Imagem ilustratativa (1635 – Guido Reni) Prof. Dr. Frei Jacir de Freitas Faria, OFM [1] Introdução Um bom ponto de partida para falar de Maria Madalena e o amor em sua e de sua vida é o texto de Jo 20,1-18. Trata-se da aparição de Jesus ressuscitado a Maria Madalena. No entanto, quero focar a minha reflexão em Maria Madalena, a santa, celebrada no dia 22 de julho, tendo como base essa passagem de João, o evangelho de Maria Madalena, Ct 3,1-6 e o seu papel na história do cristianismo como mulher que tanto amou, mas que foi menosprezada, por causa da misoginia (aversão à liderança da mulher) na vida da Igreja. Maria Madalena: significado do seu nome Quem era de fato, Maria Madalena? Ele foi ou não prostituta? Para responder a essa pergunta, analisemos, primeiramente, o seu nome. Maria é Míriam, o qual é um substantivo composto de duas raízes, uma egípcia (myr) e outra hebraica (yam). Myr significa a amada e yam, abreviação de Yavhé, Deus). Maria significa, então, a amada de Deus. Maria Madalena é amada de Deus, ou melhor de Jesus. O evangelho apócrifo de Felipe 59,9 confirma esse dado ao afirmar: “O Senhor amava Maria mais que todos os discípulos, e a beijava na boca frequentemente. Os outros discípulos viram-no amando Maria e lhe disseram: ‘Por que a amas mais que a todos nós?’ O Salvador respondeu dizendo: ‘Como é possível que eu não vos ame tanto quanto ela?” Outras raízes para Miriam provêm do hebraico mar que significa amargo e o ugarítico mrym que, ao contrário, significa agraciada, excelsa. Assim, Maria Madalena simboliza todo e qualquer ser humano que vive a eterna dualidade da vida: amargura e graça divina. Alegria e amargura são os dias do ser humano sobre a terra. Depois da tristeza vem alegria. Na tristeza, a alma chora. Na alegria, o ser humano sorri. Assim agiu a comunidade de Miriam de Mágdala no seguimento de Jesus. O sobrenome de Maria é Mágdala e é, por sua vez, um substantivo hebraico. Nele estão unidos a preposição me que em português significa da e o adjetivo gadol, grande. Torre em hebraico se diz migdal. Maria é, portanto, a Mulher da Torre, Aquela que guarda, a Guardiã dos ensinamentos de Cristo. A torre era no mundo antigo o lugar que mais sobressaía nas cidades. Maria Madalena também era, assim, aquela que sobressaia diante dos apóstolos. Não teria isso gerado ciúme entre os seguidores de Jesus? Claro que sim. Quem tem mais liderança em um grupo é o mais querido, mas também rejeitado por outros. É significativo o fato de o evangelho de Maria Madalena ter conservado a seguinte fala de Pedro em relação a Maria Madalena: – “Será que Ele (Jesus) verdadeiramente a escolheu e a preferiu a nós?” (MM 17,20). Maria Madalena: citação nos evangelhos Nos evangelhos canônicos: Mateus, Marcos, Lucas e João, Maria Madalena é a figura feminina mais importante. Ela é citada 17 vezes. Na literatura apócrifa, isto é, quase duas centenas de livros do Primeiro e Segundo Testamento que não foram considerados inspirados, e, por isso, chamados de apócrifos, um evangelho, na versão copta, datado do ano 150 E.C., foi atribuído a Maria Madalena. Vale a pena ler esse livro de inspiração gnóstica. Madalena é apresentada como líder dos apóstolos. Nele, ela repassa para os apóstolos os ensinamentos de Jesus ressuscitado. Outros apócrifos também falam de Madalena e, a partir deles, existe uma grande polêmica sobre a relação afetiva de Jesus com Maria Madalena. Seria ela ou não amada ou companheira de Jesus. Como vimos acima, o evangelho de Filipe é claro quanto a isso. Maria Madalena: um imaginário religioso que fez história Muitas lendas cercaram a tradição de Madalena ao longo da história do cristianismo. Ela teria se casado com João Evangelista, o casamento deles foi relatado nas bodas de Caná (Jo 2,1-11). Ali mesmo, durante a cerimônia, o noivo teria abandonado Madalena e seguido Jesus, e Madalena se tornado prostituta. Mais tarde, ela se encontra com Jesus, passando a segui-lo também. Outras lendas contam que ela era esposa de um soldado romano, mulher rica, herdeira de uma grande fortuna, dona de um castelo em Magdala, cidade que está sendo escavada atualmente. Ao encontrar-se com Jesus, em Mágdala, ela abandonou tudo e o seguiu. Na tradição da Igreja, Madalena recebeu muitos adjetivos: adúltera, santa e pecadora, penitente, bela e formosa. Para Santo Ambrósio, Madalena poderia ter sido pecadora. Já Pedro Crisólogo, arcebispo de Ravena nos inícios do séc. VII, diz que Madalena é o símbolo da Igreja “Santa e Pecadora”. A misoginia (aversão à mulher) de Crisólogo o levou a afirmar, quanto ao fato de mulheres, dentre elas, Madalena, receber por primeiro o anúncio da ressurreição, o seguinte: “Neste serviço, as mulheres precedem aos homens, elas que pelo sexo vêm depois dos homens, por ordem (hierárquica) depois dos discípulos, mas não por isso estão a significar que os apóstolos sejam mais lentos, pois elas levam ao sepulcro do Senhor não a imagem de mulheres, mas a figura da Igreja…” . No entanto, o que mais marcou foi