massa associadas a insumos e bens farmacêuticos e médicos de elevado valor agregado e alta complexidade – como demonstra a situação de escassez de respiradores, a explicitação da dimensão logística vinculada a sua disponibilização e os conflitos políticos em torno de sua aquisição e uso.

    3. Na condição de leigo no tema, não consigo emitir nada além de opiniões pessoais a esse respeito. Dessa forma, me parece que um efeito previsível da pandemia pode ser uma espécie de perda de confiança nas propriedades humanas de superação dos desafios “naturais”, em particular no que diz respeito aos efeitos positivos da tecnologia. A ideia de que “tudo tende a dar certo”, que me parece profundamente enraizada na minha geração e no Brasil, pelo menos, pode ser seriamente abalada, indicando algumas diferentes possibilidades de reconstrução societária. No entanto, tais possibilidades nem sempre são positivas, e eu não descartaria uma sociedade mais segmentada e anômica, pelo menos em nosso caso.

    4. Não tenho conhecimento de nenhuma obra específica que venha tratando de maneira específica da questão dos efeitos da especialização de redes globais de produção (RGPs) de insumos farmacêuticos e equipamentos médicos em termos de escassez e impactos em diferentes sistemas nacionais de saúde, o que me parece absolutamente central. No entanto, acredito que a própria pandemia irá impelir estudos nesse sentido. Alguns indícios disso começam a aparecer em webseminários com especialistas (ver, por exemplo, Pandemia e Sociedade); enquanto working papers começam a ser publicados com essa intenção, a exemplo de “Globalization in the time of covid-19”, de Alessandro Sforza e Marina Steininger.

    Sabrina Parracho Sant’Anna

    1. A sociologia tem papel importante na compreensão das mudanças sociais, mas também no diagnóstico de padrões e tendências. No caso de fenômenos naturais, grandes hecatombes, ou diante de uma pandemia, em que há componentes de propagação cujo diagnóstico é demográfico, há naturalmente também efeitos coletivos sobre as experiências compartilhadas, sobre as visões de mundo de grupos e coletividades. Em 2016, a comunidade internacional de sociólogos se reuniu em Viena, aspirando a discutir o futuro que queríamos [The futures we want]. O tema do V ISA Forum, muito informado pelas discussões de seu então diretor, Markus Schulz, convergia para o debate do papel da sociologia na projeção de cenários e de futuros possíveis. A discussão estava centrada na análise dos dados e variáveis de que se dispunha e que possibilitavam projetar cenários e avaliar perspectivas futuras, diante de recursos disponíveis e dados estruturais persistentes, mas também levando em consideração o surgimento de movimentos contra-hegemônicos e valores utópicos disruptivos. Diante de períodos de longa estabilidade: mudanças sociais previsíveis. No entanto, em face de uma ruptura da ordem que vivemos hoje, em que somos instados a lembrar que, como já nos advertia Weber, a realidade é infinita e multicausal, a sociologia compreensiva permite entender que os processos são deflagrados por componentes nem sempre ponderáveis e que as ações sociais têm consequências nem sempre previsíveis para os agentes que as engendram. Nesse sentido, creio que a sociologia é, neste momento, uma forma de conhecimento privilegiada, uma vez que agrega diferentes dados, levando em consideração os efeitos materiais sobre grupos sociais diferenciados, mas também e, em especial, atentando para o fato de que a interpretação da experiência concreta acrescenta sentido à ação e que desse sentido depende nossa capacidade de compreensão da vida social.

    2. No caso da sociologia da arte e da cultura, creio que, já há alguns anos, a área tem ocupado papel relevante na compreensão de fenômenos sociais. O cultural turn, de Jeffrey Alexander, e a ênfase na contracultura por Luc Boltanski trouxeram à tona a análise de valores para a compreensão da vida social. Contudo, creio que recentemente também mudanças materiais no mundo da vida colocaram a produção de bens de cultura no centro do debate sociológico. A temática da economia criativa e novas políticas urbanas centradas no turismo e na difusão de equipamentos culturais puseram a cultura no centro das discussões e deram protagonismo à classe artística nos debates públicos.

      No caso da pandemia, fenômeno multidimensional que atinge o núcleo da economia mundial e a estabilidade das representações coletivas, a arte e a cultura se põem como foco privilegiado de análise, possibilitando compreender o modo como a experiência é coletivamente ordenada. De fato, uma vez que informa os quadros da memória coletiva, o sentido público da produção de bens de cultura é objeto fundamental para a compreensão de novos sentidos da ação, para o entendimento da ordenação de demandas em projetos compartilhados e para análise dos estoques de conhecimento acionados para o porvir. Creio que tanto do ponto de vista da análise dos valores, como do ponto de vista das práticas de ação coletiva e mesmo de novos arranjos econômicos centrados na tecnologia da informação, será importante levar em consideração a produção recente da sociologia da arte.

    3. Há uma conhecida passagem de Benjamin em “Sobre o conceito de história” que me vem constantemente à mente nos últimos dias. O pequeno trecho é inspirado por uma obra de Klee, comprada por Benjamin em 1921, e se inicia com epígrafe de Gerhard Scholem, que herdou o desenho após sua morte. O Angelus Novus, de Klee, representa um anjo que, segundo Benjamin, “parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente”: “Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las”. Impelido irremediavelmente em direção ao futuro, o anjo não pode deter-se, mas, tampouco, pode encarar o porvir, para o qual volta as costas. Também com os olhos escancarados e sem poder olhar para a frente, tentamos adivinhar o que nos espera. Creio que há, sim, tendências em curso, mas também podemos aguardar mudanças sociais, políticas e culturais profundas da ordem do imponderável. Na conta dos mortos, a expectativa do porvir. Sem querer me estender demais, penso que há três eixos principais para os quais é preciso estarmos atentos.

      Em primeiro lugar, por um lado, salta aos olhos o crescimento das desigualdades acentuadas pelas disparidades no acesso à saúde e à renda. Por outro lado, a desigualdade escancarada tem possibilitado discursos de valorização do SUS e garantia da renda mínima que são, ao menos, alvissareiros. Na expectativa do uso da pandemia para o genocídio das massas e a solução final da plutocracia, lideranças locais e globais parecem poder surgir para a garantia dos valores da civilidade. Em segundo lugar e ainda nesse ponto, creio que é preciso estar atento ao crescimento das desigualdades de gênero, tanto pelo maior número de contratos de trabalho precário entre as mulheres quanto pelo crescente custo do trabalho de reprodução da vida na esfera doméstica e o aumento exponencial das taxas de violência contra a mulher. Penso que discursos feministas, outrora crescentes, tendem a ser agora agressivamente silenciados, mas há quem vislumbre processos de resistência. Finalmente, creio que a reorganização do mundo do trabalho será ainda mais duramente impactada. Os diagnósticos de rupturas na esfera produtiva e o impacto do terceiro setor não são recentes. No entanto, é preciso estar atento ao impacto da crise sobre o setor de serviços, sobre a indústria criativa, e, finalmente, sobre os modos de distinção social. Creio que é preciso estar atento aos impactos do que Boltanski vem chamando de economia do enriquecimento, mas também a formas alternativas de circulação econômica.

    4. Diante de um fenômeno recente, algumas questões emergem com mais força e ganham visibilidade, fazendo-nos rememorar obras para formar uma constelação de problemas acionados simultaneamente, compondo um mapa de compreensão do mundo em que vivemos. Algumas obras tratam mais claramente do tema central que está posto, outras se relacionam de modo mais indireto. Embora para as primeiras a relação com o fenômeno seja mais evidente, penso que as outras também contribuem para observar o que há de novo no momento presente. De diferentes pontos de vista, creio que há trabalhos clássicos que retornam com novo sentido. Da perspectiva da saúde e da doença, além de Goffman e, naturalmente, Foucault, creio que Susan Sontag merece ser retomada com seus ensaios sobre a aids, o câncer e a tuberculose. Do ponto de vista dos processos de mundialização, evidentemente, as discussões de Beck sobre a sociedade de risco e de Giddens sobre as consequências da modernidade são referências necessárias. No entanto, creio que do ponto de vista dos rumos da economia global, o livro de Luc Boltanski e Arnaud Esquerre, L’enrichissement: une critique de la marchandise, parece dar pistas de desdobramentos recentes quanto a mecanismos de diferenciação social que têm impacto sobre a reprodução da desigualdade e o capitalismo.

