Três das condições pré-analíticas que podem determinar tais interferências são

Nos processos de determinações laboratoriais as interferências pré-analíticas são as mais frequentes, sendo responsáveis por cerca de 70% dos erros que ocorrem no diagnóstico laboratorial. Essas interferências podem ser inerentes à coleta ou ao paciente. Erros inerentes à coleta acontecem por manuseio incorreto ou uso de material inapropriado, excessivo tempo de espera para a análise, problemas de centrifugação (excessiva rotação ou tempo) ou aliquotagem, uso inadequado de anticoagulante, identificação incorreta das amostras, volume insuficiente, coagulação da amostra, transporte prolongado ou inadequado da amostra, ou armazenamento em temperatura inadequada da amostra. Em todas estas situações é prudente rejeitar a amostra e solicitar nova coleta. Interferências também podem ser inerentes à condição clínica do paciente, entre as quais são mencionadas estresse durante a coleta, tempo de jejum não observado, atividade física prévia, uso de medicamentos ou dietas especiais, ou apresentação de hemólise, lipemia ou icterícia. Resultados alterados podem levar à repetição de testes incorretos, custos desnecessários, diagnósticos equivocados, intervenção potencialmente inapropriada e desfecho desfavorável para os pacientes.

Flutuações de temperatura resultantes do atraso no transporte são um grave erro pré-analítico, e muitos clínicos desconhecem a instabilidade dos analitos dependentes da temperatura; como exemplos de analitos sensíveis à temperatura estão glicose, creatinina, colesterol total, bilirrubina, potássio e a maioria das enzimas. Contudo, a presença de substâncias interferentes na amostra, isto é,  substâncias que podem alterar o resultado, constitui a maior causa de rejeição de amostras em laboratórios clínicos. A interferência endógena origina-se de substâncias que ocorrem na amostra devido a fatores relacionados com o estado clínico do paciente, tais como hemólise, lipemia e icterícia. Interferência exógena provém de substâncias que não são encontrados naturalmente em um paciente, tais como fármacos, tóxicos ou produtos naturais.

Hemólise

A hemólise (rompimento da hemácia) causa a liberação dos seus componentes internos ao líquido circulante, principalmente proteínas (hemoglobina), fósforo, potássio e várias enzimas. Ela pode ser in vivo ou in vitro. A hemólise in vivo sugere uma condição clínico-patológica do paciente, em que ocorrem anomalias na membrana da hemácia, no metabolismo celular ou na estrutura da hemoglobina. A hemólise in vitro é consequência de erros no procedimento de coleta, processamento, transporte ou armazenamento da amostra. Como principais causas da hemólise in vitro estão: aplicação prolongada do torniquete, uso incorreto do sistema de coleta, transferência do sangue da seringa para o tubo sem remover a agulha, aspiração do sangue muito rapidamente para dentro da seringa usando uma agulha de pequeno calibre, contaminação com álcool durante a coleta, perda da veia no meio da coleta e aplicação de pressão negativa no sangue já presente na seringa, homogeneização vigorosa das amostras de sangue, congelamento da amostra e alta temperatura de armazenamento.

A hemólise in vivo ou intravascular ocorre em várias condições clínicas como na anemia hemolítica, infecção de hemoparasitas, e reações transfusionais, estando associado a aumento dos níveis de bilirrubina indireta (livre). A hemoglobina causa coloração avermelhada no plasma, visível após centrifugação, quando o nível de hemoglobina livre excede 300 mg/L. Hemoglobinemia ocorre com uma quantidade de hemoglobina liberada no plasma que excede a capacidade de sua ligação com haptoglobina, sua proteína de ligação no plasma. Como os níveis plasmáticos da haptoglobina são baixos (100 mg/dL), na hemoglobinemia, frações de hemoglobina não ligadas à haptoglobina, são filtradas na urina, que em baixas concentrações são reabsorvidas, porém quando a capacidade de reabsorção é excedida, ocorre hemoglobinúria. A hemoglobina livre apresenta maior absortividade em comprimentos de onda entre 540 e 580 nm. Desta forma, a hemoglobina provoca uma elevação aparente na concentração dos analitos medidos nestas escalas de comprimento de onda, por elevar a absorbância das amostras. Além da hemoglobina, as hemácias contêm várias proteínas estruturais, enzimas, lipídeos e carboidratos, e muitos destes podem também interagir ou competir com os reagentes do ensaio ou elevar a quantidade do analito dosado no plasma ou soro. A interferência da hemólise pode causar elevação dos níveis de alanina aminotransferase, aspartato aminotransferase, creatina quinase, lactato desidrogenase, lipase, creatinina, ferro, magnésio, fósforo, potássio e ureia e diminuir os valores de albumina, fosfatase alcalina, gama-glutamil transferase, cloretos, glicose e sódio.

