Quando no processo penal as provas derivadas das ilícitas poderão ser admitidas?

O artigo 157 do Código de Processo Penal define as provas ilícitas como aquelas "obtidas em violação a normas constitucionais ou legais" [1], em outras palavras, cuja produção tenha se dado em desatenção à lei processual, à norma material ou, mesmo, aos princípios gerais. A doutrina, por sua vez, promove o refinamento do conceito legal ao diferenciá-las de acordo com a origem da vedação: "quando a proibição for colocada por uma lei processual, a prova será ilegítima (ou ilegitimamente produzida); quando, pelo contrário, a proibição for de natureza material, a prova será ilicitamente obtida" [2].

Quando no processo penal as provas derivadas das ilícitas poderão ser admitidas?
A importância de tal distinção está nas diferentes consequências atribuídas em um e outro caso e, consequentemente, à conferência da correta interpretação do disposto no artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal [3]: quando a violação refere-se a um "impedimento meramente processual, basta a sanção erigida através da nulidade do ato cumprido e da ineficácia da decisão que se fundar sobre os resultados do acertamento", ao passo que "a prova obtida por meios ilícitos deve ser banida do processo, por mais relevantes que sejam os fatos por ela apurados" [4]. Ou seja, "as ilícitas são inadmissíveis no processo (não podem ingressar e, se isso ocorrer, devem ser desentranhadas); as ilegítimas são nulas e, por isso, a sua produção pode ser renovada, atendendo-se então às regras processuais pertinentes" [5].

O imperativo bastante rígido aplicável às provas ilícitas, que, em regra, serve à proteção dos direitos constitucionalmente garantidos aos investigados [6], pode, no entanto, causar algumas distorções no caso concreto. A principal delas é: deve uma prova ilícita ser retirada do processo, ainda que possa ser utilizada em favor do réu?

Algumas teorias dedicam-se a responder tal questionamento.

A primeira delas é a teoria da proporcionalidade, de origem alemã, segundo a qual admite-se o uso da prova ilícita como fruto da ponderação entre valores fundamentais contrastantes, com a prevalência daquele que se mostrar mais caro à sociedade e ao próprio Estado Democrático de Direito [7]. Em termos práticos, "no confronto entre uma proibição de prova, ainda que ditada pelo interesse de proteção a um direito fundamental e o direito à prova da inocência, parece claro que deva este último prevalecer, não só porque liberdade e a dignidade da pessoa humana constituem valores insuperáveis, na ótica da sociedade democrática, mas também porque ao próprio Estado não pode interessar a punição do inocente, o que poderia significar a impunidade do verdadeiro culpado" [8].

A sua aplicação, inclusive, como bem defende MARCOS ZILLI, serve a uma das funções mais precípuas do Direito Processual Penal: a limitação do poder punitivo do Estado. Assim, "desconsiderar a prova nesse caso levaria à consagração abusiva da punição" [9]

Desdobramento dessa tese é a teoria da exclusão da ilicitude, capitaneada por Afrânio Silva Jardim, que defende que o réu que pratica um crime para obter uma prova em seu favor está amparado pelo estado de necessidade justificante e, uma vez que "o estado de necessidade exclui a ilicitude, pois a necessidade de salvar o interesse maior (liberdade de locomoção), sacrificando o menor (sigilo das comunicações telefônicas) em uma situação não provocada de conflito extremo, justifica a conduta do réu", ele estará "agindo de acordo com o direito e não de forma contrária", sendo a prova, portanto, lícita e admissível [10]. Lógica idêntica se aplica àqueles que defendem que a admissão da prova, nesses casos, está amparada pela legítima defesa, outra das causas excludentes da ilicitude da conduta [11].

Ainda, uma terceira teoria sustenta ser a prova ilícita, na realidade, uma categoria de ato processual nulo, mas que não deveria ter sua nulidade declarada em razão do princípio da escusa absolutória, o qual estabelece que, existindo fatores favoráveis ao réu, não se admite a declaração de nulidade da prova, visto que sua existência é de enorme valia para comprovar eventual inocência do acusado [12].

Apesar de variados os fundamentos, há um consenso doutrinário acerca da admissibilidade da prova ilícita, desde que seu uso seja em favor do réu. A jurisprudência, por sua vez, embora acene, de modo tímido, à admissibilidade da prova nessas condições, não revela, de modo seguro, qual fundamento deve ser utilizado para justificá-la.

Na Reclamação nº 33.711, julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, há somente breve trecho dissertando sobre a possibilidade de uso de prova ilícita em favor do réu, sendo "a única exceção à regra estabelecida no artigo 5º, LVI, da CF/88 (são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos)" [13].

Já no HC nº 164.493, igualmente julgado pelo STF, proferiu-se decisão ligeiramente mais detalhada, pois invocados o argumento proposto pela teoria da proporcionalidade e pela teoria da exclusão de ilicitude, posicionando-se no sentido de que, no ordenamento jurídico brasileiro, a prova ilícita, se benéfica para o réu, é plenamente admissível [14].