    Sari Hanafi

    1. Existe mais de uma teoria sociológica. Mesmo assim eu vejo algumas características gerais em comum. Gilles Deleuze argumentou que a esquerda (e com ela, a maioria dos cientistas sociais, exceto pelos economistas ortodoxos!) enxerga o mundo em termos de relações que começam das mais distantes e se movem em direção às mais próximas. A desigualdade social, por exemplo, já foi compreendida como um fenômeno global de exploração cujas relações podem ser reconstruídas em direção ao imperialismo e colonialismo. Por isso, a maioria dos cientistas sociais chama atenção para a existência e as estruturas do imperialismo e colonialismo a fim de abordar de forma apropriada o sofrimento das classes sociais afetadas (em abstrato). Contrariamente a isso, existem movimentos políticos identitários (por exemplo, movimentos islâmicos e conservadores de extrema-direita) que enxergam as relações partindo das mais próximas em direção às mais distantes. Eles acreditam em trabalho comunitário, na família e em relações de bairro. Por exemplo, apoiadores de Trump acreditam na sua capacidade de abordar as desigualdades sociais enfrentadas por comunidades rurais esquecidas de norte-americanos brancos. E organizações religiosas no Líbano são atualmente as ONGs mais proativas na lida com famílias que perderam seus empregos com as restrições de circulação motivadas pela pandemia. Para outros movimentos de política identitária (organizados em torno de etnias, gênero, sexualidade etc.), a luta pode variar consideravelmente a depender do contexto, mas frequentemente se baseia numa luta comunitária, armada da doutrina universalista dos direitos humanos. Sim, para Richard Rorty, essa “esquerda cultural”, ao mesmo tempo que avança numa agenda cultural de pluralismo trava uma luta muito mínima de justiça social em termos de classe (como é o caso nos Estados Unidos).

      Eu vejo nossa sociologia pós-corona sendo capaz de reinventar a forma pela qual tradicionalmente orientou o seu foco (de fora para dentro ou de dentro para fora) para criar métodos que usem focos multiescala: repensando a importância da família, da comunidade e da ética do amor, hospitalidade e cuidado, e então aumentando a escala para o nível do Estado-nação e da humanidade como um todo.

    2. Meus interesses de pesquisa atualmente orbitam em torno dos paradigmas de produção de conhecimento no mundo árabe e além, e de como conectar as ciências sociais com a filosofia moral. Como presidente da International Sociological Association (ISA), estou interessado em promover uma sociologia global. Essa sociologia se move em duas direções particulares: o suplemento da abordagem pós-colonial com uma abordagem antiautoritária e a teorização de uma sociedade pós-secular. É impossível ignorar as feridas da era colonial, mas ao mesmo tempo que os estudos pós-coloniais foram muito bem usados eles também foram abusados. Eu identificaria dois abusos: a ênfase exagerada em fatores externos combinada com o descuido com fatores locais e a lógica binária de categorias antagônicas como Ocidente/Oriente, universalismo/contextualismo. Por isso, defendo o suplemento da abordagem pós-colonial com uma abordagem antiautoritária. Além disso, como ultrapassar a concepção militante de secularismo em direção a multissecularidades? E como teorizar a sociedade pós-secular? Para mim, o termo ainda é relevante por dois motivos: primeiro como uma declaração da necessidade de encontrar uma nova abordagem para o secularismo, distinta da forma histórica de vê-lo; segundo, por conta da mudança religiosa que vai de sua secularização social a sua ressurgência pública e sua prática de devoção carregada de subjetividade política (que as revoltas da primavera árabe, por exemplo, acionaram). Já argumentei em outras ocasiões que a sociedade pós-secular deveria ser teorizada como uma sociedade que lida com três desafios: primeiro, a necessidade em sociedades multiétnicas e multiculturais de que a religião seja administrada pelo Estado; segundo, a ascensão da religião pública; e terceiro, a deliberação na esfera pública em confluência com o neoliberalismo.

      Nesses tempos sombrios de coronavírus essas preocupações permanecem válidas, mas eu gostaria de colocar um pouco mais de ênfase em três tarefas para a sociologia: construir focos multiníveis que alcancem da comunidade à humanidade; assumir uma postura ativa na luta contra as doenças do “antropoceno” e “capitaloceno”; e finalmente o estabelecimento de uma agenda melhor para o reconhecimento e a obrigação moral. Essa agenda é semelhante àquela de sociólogos antiutilitaristas e convivialistas como Alain Caillé, mas também, no Brasil, Frédéric Vandenberghe e Paulo Henrique Martins. Estamos todos conscientes de que a luta pelo meio ambiente é inseparável da nossa escolha de política econômica e da natureza do nosso sistema econômico desejado – e essas conexões entre seres humanos e natureza nunca estiveram tão imediata ou intimamente conectadas quanto agora.

    3. O pós-pandemia deveria ser preparado por nós, cientistas sociais, bem como por todos os atores sociais e propositores de políticas públicas para transformar essa tragédia num ativo. Só para lembrar, a grande depressão do início da década de 1930 teve um impacto profundo internacionalmente, e as respostas políticas às crises foram radicalmente diferentes. Vejamos o exemplo dos EUA e do New Deal proposto pelo presidente Franklin D. Roosevelt entre 1933 e 1939. Ele consistiu na promulgação de uma série de programas, projetos de obras públicas, reformas financeiras, trabalhistas e nas relações raciais. A Alemanha, pelo contrário, substituiu a democracia por um sistema de governo nazista. Michel Wieviorka, numa entrevista em março deste ano para o jornal francês Libération, nos lembra que, para o pós-Segunda Guerra Mundial, a resistência francesa criou, em 1944, um programa de ação com o nome Les jours heureux (Os dias felizes) (em 1944). É essencial dizer que havia nele não só medidas políticas de restabelecimento da democracia, mas medidas econômicas radicais que caracterizaram a nacionalização de um feudalismo econômico e financeiro de larga escala na gestão da economia, além, é claro, de medidas sociais, em particular o significativo reajuste de salários, o restabelecimento de sindicatos e delegados trabalhistas independentes e um plano compreensivo de seguridade social. Os 30 anos seguintes foram de fato dias felizes para a França. Cabe a nós decidir que direção vamos tomar.

    4. A sociologia pós-corona só terá sentido se estiver armada de uma utopia ou de “utopias reais”, como diria Erik Olin Wright, que, ainda que não sejam absolutamente realizáveis, possam direcionar nossas ações. Não há vida ética sem utopia, e a diferença entre a pregação de um clérigo e a utopia de um sociólogo é que a última não necessariamente denuncia a visão antiutópica dos outros, e pode procurar trabalhar com aqueles que acreditam nela. Essa sociologia, portanto, deveria apreciar e aprofundar a relação de dádiva maussiana e a obrigação moral que conecta as ciências sociais à filosofia moral. É importante repensar a construção da outridade não apenas em relação àquele que é percebido como o adversário e o porquê disso, mas no que diz respeito a como nos importamos com “o Outro”. O sociólogo francês Eric Macé, num texto recente, nos lembra da importância de reconfigurar nossa interdependência (humano versus não-humano, homem versus mulher, sociedade versus natureza etc.). A divisão de trabalho patriarcal entre mulheres que cuidam e homens que trabalham não pode continuar.

      Aqui uma discussão ética séria poderia domar a procura pela defesa de nossos próprios interesses individuais. Esse é o sentido do aforismo de Paul Ricoeur “o objetivo de viver a boa vida com e para outros em instituições justas”, no qual, em outras palavras, a ética do amor, hospitalidade, cuidado e solicitude com e para outros pode ser incluída em molduras institucionais para garantir e reforçar a justiça social e a democracia. Isso vai ao encontro do que pensam Alain Caillé, Frédéric Vandenberghe e muitos outros pesquisadores antiutilitaristas, que propuseram diferentes manifestos com chamados ao “convivialismo” como sucessor às ideologias seculares do comunismo, socialismo e anarquismo. Para nos lembrar sobre como pensar a responsabilidade em perspectiva com a liberdade e como promover e encorajar relações significativas com nossos “outros” semelhantes humanos, a sociologia deveria voltar a esses e outros insights relevantes de filósofos como Emmanuel Levinas que, de maneira simples e astuta, explicou que “avant cogito, il y a bonjour” (antes do cogito, vem o bom dia).

    Saskia Sassen

    1. Essa é uma pergunta interessante – a primeira desse tipo a surgir no grande número de entrevistas que dei sobre o assunto. A teoria sociológica não dá conta de compreender totalmente as características e consequências desse vírus. Isso exige um conhecimento especializado bem específico. Além disso, uma abordagem completa do assunto requer um misto de saberes especializados diversos.

    2. Talvez um dos elementos nesse concerto – me parece – é que as ciências sociais têm a opção de estudar humanos e, portanto, de traçar o que funciona ou não para esses humanos, de uma perspectiva bastante ampla.

    3. Nós, humanos, já passamos pela experiência produzida por diversos vírus agressivos… então isso em si não é novo. Quanto mais construímos sobre terra que já foi campestre, ou sobre fontes d’água, ou terra varrida por ventos contínuos, provavelmente mais empurramos um número crescente de vírus (e outras formas de vida) para domínios cada vez mais restritos… e então é claro que nós, humanos, ficamos mais e mais perto de vírus que podem ser agressivos e ávidos para acessar o que quer que tenhamos no nosso sangue que os interesse – porque é assim que esses vírus garantem sua própria sobrevivência.