Lipemia

Na lipemia ocorre turbidez da amostra, visível ao olho nu, causada pelo acúmulo de partículas de lipoproteínas. Como as lipoproteínas variam em tamanhos, nem todas as classes contribuem igualmente para a turbidez. As partículas maiores, os quilomícrons, têm maior potencial de turbidez da amostra. A lipemia pode ser encontrada em animais aparentemente sadios. Ela altera a análise da amostra pois a turbidez interfere com a análise fotométrica e, em casos severos, fica impossível de fazer a determinação bioquímica de vários metabólitos. Em animais carnívoros, um pouco de lipemia é normal poucas horas depois de uma refeição, devido à absorção de gordura do intestino delgado, o que é uma boa razão para evitar o período pós-prandial para a coleta de amostras de sangue. Em geral, o jejum alimentar preconizado para cães e gatos varia entre 8 e 12 horas. Deve se ressaltar que um jejum prolongado para eliminar o problema da lipemia não é necessariamente ideal. É aconselhável separar o soro de amostras lipêmicas o mais rápido possível, uma vez que a lipemia pode promover fragilidade eritrocitária e as amostras lipêmicas hemolisam rapidamente.

Existem algumas estratégias para evitar o efeito da lipemia. A ultracentrifugação deve ser considerada como a abordagem preferida, porém, uma vez que este tipo de equipamento não está disponível na maioria dos laboratórios, a microcentrifugação em alta velocidade pode ser considerada como eficiente. Outras estratégias mais simples para evitar a interferência da lipemia incluem: (1) obter uma amostra de volume maior do que o normal, pois os triglicerídeos sobem para o topo do tubo durante o repouso da amostra, podendo obter o plasma da parte inferior para a análise da amostra; (2) quando o plasma for separado, deixar o tubo no refrigerador durante a noite e, no dia seguinte, retirar plasma da parte de baixo do tubo para análise. No entanto, deve se ter atenção quando se avalia a concentração de componentes hidrofóbicos nestas amostras, porque, como resultado da remoção de lipoproteínas, a sua concentração pode estar falsamente reduzida na fase aquosa.

As partículas de lipoproteínas na amostra podem absorver luz, de forma inversamente proporcional ao comprimento de onda no espectro visível (300 a 700 nm) sem picos de absorção específicos no meio. Assim, os métodos que usam comprimentos de onda mais baixos são mais afetados pela lipemia. Alanina aminotransferase, aspartato aminotransferase e glicose são fortemente afetados pela lipemia. Da mesma forma, a lipemia pode afetar a medição de sódio resultando em pseudohiponatremia, quando o sódio é medido pela técnica de íon seletivo indireto ou por fotometria de chama porque o sódio é hidrossolúvel e o incremento de lipídeos no soro irá deslocar o compartimento de água levando a uma diminuição na proporção de água. Esse efeito não é encontrado se o sódio sérico for determinado pelo método de íon seletivo direto.

Icterícia

A icterícia torna-se clinicamente visível quando a concentração de bilirrubina total encontra acima de 3 mg/dL. Hiperbilirrubinemia pode se desenvolver com predominância de bilirrubina livre ou conjugada. Excesso de bilirrubina livre é mais frequentemente causado por liberação aumentada de bilirrubina, ou por redução na sua captação ou na sua conjugação hepática (icterícia hemolítica). O excesso de bilirrubina conjugada é mais frequentemente causada por disfunção hepatocelular (icterícia hepática), ou por lentidão na saída da bile do fígado (colestase intra-hepática) ou obstrução do fluxo biliar extra-hepático (icterícia obstrutiva). Parte da interferência da bilirrubina é devida por suas propriedades espectrais: a bilirrubina tem maior absorbância no comprimento de onda entre 340 e 500 nm e uma hiperbilirrubinemia induz alta absorbância de fundo, proporcional à sua concentração, interferindo principalmente com determinações de espectrofotometria. Outra parte da interferência da bilirrubina obedece à sua capacidade em reagir quimicamente com alguns reagentes: como a bilirrubina interatua com reações que usam a peroxidase, o peróxido de hidrogênio gerado durante a reação química é utilizado pela bilirrubina, causando baixos resultados de creatinina, glicose, colesterol, triglicerídeos, fósforo, ácido úrico e proteínas totais. A bilirrubina também causa subestimação na medição de fósforo que usa o método UV com formação de fosfomolibdato.