o equívoco cometido pelo papa Gregório Magno, no ano 591, na catedral de Milão, interpretando Lc 7,36-50, que fala de uma prostituta que unge os pés de Jesus, ter afirmado que tal prostituta seria Madalena arrependida. Na sua homilia 33, ele diz: “Aquela a quem o evangelista Lucas chama de mulher pecadora é a Maria Madalena da qual são expulsos os sete demônios, e o que significam esses sete demônios senão todos os vícios?” Os milaneses pervertidos se converteram e a apóstola Madalena passou a ser aquilo que nunca foi, prostituta. A partir daí, o inconsciente coletivo guardou na memória a figura de Maria Madalena como mito de pecadora redimida. Nas sociedades patriarcais antigas, a mulher era identificada com o sexo e ocasião de pecado por excelência. Lc 8,2 cita nominalmente Maria Madalena e diz que dela “haviam saído sete demônios”. Ter demônios, segundo o pensamento judaico, era o mesmo que ser acometido de uma doença grave. No cristianismo, o demônio foi associado ao pecado. No caso da mulher, o pecado era sempre o sexual. Nesse sentido, a confusão parece lógica. A Igreja, em 1050, fez de Madalena padroeira de uma abadia de monjas beneditinas. A ideia seria mostrar que Maria Madalena se arrependeu e tornou-se eremita. Na França, ela é tida como padroeira dos perfumistas e cabeleireiros. Ela é também a padroeira das prostitutas. A ligação de Maria Madalena com a França, ocorreu porque no tratado hagiográfico Legenda Áurea, publicado em 1293, o frade dominicano Jacopo de Varazze (1230-1298) conta que 14 anos depois da morte de Jesus, Madalena e um grupo de cristãos acabaram expulsos da Judeia. Embarcados à força, foram atracar no porto de Marselha, no sul da França. Lá, Maria Madalena teria pregado e convertido muitas pessoas. Mais tarde, ela se retirou à gruta de Sainte Baume, onde terminaria se dedicando por 30 anos à penitência e à contemplação. O local é venerado ainda hoje por cristãos no Santuário de Maria Madalena. Em 1969, os predicados “penitente” e “pecadora” foram excluídos da seção dedicada a ela no Breviário Romano. Com isso, a Igreja reconheceu que Madalena não era prostituta Madalena é celebrada pela Igreja Católica no dia 22 de julho, com festa litúrgica, a pedido do Papa Francisco, que em 2016 a declarou apóstola dos apóstolos, recordando esse título que foi dado a ela pelo teólogo Hipólito de Roma (178- 236) e retomado por Santo Tomás de Aquino (1274). Para o Papa Francisco, esse seu pedido foi para demonstrar a relevância desta mulher que mostrou “um grande amor por Cristo”. O certo é a que, para além de todas essas tradições, Maria Madalena era mulher de grande proeminência no início do cristianismo. Ela foi feita prostituta para desmerecer o seu papel de mulher no seguimento de Jesus. Por ele, ela teve grande amor, não importa como terá sido. O que vale para nós, hoje, é tirar dela essa alcunha de prostituta, não desmerecendo as prostitutas, mas a negatividade que carrega essa simbologia na sociedade machista, misógina de ontem e de hoje. [2] Maria Madalena: a partir de Jo 20, 1-18 e sua releitura de Ct 3,1-6 Tendo feito esses esclarecimentos do papel de Maria Madalena na história, tomemos o texto de Jo 20,1-8. Ele é muito interpretado na perspectiva da ressurreição de Jesus. Em relação a Madalena, eu apontaria o seguinte:
Conclusão: Mulher que esteve à frente de seu tempo Madalena, a apóstola de Jesus e líder entre os homens apóstolos. Testemunha da ressurreição. Mulher que esteve à frente de seu tempo. Não foi prostituta, mas mulher de liderança na primeira hora do cristianismo, como tantas mulheres que agiram assim naquela época, mas que foram tolhidas de sua liderança em favor dos homens de Igreja. Urge resgatar o seu papel de mulher na construção do cristianismo de inspiração para mulheres e homens de nosso tempo que acreditam na igualdade de gênero na vida Igreja e da sociedade. Santa Maria Madalena, rogai por nós! [1] Doutor em Teologia Bíblica pela Faje (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Reitor e Professor de Exegese Bíblica no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA-BH). É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de dez livros e coautor de doze. Último livro: O Medo do Inferno e arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019). [2] Mereskovskij. Morte e ressurreição, citado por Lílian Sebastiani, Maria Madalena: de personagem do evangelho a mito de pecadora redimida, Vozes: Petrópolis, 1995, p. 211. [3] Para um estudo do evangelho de Maria Madalena, bem como a relação entre Jo 20,1-18 e Ct 3,1-6, veja o nosso livro: As origens apócrifas do cristianismo: comentário aos evangelhos de Maria Madalena e Tomé, 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2004. [4] Para um estudo completo da relação de gênero entre Pedro e Madalena, sua história nos apócrifos e na Bíblia, veja o nosso livro: O outro Pedro e a outra Madalena segundo os apócrifos: uma leitura de gênero. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2010. |