    4. Tenho certeza de que há um número crescente de cientistas sociais interessadas(os) em abordar algumas dessas questões. Quanto a mim, estou interessada em mapear e traçar nosso uso/abuso/destruição de corpos d’água e terra fértil. Muitos vírus são afetados por nossa destruição da água e da terra. Em muitos sentidos entramos numa época na qual nos apropriamos crescentemente de terra para os nossos propósitos, o que significa que cada vez mais vírus estão se aproximando de nós… para o bem ou para o mal!

    Sávio Cavalcante

    1. Sim. Embora contenha limites – o que se espera, na verdade, de qualquer projeto científico – já existe um acúmulo de conhecimento suficientemente vasto na teoria sociológica para lidar com fenômenos sociais como a pandemia, o qual se apoia, por certo, na produção de diversas outras áreas das ciências humanas. Seria até desnecessário nomear dimensões, esferas, determinações ou temas. Como nada passará incólume ao coronavírus, temos muito com o que contribuir. Penso que, nesse esforço, é urgente a sinalização para um saber acumulado que pode ser tomado, pelo menos nesse contexto, como uma unidade possível da sociologia. Não se trata de ignorar sua pluralidade e diversidade, algo que deve ficar mais do que explicitado nas diferentes respostas dadas por outros/as colegas. Porém, a ameaça neofascista no poder federal (com base social não desprezível) não se expressa apenas em “ataques”, mas na destruição da ciência que historicamente tem na autonomia universitária e de institutos de pesquisa seu princípio de realização, o que permitiu, entre outras coisas, a própria diversidade teórica. Mesmo as críticas ao projeto científico moderno internas a esse campo não estão imunes ao irracionalismo dessas forças.

      Se o que precede faz sentido, penso que, além de compreender e explicar, é preciso que a comunidade de sociólogos/as também encontre maneiras adequadas de intervenção prática, uma efetiva sociologia pública. O momento por que passamos exige ação – condicionada, como sempre estará, pelas nossas possibilidades e arranjos pessoais e familiares. Pessoalmente, tenho tentado colaborar com os esforços que minha universidade – a Unicamp – tem realizado nesse sentido. As experiências que tenho tido nos últimos meses, ao colaborar com diversas frentes da força-tarefa criada na universidade, colocaram a mim e a outros/as cientistas sociais em contato direto com colegas da, entre outras áreas, biologia, química, estatística, medicina, engenharia e ciência da computação – além de diálogos com Ministério Público, empresas, associações de bairro e movimentos sociais. Na relação com essas outras áreas da ciência, instituições e agentes sociais, percebo que existem dimensões dos processos que, sem dúvida, exigem os conhecimentos e as experiências que sociólogos/ as nos legaram.

    2. Entendo que períodos de interrupção forçada do que se entende por normalidade, como o da pandemia, provocam um efeito devastador para a sociedade, mas singular para a sociologia: pactos sociais são estremecidos, camadas de mediações que viabilizam a dominação, exploração e opressão são refeitas em registros menos opacos, contradições tornam-se mais explícitas, dilemas morais ficam mais sensíveis à experiência. Isso não significa, contudo, como indicarei adiante, que as coisas irão mudar “para melhor” no futuro. Mas o momento, em termos analíticos, é único. Destaco aqui dois problemas de pesquisa cujas configurações, na excepcionalidade da pandemia, denotam de forma crua os problemas da normalidade.

      Meu objeto de pesquisa principal nos últimos anos tem sido a reprodução social da classe média e como isso repercute em seu posicionamento político e ideológico. Partindo das análises marxistas sobre trabalho produtivo e reprodução social, revela-se o nexo necessário entre as atividades diretamente produtivas para o capital, realizadas por contratos estabelecidos na esfera pública, e a reprodução social da vida organizada nas unidades domésticas. Parte da classe média pode até comprar certos serviços domésticos apenas para liberar um tempo de sua vida para o lazer. Porém, para a maioria, especialmente com filhos, a possibilidade de ser produtiva em seus trabalhos depende necessariamente do arranjo familiar específico que obtém para se liberar dessas tarefas, o que se consegue comprando o tempo de trabalho de trabalhadores/ as ou submetendo membros de suas famílias a relações assimétricas no espaço doméstico. Em termos práticos, isso significa que parte fundamental da discussão sobre classe, gênero e raça precisa lidar com o modo capitalista de organizar a economia ou, em termos de reformas estruturais, é preciso vislumbrar formas de reprodução social garantidas pelo Estado que sejam alternativas públicas às unidades domésticas ou que pautem a diminuição geral da jornada de trabalho.

      Um objeto de pesquisa correlato diz respeito à regulamentação do emprego. Em artigo recente, Vitor Filgueiras (UFBA) e eu defendemos que a mais importante “inovação” de empresas que contratam trabalhadores por aplicativos, como a Uber ou Ifood, não diz respeito à tecnologia ou a seu algoritmo. A maior inovação foi produzida por seus advogados e pelo lobby político, que corromperam legislações no intuito de impedir a tipificação do vínculo material empregatício entre empresa e motorista. Assim, parte majoritária do que se considera “trabalho autônomo” é, na verdade, trabalho assalariado dissimulado. O atual governo, que ampliou a reforma trabalhista, e as vozes que defendiam o “novo mundo do trabalho” agora se dizem preocupados com informais e autônomos. Ora, milhões de trabalhadores são informais ou autônomos por uma decisão política vista como justa e racional na normalidade.

    3. Como afirmei, o contexto da pandemia permite analisar sem algumas mediações os princípios que justificavam os critérios de existência sob a normalidade, especialmente aqueles que definem o valor do tempo e da vida das pessoas sob as lentes da amoralidade dos laços mercantis. Na excepcionalidade provocada pela pandemia, é possível sentir uma verdade da normalidade: a sociedade é um ente maior que a simples soma das partes que a compõem, e certos princípios não são redutíveis ao cálculo de sobrevivência, mais ou menos correto, que fazem os indivíduos isoladamente. Para as ciências sociais, isso pode trazer consequências duradouras. Haverá fatos empíricos novos, a partir de agora incontornáveis, sobre como as desigualdades, apresentadas como justas e racionais, modificam não apenas as oportunidades de vida, como o próprio direito de preservá-la. Novamente, de forma alguma imagino que isso seja uma novidade. O que é diferente é a perda de verniz moral para se defender publicamente o fato de que há vidas descartáveis e ponto final.

      Embora a indignação social tenha aumentado no início desse processo, a normalização das desigualdades injustas tende a permanecer e, sendo realista, a perspectiva é de piorar o que já estava ruim. Algumas frestas e janelas de oportunidade, porém, podem ser abertas, a começar pela possibilidade de reconquistar recursos públicos para, de fato, ser direcionados ao SUS, com algum aumento de apoio na classe média. Há uma oportunidade de reversão da barbárie neoliberal. Ademais, inúmeras experiências de ação coletiva e auto-organização são formadas ou repensadas, por exemplo, nas periferias dos grandes centros urbanos, o que pode trazer um legado de organização política de base importante em termos da urgência do presente e da construção de alternativas para o futuro.

    4. Fazendo apenas um recorte que auxilia o que já respondi: os quatro volumes de Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, organizados por Ricardo Antunes, fornecem um panorama importante de uma agenda de pesquisa que se colocou como alternativa crítica às posições que tomavam a “modernização do trabalho” pelo seu valor de face. A teoria da reprodução social, formulada por autoras como Cinzia Arruzza, oferece uma proposta materialista de como relacionar as determinações da produção e reprodução de mercadorias em geral e da força de trabalho, em particular. Assim como a pesquisa de Bárbara Castro sobre gênero e trabalho flexível é muito importante nesse aspecto. Como argumentou em artigo recente: “para atuar com contratos flexíveis é preciso dispor de um corpo que não adoeça, não engravide e não colapse”. Sobre a dinâmica da desigualdade brasileira, o livro organizado por Martha Arretche, Trajetórias da desigualdade: como o Brasil mudou nos últimos 50 anos, é fundamental para compreender mudanças e permanências. Um projeto teórico e metodológico interessante da problemática materialista para um dia ser pensado à luz da formação social brasileira é American society: how it really works, de Erik Olin Wright e Joel Rogers. Sobre a aplicação do conceito de fascismo na atualidade, os textos recentes de Armando Boito Jr. são contribuições teóricas e analíticas fundamentais.