No âmbito da Justiça Estadual, mais especificamente no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), há alguns poucos acórdãos que tratam sobre o tema.

Na Apelação nº 1500984-43.2019.8.26.0583 [15], admitiu-se prova ilícita decorrente de violação de acesso ao celular do acusado, uma vez que sua análise ensejaria sua absolvição, o que efetivamente se concretizou posteriormente. Na Exceção de Suspeição nº 0042252-23.2020.8.26.0000 [16], foi admitida uma gravação ilícita realizada pela advogada do réu de conversa travada entre uma Promotora de Justiça e a Juíza de Direito que presidia o feito, porque comprovava atuação parcial por parte desta última, o que levou à declaração da suspeição da magistrada e, consequentemente, a nulidade dos atos por ela praticados no processo.

Em nenhum dos dois casos invocou-se, propriamente, o fundamento que conduziu a tais conclusões, apesar de mencionadas as teorias aqui trazidas.

O fato de ter sido a prova ilícita admitida sem que houvesse a adesão a quaisquer dos fundamentos defendidos pela doutrina, sobretudo aqueles aptos a afastar a ilicitude da conduta praticada pelo agente para a obtenção da prova, podem gerar, no caso concreto, enorme insegurança jurídica. Isso porque, constatada pelas autoridades a prática delitiva que produziu ou obteve a prova ilícita, é possível que o sujeito seja submetido a uma investigação ou, pior, seja por ela responsabilizado administrativa, civil ou criminalmente.

A exemplo, no caso de exceção de suspeição citado acima, a advogada que gravou a conversa entre a Promotora e a Juíza sofreu represália por essa ação, sendo submetidos os fatos tanto à OAB quanto ao próprio MP para que analisassem a conduta praticada pela defensora. No entanto, se a teoria da exclusão de ilicitude tivesse sido escolhida como justificativa para a admissão da prova, sua atuação seria lícita e, por esse motivo, não poderia suportar qualquer tipo de retaliação.

Uma vez existentes em nosso ordenamento jurídico teorias e institutos que, com sucesso, justificam os atos praticados nessas circunstâncias, é necessário que sejam elas utilizadas com a finalidade de evitar o impensável: submeter a uma persecução penal uma pessoa pelo simples fato de comprovar às autoridades sua inocência ou a de terceiros.


[1]Artigo 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.

§1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. 

§2º Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal seria capaz de conduzir o fato objeto da prova.

§3º Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.

[2] GRINOVER, Ada Pellegrini; SCARANCE FERNANDES, Antônio; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais ,2001, p. 133.

[3] Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.

[4] GRINOVER, Ada Pellegrini; SCARANCE FERNANDES, Antônio; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no Processo Penal. 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais ,2001, p. 135.

[5] GOMES FILHO, Antônio Magalhães; TORON, Alberto Zacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique. Código de Processo Penal Comentado. 4ª ed. São Paulo, Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 505.

[6] Sobretudo aqueles protegidos pelos artigos 5º, incisos III, X, XI e XII da Constituição Federal.

[7] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 172-173.

[8] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A inadmissibilidade das provas ilícitas no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 18, nº 85, p. 393-410, jul./ago.. 2010. p. 408-409. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=8024.

[9] ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Ainda sobre as provas ilícitas no processo penal. Revista da Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, v. 12, nº 1, p. 45-62, 2012. p. 53. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=150339.

[10] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 467.

[11] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 21ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 382.

[12] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Nulidades no processo penal. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 174.

[13] STF. Rlc. 33.711, relator: ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. em 11.06.2019, p. em 23.08.2019.

[14] STF. HC 164.493, relator: ministro Edson Fachin, Segunda Turma, j. em 23.03.2021, p. em 04.06.2021.

[15] TJSP. Apelação 1500984-43.2019.8.26.0583, relator: Laerte Marrone, 14ª Câmara de Direito Criminal, j. em 21/08/2020, p. em 21/08/2020.

[16] TJ-SP. Exceção de Suspeição 0042252-23.2020.8.26.0000, relator: Guilherme G. Strenger, Câmara Especial, j. em 24/02/2021, p. em 24/02/2021.

Pamela Torres Villar é advogada no escritório Salomi Advogados. Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra e em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Integra a Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB/SP, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

Em qual situação é possível a admissão de prova ilícita no processo penal?

A prova ilícita será admitida, devendo ser aceita quando o bem jurídico alcançado for maior que o direito violado.

São em regra admissíveis as provas derivadas das ilícitas?

são admissíveis no processo penal as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.

É possível utilizar provas ilícitas no processo penal?

No direito processual penal brasileiro, conforme dispõe expressamente o artigo 157 do CPP, são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.

Quando no processo penal as provas derivadas das ilícitas poderão ser admitidas responda conforme a teoria dos frutos da árvore envenenada e suas limitações?

As chamadas provas ilícitas não poderão ser aceitas, uma vez que foram contaminadas pelo vício de ilicitude em sua origem, que atinge todas as provas subsequentes. O artigo 573, § 1º do Código de Processo Penal, informa quanto a nulidade de tal ato: Art. 573.