    Sergio Pignuoli Ocampo

    1. La teoría sociológica comprende un conjunto numeroso y heterogéneo de programas de investigación. Los proyectos de integración no han logrado avanzar ninguna agenda recíproca y conjunta de problematización. De hecho, no han logrado hasta el momento más que convertirse irónicamente ellos mismos en nuevos programas. Esto se debe a que sus invectivas han despertado la heurística negativa de los programas que se pretendía integrar, en lugar de demostrar y desarrollar una heurística positiva de la integración. Con todo esto en mente, no considero adecuado responder de manera abarcadora la pregunta: no todos los programas de investigación están igualmente equipados, algunos de ellos están mejor munidos que otros para modelar objetos de investigación dentro de la pandemia y el desastre humanitario de la covid-19.

      En este sentido, encuentro que determinados supuestos teóricos mejorarán el equipamiento de partida y la capacidad de respuesta de aquellos programas que los tengan. Si bien asumo que indagaciones ulteriores podrían ampliar su número, considero que estos supuestos son tres: una apertura interdisciplinaria hacia la epidemiología, la virología, la inmunología, la infectología y la demografía; una perspectiva integral hacia la sociedad mundial y hacia las decisiones, preferentemente de nivel organizacional; y una estrategia para atender y seguir de cerca los problemas y oportunidades generados por el proceso en ámbitos primordiales como la economía, la política, las relaciones internacionales, la ciencia, los media, el derecho, los movimientos de protesta, la agenda ambiental etc.

      El primer supuesto ofrecerá un acceso de primera mano al aspecto microbiológico del fenómeno y también a la progresión de su impacto poblacional. El segundo permitirá establecer la unidad del fenómeno, sin desmembrarlo regionalmente, e identificar la diferencia de las dinámicas decisionales, sin aunarlas holísticamente. Lograr una observación teórica de la unidad y de la diferencia del mundo social en estado de pandemia es tan importante como mantener balanceadas las observaciones evitando así que una se imponga sobre la otra – sea la unidad o la diferencia, el error es equivalente. A su vez, no considero imprescindible conservar este balance al momento de informar los resultados de las investigaciones. Es muy factible que debamos incorporar y/o fortalecer el factor alarma en nuestras intervenciones, pero debemos eludir la tentación de darle al alarmismo sociológico rango epistemológico. El tercer supuesto, finalmente, permitirá que los procesamientos teóricos que planteemos dentro del fenómeno se enriquezcan de manera permanente. Es importante concentrar la atención en los problemas y las oportunidades que se produzcan en el mundo social porque ellos registran alteraciones de expectativas y los eventuales rumbos en disputa ante el desconcierto. El registro de estos fenómenos no tiene afán prospectivo – la sociología no sabe leer el futuro –, sino que guarda el propósito de mantener continuamente irritadas nuestras afirmaciones con información candente de los procesos en curso.

    2. Mis áreas de especialización son dos: la teoría sociológica comparada y la teoría de sistemas sociales. En mi opinión, sus potenciales aportes son dispares. La teoría sociológica comparada podría ofrecer un marco de problematización conjunta de aquellos supuestos que faciliten o entorpezcan el desarrollo de hipótesis fundamentales sobre lo social y su dinámica en condiciones de pandemia, crisis y mitigación. Un concepto de lo social abstracto, y problematizar podría irritar diversos programas a la vez, estimular el diálogo entre ellos y triangular resultados. Lamentablemente, no veo en esta área condiciones para avanzar una agenda más ambiciosa. No vislumbro aportes en materia metodológica o técnica.

      La teoría de sistemas sociales ofrece un marco de referencia para el trabajo multinivel demandado por la investigación dentro del fenómeno pandémico. Cuenta con una teoría de la sociedad mundial y de sus dinámicas diferenciadas, ofrece una teoría de las organizaciones y de la competencia entre ellas, brinda una teoría de la interacción y de la multiplicidad de sus formas y adaptaciones (corporal y/o remota, sincrónica y/o asincrónica etc.) y delinea una teoría de los movimientos de protesta. Asimismo sugiere abordajes de la co-dependencia de las relaciones sociales con sus entornos desde una perspectiva sociológica del riesgo y del peligro. Esto es destacable en la actual coyuntura, porque el programa sistémico, lejos de ser indiferente, pone especial atención a las relaciones no-lineales que cada relación social mantiene con los sucesos y procesos virológicos, poblacionales, ecológicos etc. de su entorno. Ofrece incluso un enfoque profundo de las condiciones de posibilidad de lo social; para quienes deban lidiar con intrincados problemas de construcción de objeto, este se caracteriza por una extraordinaria labilidad y precisión para identificar condiciones de doble contingencia y de imputación de alteridad en condiciones de incomprensión forzosa.

      Por último, pero no en orden de importancia, la teoría de sistemas sociales ofrece una perspectiva general sobre la co-irritación entre todos estos niveles teóricos. Es preciso señalarlo, esta opción es más precisa y concreta que la vaga e indeterminada “relacionalidad” entre objetos, que en los mejores casos alcanza una mera aditividad puntual de fenómenos de distintos niveles. Es a su vez, y esto merece subrayarse, más plástica y descriptiva que la “dialéctica” de niveles, pues no sólo vira plásticamente entre las posiciones de cada nivel y busca relaciones contradictorias entre ellos, sino que además logra escindirlos causalmente sin fracturar por ello la unidad del objeto. Así logra exhibir la selectividad de las dinámicas, en lugar de caer en el siempre espinoso principio de necesidad aplicado a las relaciones y niveles sociales, que en más de una ocasión no logra más que llevar la descripción y la explicación sociológicas a las falacias del tipo el huevo y la gallina.

    3. La investigación epidemiológica y la filosofía política continental han acaparado la discusión sobre tendencias en esta coyuntura. La epidemiología le ha mostrado al mundo la utilidad de modelar estados presentes del objeto para simular estados futuros y alertarnos sobre los escenarios a los que las decisiones pueden conducirnos. La filosofía política continental ha lanzado prematuramente polémicas de tipo prospectivo en torno a sociedades post-pandémicas, a tal fin ha revisado ciertas premisas clásicas sobre la economía y/o el Estado con algunos datos de actualidad y ensayar hipótesis sobre futuros órdenes sociales.

      A diferencia de ambas construcciones de futuro, la investigación social no requiere esfuerzos prospectivos para construir su objeto. Hay tendencias sociales y es primordial ceñir su investigación a las metodologías de indagación de coyunturas y de procesos en curso. Los procesos sociales son irritables y alterables en cada uno de sus puntos de bifurcación. Así, al situar este objeto (tendencias) dentro de otro más amplio con estructuración y horizonte abiertos (procesos) y de naturaleza autoimplicada se logra exhibir su tensión, su selectividad y su autosimplificación. En este sentido, no huelga decir que la comunicación de tendencias puede alterar el curso de la tendencia descripta. En esta perspectiva, la investigación social ofrece a otros modelos de análisis tendencial elementos de problematización y criterios de control sociológicos. Las simulaciones epidemiológicas pueden reducir sus grados de incertidumbre al incorporar la reintroducción de las tendencias sociales dentro de procesos sociales. Y las prospecciones filosóficas sobre el Estado y/o el capitalismo podrían reducir los componentes especulativos de sus razonamientos, controlando sus afirmaciones en base a premisas sociológicas.

      A partir de esta discusión considero prematuro ser concluyente y me siento obligado a subrayar que el horizonte es aciago, pues en el reina el recrudecimiento del riesgo y de la calamidad humanitaria. Hecha la salvedad, al observar tendencias de la sociedad mundial no se identifican hasta el momento elementos que permitan aseverar que la pandemia esté llevando la diferenciación funcional a un umbral de catástrofe ni forzando el paso a una sociedad post-funcional. En los sistemas funcionales se observan impactos de signo y grado variables agrupables en tres tipos: impacto positivo por espiralamiento acelerado de operaciones (ciencia, mass media, política y religión); impacto negativo moderado por ralentización operativa (educación); impacto negativo crítico, o bien por inactividad repentina (deportes y economía), o bien por colapso y simplificación (salud). En algunos sistemas y códigos los impactos son aún incipientes (derecho, arte y moral). Se observan también interacciones con otros riesgos globales, en especial con los ecológicos (por ejemplo, se registra una disminución histórica de emisiones CO2). Cabe aclarar finalmente que la observación de tendencias en las organizaciones, las interacciones y los movimientos de protesta no se ciñe a estos esquemas y que cada uno de esos niveles demandaría una respuesta específica.

    4. Ante la complejidad de la coyuntura he tratado de contar con un menú de bibliografía amplio y de actualizarlo permanentemente, sin estrechar la lectura a literatura sociológica y de teoría social. Esto se debe a que no considero prudente que en esta coyuntura, como científicos sociales, nos desentendamos de los avances y debates en virología, infectología, inmunología, epidemiología y demografía relativos al SARS-Cov-2 y a la covid-19. Ya adentrándonos en la bibliografía de las ciencias sociales encuentro de mucha ayuda tres menús bibliográficos: la literatura del riesgo y del peligro, la literatura sobre sociedad mundial y sobre organizaciones, la literatura de la sociología de la salud y, me permito subrayarla, la literatura historiográfica sobre epidemias.

      En cuanto a la literatura del riesgo y del peligro, me alegra sobremanera que la saga de trabajos de Ulrich Beck haya sido devuelta a la discusión pública y constituye una referencia ineludible dentro del contexto que atravesamos. Pero por esas mismas razones recomiendo con mucho entusiasmo revisitar la fuente de la que abrevó Beck, una fuente más caudalosa y más turbulenta: la sociología del riesgo y del peligro de Niklas Luhmann. En escritos como “Comunicación ecológica” o los dedicados al riesgo, Luhmann mostró que no se trata sólo de amenazas estáticas, latentes o efectivas, sino de una dinámica de riesgos, pero también de peligros en referencia a las amenazas. Entre los términos del esquema riesgo/peligro vira continuamente el sentido de las alarmas, las protestas, las catástrofes y los futuros.

      En cuanto a la literatura sobre sociedad mundial y sobre organizaciones, encuentro un gran soporte y una irritación permanente en los trabajos de Luhmann, que son insoslayables en ambas materias. También resulta provechoso leer a Rudolf Stichweh y a Aldo Mascareño problematizar y optimizar la tesis de la sociedad mundial, y a Marcelo Arnold y Darío Rodríguez devanando las decisiones organizacionales, que enfrentan un escenario fuertemente contradictorio por estos días. También encuentro mucho sustento y apoyo en la visión de la sociedad en investigaciones hechas sobre ellas desde otras perspectivas y concentradas en sistemas específicos como las de Anwar Shaikh y de Rolando Astarita sobre la globalización del capital o las de José Mauricio Domingues y de Mathias Albert sobre la política, el Estado y las relaciones internacionales regionalmente diversificados.

      La bibliografía de la sociología de la salud es vasta, pero encuentro mucha información relevante y confiable en las producciones locales, un gran ejemplo de ellas son las investigaciones llevadas a cabo por el equipo de Graciela Biagini en la UBA.

      Reservo el último lugar, pero no en orden de importancia, a la historiografía de epidemias. La lectura de investigaciones historiográficas sobre la peste negra, la gripe española o el SARS-Cov-1 ofrece hallazgos y sorpresas que provocan corrosivamente una profunda reflexión teórica y conceptual sobre la complejidad de la indagación de tendencias en ciencias sociales. Me permito señalar a título personalísimo que en ella encontré mucha más riqueza sociológica y actualidad, por caso en las clásicas publicaciones del equipo de Ma. del C. Carlé sobre peste negra, estructuras y procesos hispanomedievales, que en los resonados debates públicos entre filósofos políticos consagrados al capitalismo y/o al Estado post-pandémico/s.

    Soraya Vargas Côrtes

    1. O interesse de pesquisa sobre o tema é crescente e muito expressivo. Como, no entanto, a pandemia está em andamento e seus efeitos sociais e políticos são apenas parcialmente conhecidos, há que aguardar para que investigações consistentes venham a ser realizadas em diferentes escalas – mundial, referente a grandes regiões do mundo, nacional, infranacional e local. A teoria sociológica oferece um instrumental robusto para a análise dos processos sociopolíticos desencadeados na epidemia. A sociologia histórica oferece subsídios para o exame de paralelos com pandemias que ocorreram no passado. Combinada à sociologia da saúde e a abordagens teóricas clássicas, pode auxiliar na análise de como se constroem e expressam medos coletivos de contágio e morte que, muitas vezes, avivam preconceitos e estigmas associados a certos grupos sociais. Há a atribuição de julgamentos morais direcionados a características pessoais ou comportamentais de indivíduos e grupos que são vistos como responsáveis pelo adoecimento. Nesse sentido, os que adoecem seriam culpados pela doença. As sociologias da saúde e da ciência também têm tratado de um fenômeno que se tornou saliente no contexto da epidemia: o saber biomédico, que se expressa na crescente medicalização de inúmeras dimensões da vida social. Esse saber está em disputa com outros saberes pela atenção dos governantes a fim de que suas propostas sejam as escolhidas para embasar a adoção de políticas públicas. A sociologia das profissões e a das políticas públicas contribuem para que se possa analisar a dinâmica interna do campo do saber médico. Períodos de epidemia fortalecem os subcampos da epidemiologia e das doenças infectocontagiosas, frente às especialidades que tratam individualmente das doenças e da administração do sistema médico-financeiro responsável pela produção de bens, insumos e serviços, que eram dominantes nos tempos passados de relativa bonança econômico-sanitária.

    2. Tendo em vista que as ações governamentais alcançam praticamente todas as dimensões da vida em sociedade, a sociologia das políticas públicas busca subsídios em outras subáreas da sociologia e em diversas áreas de conhecimento. Para análise da epidemia são particularmente relevantes os estudos das sociologias da medicina, da saúde e histórica, alguns de inspiração foucaultiana, que examinaram a constituição e institucionalização do saber médico e a ampliação do poder da biomedicina sobre o regramento moral nas sociedades contemporâneas. Pesquisas inspiradas nesse debate podem abordar disputas em curso sobre quais políticas devem ser adotadas no enfrentamento da epidemia. Apesar de alguns governantes e segmentos da população minimizarem os perigos da covid-19, o medo do contágio e da morte e a confiança no saber médico, como um imperativo cultural robusto, podem estar obstaculizando a implementação de políticas baseadas na noção de que seria desejável que o contágio ocorresse rapidamente para que houvesse imunização coletiva, reduzindo assim os riscos de depressão da economia. A sociologia das políticas públicas combinada a outras subáreas da sociologia também pode auxiliar na análise de possíveis mudanças de inflexão nas políticas de saúde provocadas pela epidemia. Ao final do século passado, as ideias liberais, dominantes em agências internacionais e em muitos governos, defendiam a necessidade de diminuir o tamanho do Estado. Concomitantemente, observava-se a existência de controle crescente de doenças contagiosas e a prevalência de doenças crônico-degenerativas (cardiovasculares e neoplasias). Em tais circunstâncias, as políticas de saúde tendiam a enfatizar a necessidade de mudança de hábitos individuais e a focalizar gastos públicos no tratamento de doenças crônico-degenerativas. Epidemias como a do HIV e, de forma mais dramática, da covid-19 podem estar provocando a necessidade de mudança rápida e mundial nos padrões de ação estatal sobre como tratar saúde e doenças.

    3. A pandemia, afirmam os especialistas em epidemias virais, é uma entre muitas, devido ao aquecimento global e o desflorestamento, bem como ao contato entre seres humanos e animais na produção de proteína animal destinada ao consumo. Em meio às mudanças que se podem vislumbrar está o aceleramento de processos já em andamento. Estão em curso: a alteração do centro de poder político, cultural e econômico mundial do Ocidente para o Oriente; tendências nacionalistas, frequentemente associadas a traços xenófobos, em contraste com a realidade de cadeias produtivas fortemente mundializadas; a redução da importância dos mediadores tradicionais nas democracias liberais (partidos, sindicatos, grande mídia) combinada à diversificação e proliferação de novos; o enfraquecimento de instituições e da crença coletiva na legitimidade das democracias liberais; a virtualização dos meios de informação e de contato social associada ao avanço tecnológico que viabiliza o tráfico rápido de grande volume de dados pela internet. Já é possível observar o aumento da tensão entre organizações privadas e estatais que podem exercer controle sobre os indivíduos e grupos por meio dessas tecnologias de informação e comunicação e os indivíduos e grupos que são contrários a esse controle. O confinamento, a restrição a reuniões e aglomerações podem vir a produzir uma alteração nas “etiquetas sociais”, pelo medo do contágio. Mais importante, porém, pode ser a construção de novos repertórios de ação coletiva virtuais e a produção de regras mundiais mais restritivas de relacionamento em mídias sociais. Uma mudança já em andamento é o renascimento na crença de que o Estado e organismos de governo supranacional devem ser fortes o suficiente para promover a saúde coletiva, a proteção dos mais pobres e intervir na economia para ativá-la, quando boa parte das atividades econômicas estão paralisadas. O consenso liberal parece estar sendo colocado em questão, particularmente no Ocidente, onde se manifestou com mais força.

    4. Três conjuntos de temas podem auxiliar na compreensão dos processos em curso provocados ou acelerados pela pandemia. O primeiro se refere às sociologias da saúde e da medicina. O livro The Palgrave handbook of social theory in health, illness and medicine apresenta uma síntese das discussões predominantes nessas subáreas da sociologia. Editada por Fran Collyer, a obra apresenta os debates contemporâneos e a contribuição de autores clássicos como Marx, Weber, Durkheim e Parsons na constituição desses dois campos correlatos de conhecimento. O segundo versa sobre as mudanças nas tecnologias de informação e comunicação (TICs) e seus impactos. A obra de Manuel Castells, muito conhecida pelos sociólogos brasileiros, aborda temas como a sociedade da informação, a globalização e a ação coletiva no contexto das mídias sociais e da internet. Estudo menos conhecido é o livro The internet and democratic citizenship: theory, practice and policy, de Stephen Coleman e Jay G. Blumler, que apresenta uma análise do impacto das novas TICs na organização da ação coletiva e sobre os centros tradicionais de mediação política nas democracias liberais. O terceiro conjunto é composto pelas teorias das modernidades múltiplas ou alternativas e oferece ferramentas analíticas que colaboram para a compreensão de mudanças mundiais em curso, as quais podem vir a ser aceleradas pela pandemia, principalmente a tendência de aumento da importância econômica, política e cultural da China vis-à-vis os Estados Unidos e a Europa. Ao recusar a visão eurocêntrica de civilização, essa vertente ressignifica o conceito de modernização, acentuando a importância de imperativos culturais profundos imersos em processos civilizatórios históricos-institucionais não ocidentais. As obras de Shmuel Eisenstadt são o ponto de partida contemporâneo dessa corrente de pensamento, porém há muitos estudiosos que a têm utilizado em suas análises. Destaco dois colegas brasileiros que a empregaram no estudo de processos históricos latino-americanos, José Maurício Domingues e Sérgio Costa.

    Stephen Turner

    1. Aqui, há diversos problemas e diferentes assuntos para compreender e explicar. Me concentrarei em um. A característica extraordinária dessa situação é o fato de os especialistas falharem na previsão das consequências epidemiológicas do vírus. Até o momento em que os números explodiram na Europa e, logo depois, em Nova York e alguns outros locais nos EUA, os especialistas ignoravam essa possibilidade. Quando ficou evidente que haveria uma perda significativa de vidas, eles aplicaram modelos que exageravam amplamente os efeitos prováveis. Isso direcionou atenções para a modelagem − e suas limitações −, mas também apontou para o fato de tratar-se de um problema multidisciplinar, e, por isso, não haveria especialistas capazes de dar declarações de autoridade sobre todos os seus aspectos: a virologia, a epidemiologia, as políticas públicas necessárias e assim por diante. Sem dúvida, houve divergências e uma confusão generalizada em relação a fatos básicos a respeito de como o vírus foi de fato transmitido de pessoa para pessoa, além da confusão sobre o modo como ele mata e quais são os tratamentos eficazes.

      Nos últimos 20 anos, têm ocorrido debates em sociologia, e particularmente em estudos de sociologia das ciências, sobre a especialização e a criação da ignorância. Sabemos muito sobre a construção social de problemas e fatos científicos e compreendemos como funciona o processo de criação de especialistas e fatos especializados. Também conhecemos bem as formas pelas quais Estados e democracias lidam com as afirmações de especialistas. Em especial, temos bons trabalhos sobre as diferentes maneiras em que o conhecimento interage com diferentes tradições burocráticas e políticas nacionais, principalmente focalizadas nos EUA, na Alemanha e na Grã-Bretanha. As diferenças nas reações desses países se mantiveram fiéis à norma, isto é, partes interessadas sendo lideradas pela burocracia na Alemanha, a delegação a uma figura central na Grã-Bretanha e diversas experiências de diferentes jurisdições no sistema federal dos EUA, direcionando o foco para as melhores práticas.

    2. Grande parte de minha pesquisa se relaciona à expertise – como se organiza, as relações sociais das quais ela depende, seu papel na política e as dificuldades resultantes da ocorrência de problemas mal formulados − dependentes de considerações de diferentes especialistas e nos quais não há solução ideal de todos ou muitos pontos de vista relevantes disponíveis. Esse tipo de pesquisa é retrospectivo, mas pode, portanto, preocupar-se com erros de especialistas, que têm um valor potencial na elaboração de instituições que seriam melhores para enfrentar novos problemas. Planejar-se para o próximo erro de especialista, contudo, é como planejar-se para a próxima guerra com base nas experiências da última: sempre dá errado. A pandemia atual, no entanto, fornecerá a futuros analistas uma variedade extraordinária de casos distintos apresentando diferentes políticas, diferentes relações entre especialistas e políticas, além de diferentes estruturas organizacionais lidando com os problemas de conhecimento e política envolvidos.

    3. Novamente, o problema dos especialistas e a sua relação com o mundo político e as políticas se agiganta. Paradoxalmente, a pandemia evidencia a nossa profunda dependência do conhecimento de especialistas − nenhuma tomada de decisão efetiva foi possível sem eles − e o fato de não podermos meramente confiar neles ou “ouvir a ciência”. Pareceres devem ser julgados, e as limitações de conhecimentos especializados examinadas caso a caso, modelo a modelo, assim como as diversas afirmações conflitantes de especialistas devem ser sintetizadas e as políticas e implementações conduzidas respeitando o julgamento e discussão democráticos, com sentido de responsabilidade democrática. Novas formas de organização social precisam responder a novas formas ou conhecimentos, bem como a novos problemas de especialização. A grande questão do momento é se este será um episódio de aprendizado ou um futebol político que revela divisões fundamentais na sociedade sobre questões de autonomia pessoal, o papel do Estado e problemas semelhantes. Independentemente disso, entretanto, o que mudou é o seguinte: as questões de conhecimento tornaram-se centrais na governança e na política e são o principal problema das sociedades modernas e não a solução para os seus problemas, como defendiam os iluministas.

    4. É provável que o texto mais importante para começar a pensar sobre os problemas da expertise seja a obra sintética de Roger Koppl, Expert failure, que une a literatura sobre estudos sociológicos à literatura sobre economia. Dos sociólogos que contribuíram para esse campo, Nico Stehr e Reiner Grundmann publicaram um panorama, Experts: the knowledge and power of expertise. Key ideas. Stehr editou uma série de volumes relacionados ao assunto. Uma série de livros escritos por Harry Collins e Robert Evans articulou um conjunto de definições de tipos de especialização “genuína”, e eles escreveram um trabalho ainda mais polêmico, Why democracies need science. Sheila Jasanoff tem sido uma voz pública a respeito das questões atuais envolvendo especialização e o coronavírus, e ela desenvolveu um trabalho fundamental sobre a política comparativa de especialização entre os principais países europeus e os EUA. Em breve, haverá também o Oxford handbook of expertise and democratic politics, editado por Gil Eyal e Thomas Medvetz, que fornece um panorama das várias questões relacionadas à especialização.

    Sujata Patel

    1. Penso que não. Porque a discussão sobre pandemias anteriores se restringiu a regiões mais pobres da Europa (gripe espanhola) ou ao sul global (HIV, gripe asiática), e portanto esses debates foram limitados pela análise regional associada a diferentes fragilidades internas dos sistemas de saúde regionais, como a natureza da medicina em questão e as desigualdades na distribuição de pessoal e recursos. Hoje, por outro lado, o que vemos é o alcance global da discussão, que ressaltou as inadequações diferenciais da medicina e dos sistemas biomédicos em várias regiões. Como consequência, temos uma abertura epistêmica para compreender uma questão mais fundamental: como e por que a modernidade neoliberal e seus riscos organizam diferencialmente o acesso à saúde pública passando por geografias específicas no mundo e dentro delas em termos do seu acesso por indivíduos e famílias de diferentes classes, castas/ raças, gênero, etnias, afiliações religiosas. Uma análise como essa não só permite o reenquadramento do conteúdo da teoria social, mas também propaga o uso de metodologias que podem analisar essa questão em diferentes escalas e, portanto, fazer uma pergunta muito mais ampla, a do impacto diferencial do antropoceno no mundo. Essa janela epistêmica ajudará no distanciamento em relação às posições eurocêntricas sobre o risco representadas por Beck e outros. Ajudará pesquisadores a usar uma abordagem de economia política comparada para compreender como a pandemia do presente é parte dos processos desiguais de acumulação capitalista que promovem as classes médias e por outro lado se relaciona à criação de aspirações hedonistas, ao consumismo, urbanização e migração dessas classes. No sul global essas tendências se interseccionam e criam ecologias precárias e instáveis organizadas por meio de mercados de força de trabalho circular informais e desregulados. Dada a sua associação com sistemas administrativos fracos e o apoio de governos de direita que alvejam minorias esvaziando seu acesso a serviços públicos e benefícios sociais, aprofundam-se assim iniquidades, privações e marginalidades.

    2. Eu trabalho na interseção entre as áreas da sociologia dos trabalhadores pobres (quase 90% dos trabalhadores da Índia estão nos setores não formais da economia), urbanização e migração (entre 45% e 50% dos trabalhadores do setor informal são migrantes circulares internos) e seu impacto na formação de cidades e centros urbanos na Índia. Minha pesquisa focaliza primariamente na cidade de Bombaim, no oeste da Índia, uma cidade representante do moderno capitalismo indiano, em que mais de 50% dos cidadãos vivem em favelas densas e superpovoadas, sem direito à moradia ou à terra. Essa cidade articula as várias dimensões da crise que vemos hoje: falta de acesso à saúde pública, pouca ou nenhuma preocupação com psicoses associadas à superpopulação mesmo em períodos de normalidade, falta de acesso à água, ao saneamento básico e à moradia, violência dissimulada e explícita contra idosos, mulheres e crianças, e afluxo de migrantes circulares internos de grupos discriminados que competem por empregos e formas de subsistência. Publiquei três volumes em coedição sobre Bombaim e neste momento estou tentando construir uma rede de pesquisadores que possa examinar, no contexto presente, processos específicos que dizem respeito a ecologias urbanas e economias desreguladas em Bombaim e suas periferias. Acredito que isso possa ajudar a reconceituar modos de pensar a “experiência urbana” nessa cidade, mas também na Índia em geral. Também edito uma série chamada Cities and the Urban Imperative (Cidades e o Imperativo Urbano) para a editora Routledge, que elabora a forma como o investimento intelectual numa modernidade capitalista baseada em centros urbanos pelo Estado-nação indiano criou novas formas de conflito e expôs a população desse Estado-nação a novos riscos ecológico-sociais e de saúde. Vejo esse trabalho como um repensar coletivo para compreender o momento presente.

    3. Sim, para ambas as perguntas. A falta de perspectiva e de informação não permitiram que o governo indiano preparasse uma intervenção de curto ou longo prazo para controlar a pandemia. Por causa do neoliberalismo, o sistema de saúde pública da Índia (exceto o do estado de Kerala) estava em crise. Havia falta de pessoal e subfinanciamento de suprimentos médicos, por um lado, e privatização da saúde, por outro, como parte de uma política neoliberal. Não havia kits de testagem e equipamentos de proteção para os trabalhadores da saúde, ao mesmo tempo em que a privatização dava acesso ao tratamento para pacientes de renda mais alta.

      A falta de preparação para lidar com a pandemia como um problema de saúde, e de conhecimento sobre como resolver uma crise de saúde pública (nesse caso, a necessidade de isolar, quarentenar, e conter a transmissão comunitária a partir dos que trouxeram o vírus para o país, especialmente os viajantes internacionais dos estratos sociais mais elevados) e a falta de suprimentos (como kits de testagem) permitiram que o governo fosse otimista no início (enquanto os números eram baixos já que a testagem era mínima) e depois interviesse com duas políticas: o lockdown por todo o país e o distanciamento social, ambos a ser administrados pela polícia sob o comando das autoridades provinciais que, por sua vez, também não estavam preparadas para lidar com a pandemia. O lockdown foi planejado para os proprietários de casas com possibilidade de praticar isolamento (entre 10% e 15% da população) e não para a população urbana densamente disposta (50% a 60% no oeste e no sul da Índia) em favelas superpopulosas cuja maioria é feita de trabalhadores diaristas, eventuais e de empreitada dos quais quase 50% são migrantes circulares de curto prazo. Isso isolou as classes médias e altas dos grupos desprivilegiados, rompendo vínculos de confiança, cuidado e atenção desenvolvidos para organizar redes informais de relações econômicas e sociais que trocavam bens e serviços entre comunidades de diferentes classes. Provocou o agravamento do estigma de casta, do preconceito e discriminação. O lockdown bloqueou as possibilidades de geração de renda dos trabalhadores, deixando-os desassistidos e forçando-os a caminhar por semanas até seus vilarejos de origem, o que causou muitas tragédias. Além de paralisar os sistemas de economia e confiança que os organizam por meio de vínculos econômicos e sociais de cuidado, atenção entre classes e filiações comunitárias.

    4. Já que eu argumentei que o momento abre uma janela epistêmica para a compreensão da articulação de processos profundos de desigualdade, uma nova perspectiva se anuncia relativa ao risco e à confiança. Assim, além dos trabalhos de referência sobre confiança (Luhmann, Sztompka, Giddens) e risco (Beck e seus colegas), há uma necessidade de reorientar esses conceitos para os problemas e processos do sul global. Para isso, é necessário conduzir oficinas em diversas regiões e localidades a fim de perceber as interseções desses processos complexos que acontecem mundialmente.

    Tatiana Landini

    1. Responderei às perguntas com base na teoria à qual estou “filiada”, a sociologia de Norbert Elias, que está assentada em dois princípios fundantes, a noção de que a sociedade é formada por indivíduos e grupos interdependentes e a noção de processo, quer dizer, a noção de que é a relação entre indivíduos e grupos interdependentes que direciona o processo de desenvolvimento social (ou processo da civilização). A atual pandemia de coronavírus demandou a adoção de medidas de contenção drásticas – o fechamento de escolas, universidades, comércio, parques, clubes. As pessoas foram instruídas a ficar em suas casas, saindo apenas para o essencial. Essa nova organização social, ainda que temporária, mostrou claramente a questão da “interdependência”, característica essencial do conceito de figuração. A instrução para que todos fiquem em casa é não apenas para evitar que sejamos contaminados pelo vírus, mas principalmente para diminuir o risco de contaminação de outros, evitando assim a demanda por hospitais e cuidados médicos para além da capacidade instalada. Perceber que qualquer indivíduo ou grupo que não segue as recomendações pode colocar a minha saúde em risco, mesmo que não haja contato direto entre nós, é uma bela demonstração da interdependência, e, portanto, do conceito de figuração. E interdependência implica poder. Na Europa, há plantações que estão sendo perdidas por falta de pessoas que trabalhem na colheita, normalmente realizada por imigrantes, incluídos aqueles em situações de ilegalidade. O poder, para Elias, não é algo que um detém e a que o outro se submete, sendo preferível falar em equilíbrio (ou balança) de poder, o que fica ilustrado nesse simples exemplo.

      Momentos como o que estamos vivendo mostram também a pertinência da noção de “processo”. Como vocês afirmam na pergunta, os cientistas sociais responderam rapidamente à atual pandemia, apresentando análises e reflexões, em especial no que diz respeito a desigualdades (econômicas, de raça, gênero etc.) que aumentam ou diminuem o risco de contaminação, bem como de desenvolver as formas mais graves da doença. Essas desigualdades não são características apenas do momento presente, mas decorrentes de todo o processo de formação econômico-social de nosso país, da formação de nossas crenças e modos de ser e pensar (habitus social), da classe política, das classes sociais e de suas relações de interdependência etc. – em suma, do processo da civilização em nosso país. Não há como me estender mais. Resumindo, o que estou querendo dizer é que o atual momento de crise tem mostrado a pertinência dos princípios fundantes e fundamentais da sociologia de Elias, o que significa que esse instrumental pode nos auxiliar em muito no cumprimento desse desafio de compreender o momento por que passamos, assim como de auxiliar estratégias de manejo da atual crise sanitária.

    2. As ciências sociais aprenderam muito na década de 1980, época do início da epidemia de aids (quando assim era chamada); a parceria entre ciências sociais e saúde tem sido muito frutífera. As discussões sobre a pandemia de coronavírus estão já muito ricas, elementos importantes têm sido levantados, pesquisados e dimensionados. Uma das riquezas da sociologia de Elias é também um de seus maiores desafios, discutir as relações entre mudanças que ocorrem em três níveis distintos: o âmbito mais individual ou micro (mudanças na estrutura da personalidade e nas figurações a que chamamos de família, por exemplo), mudanças mais amplas (na estrutura das sociedade, no Estado e em sua conformação) e na relação entre Estados e na humanidade de forma geral. A pandemia, justamente por sua amplitude, nos coloca desafios que permitem direcionar o foco da discussão exatamente para as interdependências entre esses três níveis. Trabalhos comparativos entre países (com formações econômico-sociais similares e distintas) poderiam ajudar a refletir sobre razões para a adesão mais forte ou mais fraca à demanda por isolamento social, o que implica o desenvolvimento da autocoação. Da mesma forma, ajudariam a pensar em características do habitus social que funcionam como efeito de trava para determinadas mudanças. O papel da OMS e de outras agências supraestatais merece também ser trazido para o debate.

    3. De certa forma, já indiquei minha resposta na pergunta 1. Pensando a partir da sociologia de Elias, fica muito difícil pensar em mudanças que não estejam de alguma forma conectadas a características anteriores de uma determinada figuração. Da mesma forma, o que virá depende do que vivemos hoje. A palavrachave é processo. A segunda palavra-chave é habitus. O vírus possui seu próprio potencial de contaminação e de letalidade; estudos epidemiológicos amplamente disseminados demonstram isso. Mas o que fica claro olhando mapas e tabelas é que a incidência da doença em cada país depende também de inúmeros outros fatores, entre eles a estrutura sanitária instalada, a ocupação espacial e demográfica, as desigualdades de classe, as decisões políticas e a legitimidade do Estado e do governo para fazer valer suas recomendações. A transformação na vida diária de cada um de nós foi muito grande, certamente deixará marcas. Mas o quão profundas serão essas marcas – e, portanto, a possibilidade de engendrar mudanças mais efetivas e duradouras – é ainda cedo para saber. Mudanças mais amplas, como a profunda desigualdade e relação entre classes sociais no Brasil, não acredito que vão acontecer. Deixo uma citação do texto Mudanças na balança nós-eu para reflexão a esse respeito:

      Ao estudar os processos de desenvolvimento social, defrontamo-nos repetidamente com uma constelação em que a dinâmica dos processos sociais não planejados tende a ultrapassar determinado estágio em direção a outro, que pode ser superior ou inferior, enquanto as pessoas afetadas por essa mudança se agarram ao estágio anterior em sua estrutura de personalidade, em seu habitus social. Depende inteiramente da força relativa da mudança social e do arraigamento – e portanto da resistência – do habitus social saber se e com que rapidez a dinâmica do processo social não planejado acarretará uma reestruturação mais ou menos radical desse habitus, ou se a feição social dos indivíduos logrará êxito em se opor à dinâmica social, quer tornando-a mais lenta, quer bloqueando-a por completo.

    4. A literatura é imprescindível! Atendo-me a Elias, selecionei dois livros que podem ajudar a pensar alguns desafios deste momento: A solidão dos moribundos. Começo com uma citação:

      A atitude em relação à morte e a imagem da morte em nossas sociedades não podem ser completamente entendidas sem referência a essa segurança relativa e à previsibilidade da vida individual – e à expectativa de vida correspondentemente maior. A vida é mais longa, a morte é adiada. O espetáculo da morte não é mais corriqueiro. Ficou mais fácil esquecer a morte no curso normal da vida. Diz-se às vezes que a morte é ‘recalcada’.

      A pandemia nos coloca – todos, novidade neste mundo tão desigual – em face da perspectiva de morte. O que havia sido legado aos bastidores da vida social ao longo do processo civilizador agora nos é apresentado diariamente nas primeiras páginas dos jornais. A solidão dos moribundos de que fala Elias é a solidão do envelhecer, do adoecer. Adoecer de covid-19 significa o isolamento completo; a morte ocorre numa solidão absoluta. E para os que ficam, o luto é também negado. Há muito a se pensar e pesquisar a partir da pandemia.

      Os estabelecidos e os outsiders: tendo como “paradigma empírico” o estudo sobre Winston Parva, Elias entende a relação entre estabelecidos e outsiders como um “tema humano universal”: relações que impliquem grande desigualdade na balança de poder (raciais, étnicas, de gênero, idade, religião, entre países, entre classes) podem ser iluminadas a partir desse estudo. Qual será o impacto da atual pandemia quando pensamos nas relações atuais e futuras, por exemplo, entre países, principalmente entre aqueles que conseguirem controlar melhor a situação sanitária e aqueles que não lograrem esse êxito? Ou entre classes sociais? No Brasil, pesquisas na região metropolitana de São Paulo têm mostrado um crescimento muito desigual na taxa de contaminados e de óbitos quando se consideram regiões periféricas e centrais, mais pobres e mais ricas. Discriminação e preconceito são questões caras a nosso país. Será a covid-19 um fator suplementar para a discriminação e o preconceito contra grupos específicos?

    Valter Roberto Silvério

    1. Os sociólogos e cientistas sociais estão mobilizados, mas suas formulações conceituais e discursos foram disseminados, com o esvaziamento de conteúdo e da referência temporal do contexto de sua formulação. Por exemplo, conceitos como distância social, desigualdades sociais (de classe, étnico-racial, de gênero) são usados para diferentes situações que não guardam relação de similaridade com o contexto de sua elaboração. Assim como a expressão isolamento social, que estava associada a grupos “inassimiláveis” em uma certa perspectiva da sociologia americana. O foco sociológico clássico nas relações sociais e na construção social da dominação econômica, da raça ou da doença se tornou insuficiente. O reaparecimento de doenças infecciosas em uma arena intensamente globalizada, marcada por atores supranacionais, nacionais e locais, levantou muitas outras questões, tais como: a repercussão e o impacto das disciplinas e/ou modalidades científicas na projeção de contextos de riscos e incertezas; o comportamento da mídia na produção de ciclos de “questões”, frente à dinâmica competitiva de audiência, a ser respondidas pelos representantes da ordem – cientistas, médicos, economistas, políticos profissionais, formuladores de políticas públicas; o modo como as respostas são fornecidas pode ampliar ou reduzir as ansiedades ante a constante possibilidade de instalação do pânico e da necessidade de identificação na forma de rótulo de um Folk Devil; além de “novos” temas como a interação entre saúde pública, imigração e segurança nacional; a realização de interesses econômicos versus a dinâmica da governança em saúde; a divisão de gênero do trabalho de cuidar e os indicadores quantitativos que, normalmente, demonstram como as minorias são desproporcionalmente vitimadas. Não é preciso dizer que cada um deles, quando associado a doenças infecciosas e/ou pandemias (HIV, SARS 20022003; H1N1 2009, covid-19), constitui um novo conjunto de desafios para os sociólogos e teóricos sociais em geral e, ao mesmo tempo, questiona o pensamento restrito (disciplinas específicas e/ou temas específicos no interior de uma área disciplinar), bem como escancara a necessidade e as possibilidades de atualização de uma agenda de pesquisa que atenda ao interesse público.

    2. Especificamente em relação ao tema da etnicidade, das relações entre não brancos e brancos, não há dúvidas de que a exposição permanente dos dados da vitimização desproporcional (mortes efetivas) de negros, populações nativas e latinos (no caso norte-americano) tem sido uma importante estratégia de denúncia das desigualdades sociais. A participação de negros, latinos e nativos entre os representantes da ordem, mesmo que estatisticamente insignificante, levanta, no entanto, a questão colocada por Stuart Hall para percepção das consequências devastadoras das relações de poder que constroem hierarquias: o problema da relação entre o que os olhos podem ver e o que a mente pode perceber. O que me permite construir a seguinte pergunta de pesquisa para a área: como minorias que participam da “ordem” têm atenuado, ou alterado, o regime de representação da desigualdade social associada a cor/“raça”/gênero neste novo contexto global-transnacional-diaspórico? É também com Stuart Hall que aprendemos como é difícil trabalhar a questão de como os passados coloniais violentos habitam o presente histórico e reverberam nas estruturas sociopolítico-econômicas de sociedades como a brasileira.

    3. Sim. Hoje, enfrentamos o surto global de uma doença que tem potencial para catalisar o que a historiadora Eva Schlotheuber chama de pandemia da mente, à medida que a desinformação prolifera e as linhas entre fato e ficção são rotineira e indiferentemente cruzadas. Existem dois tipos de respostas polares, a partir das quais se podem vislumbrar os caminhos de uma sociedade póspandemia. Um primeiro, tradicional, aciona as velhas respostas como forma de rememorar que as sociedades humanas se constroem e se reconstroem encobrindo seus velhos problemas. O outro se concentra na modelagem como uma tecnologia para legitimar versões particulares do futuro como base das políticas e investimentos atuais. Com toda a sua aparente precisão, os modelos são essencialmente uma maneira de incluir uma série de questões e incertezas em uma narrativa autorizada que estabiliza temporariamente o futuro.

    4. Stuart Hall, The fateful triangle: race, ethnicity, nation; Toni Morrison, The origin of others; Aldon Morris, The scholar denied: W. E. B. Du Bois and the birth of American sociology; Michel-Rolph Trouillot, Silencing the past: power and the production of history; Michael O. West, William G. Martin e Fanon Che Wilkins (eds.), From Toussaint to Tupac: the black international since the age of revolution.

    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Set 2021
    • Data do Fascículo
      Ago 2021

    Quais as alegações dos pesquisadores que não consideram os vírus como sendo seres vivos?

    Por que alguns cientistas não consideram os vírus como seres vivos?

    Como não possuem metabolismo fora de uma célula, muitos autores não admitem que eles sejam considerados seres vivos. Outros pesquisadores, por outro lado, consideram-nos vivos porque eles podem duplicar-se e apresentam variabilidade genética.

    Por que o vírus não é considerado um ser vivo Brainly?

    Resposta. Explicação: os vírus não são considerados seres vivos porque eles são acelulares e também por não possuírem metabolismo próprio ,ou seja, para qualquer atividade como nutrição e reprodução eles devem estar parasitando uma célula.

    Que argumentos podem ser usados para defender a ideia de que os vírus são seres vivos?

    Os principais argumentos usados por eles para justificar a classificação dos vírus como seres vivos são: - presença de material genético: a presença de DNA e/ou DNA indica a capacidade de transmissão de características genéticas aos descendentes. - capacidade de evolução: os vírus sofrem modificações ao longo do tempo.