A Cyro Novais Show
Há pouco leite no país, Então o moço que é leiteiro Na mão a garrafa branca E como a porta dos fundos Meu leiteiro tão sutil Mas este acordou em pânico Quem quiser que chame médico, Da garrafa estilhaçada Carlos Drummond de Andrade (31 de outubro de 1902 — 17 de agosto de 1987) é um dos maiores autores da literatura brasileira, sendo também considerado o maior poeta nacional do século XX. Integrada na segunda fase do modernismo brasileiro, sua produção literária reflete algumas características do seu tempo: uso da linguagem corrente, temas do cotidiano, reflexões políticas e sociais. Através de sua poesia, Drummond foi eternizado, conquistando a atenção e a admiração dos leitores contemporâneos. Seus poemas se centram em questões que se mantêm atuais: a rotina das grandes cidades, a solidão, a memória, a vida em sociedade, as relações humanas. Entre suas composições mais famosas, se destacam também aquelas que expressam reflexões existenciais profundas, onde o sujeito expõe e questiona seu modo de viver, seu passado e seu propósito. Confira alguns dos poemas mais famosos de Carlos Drummond de Andrade, analisados e comentados. No Meio do Caminho
Este é, provavelmente, o poema mais célebre de Drummond, pelo seu caráter singular e temática fora do comum. Publicado em 1928, na Revista da Antropofagia, "No Meio do Caminho" expressa o espírito modernista que pretende aproximar a poesia do cotidiano. Referindo os obstáculos que surgem na vida do sujeito, simbolizados por uma pedra que se cruza no seu caminho, a composição sofreu duras críticas pela sua repetição e redundância. Contudo, o poema entrou para a história da literatura brasileira, mostrando que a poesia não tem de ficar limitada aos formatos tradicionais e pode versar sobre qualquer tema, até mesmo uma pedra. Consulte também a análise completa do poema "No meio do caminho tinha uma pedra". Poema de Sete Faces
Um dos aspectos que captam imediatamente a atenção do leitor neste poema é o facto do sujeito referir a si mesmo como "Carlos", primeiro nome de Drummond. Assim, existe uma identificação entre o autor e o sujeito da composição, o que lhe confere uma dimensão autobiográfica. Desde o primeiro verso, ele se apresenta como alguém marcado por "um anjo torto", predestinado a não se enquadrar, a ser diferente, estranho. Nas sete estrofes são demonstradas sete facetas diferentes do sujeito, demonstrando a multiplicidade e até contradição dos seus sentimentos e estados de espírito. É evidente o seu sentimento de inadequação perante o resto da sociedade e a solidão que o assombra, por trás de uma aparência de força e resiliência (tem "poucos, raros amigos"). Na terceira estrofe, alude à multidão, metaforizada nas "pernas" que circulam pela cidade, evidenciando o seu isolamento e o desespero que o invade. Citando uma passagem da Bíblia, compara o seu sofrimento com a paixão de Jesus que, durante a sua provação, pergunta ao Pai por quê Ele o abandonou. Assume, assim, o desamparo que sente perante Deus e a sua fragilidade enquanto homem. Nem mesmo a poesia parece ser uma resposta para essa falta de sentido: "seria uma rima, não seria uma solução". Durante a noite, enquanto bebe e olha a lua, o momento da escrita é aquele onde se sente mais vulnerável e emocionado, fazendo versos como uma forma de desabafar. Leia também a análise completa do Poema de Sete Faces. Quadrilha
Com o título "Quadrilha", esta composição parece fazer referência à dança europeia com o mesmo nome que virou tradição nas festas juninas brasileiras. Vestidos com disfarces, os casais dançam em grupo, conduzidos por um narrador que propõe várias brincadeiras. Usando essa metáfora, o poeta apresenta o amor como uma dança onde os pares se trocam, onde os desejos se desencontram. Nos três primeiros versos, todas as pessoas mencionadas sofrem de amores não correspondidos, menos Lili "que não amava ninguém". Nos quatro versos finais, descobrimos que aqueles romances falharam. Todas as pessoas mencionadas acabaram isoladas ou morreram, apenas Lili casou. O absurdo da situação parece ser uma sátira sobre a dificuldade de encontrar um amor verdadeiro e correspondido. Como se fosse um jogo de sorte, apenas um dos elementos é contemplado com o final feliz. Confira também a análise completa do poema Quadrilha. José
Um dos maiores e mais conhecidos poemas de Drummond, "José" exprime a solidão do indivíduo na cidade grande, a sua falta de esperança e a sensação de estar perdido na vida. Na composição, o sujeito lírico se interroga repetidamente acerca do rumo que deve tomar, procurando um sentido possível. José, um nome muito comum na língua portuguesa, pode ser entendido como um sujeito coletivo, simbolizando um povo. Assim, parecemos estar perante a realidade de muitos brasileiros que superam inúmeras privações e batalham, dia após dia, por um futuro melhor. Na reflexão sobre o seu percurso é evidente o tom disfórico, como se o tempo tivesse deteriorado tudo em seu redor, o que fica nítido em formas verbais como "acabou", "fugiu", "mofou". Listando possíveis soluções ou saídas para a situação atual, percebe que nenhuma delas funcionaria. Nem mesmo o passado ou a morte surgem como refúgios. Contudo, o sujeito assume a sua própria força e resiliência ("Você é duro, José!"). Sozinho, sem a ajuda de Deus ou o apoio dos homens, continua vivo e segue em frente, mesmo sem saber para onde. Consulte também a análise completa do poema "José" de Carlos Drummond de Andrade. Amar
Apresentando o ser humano como um ser social, que existe em comunicação com o outro, nesta composição o sujeito defende que o seu destino é amar, estabelecer relações, criar laços. Descreve as várias dimensões do amor como perecíveis, cíclicas e mutáveis ("amar, desamar, amar"), transmitindo também as ideias de esperança e renovação. Sugere que mesmo perante a morte do sentimento, é preciso acreditar no seu renascimento e não desistir. Apontado como "ser amoroso", sempre "sozinho" no mundo, o sujeito defende que a salvação, o único propósito do ser humano está na relação com o outro. Para isso, tem que aprender a amar "o que o mar traz" e "sepulta", ou seja, o que nasce e o que morre. Vais mais além: é preciso amar a natureza, a realidade e os objetos, ter admiração e respeito por tudo o que existe, já que esse é "nosso destino". Para cumpri-lo é necessário que o indivíduo seja teimoso, "paciente". Deve amar até a falta de amor, por conhecer sua "sede infinita", a capacidade e vontade de amar mais e mais. Os Ombros Suportam o Mundo
Publicado em 1940, na antologia Sentimento do Mundo, este poema foi escrito no final da década de 1930, durante a Segunda Guerra Mundial. É notória a temática social presente, retratando um mundo injusto e repleto de sofrimento. O sujeito descreve a dureza da sua vida sem amor, religião, amigos ou sequer emoções ("o coração está seco"). Em tempos tão cruéis, repletos de violência e morte, ele tem que se tornar praticamente insensível para suportar tanto sofrimento. Deste modo, sua preocupação é apenas trabalhar e sobreviver, o que resulta numa solidão inevitável. Apesar do tom pessimista de toda a composição, surge um laivo de esperança no futuro, simbolizada pela "mão de uma criança". Aproximando as imagens da velhice e do nascimento, faz referência ao ciclo da vida e à sua renovação. Nos versos finais, como se transmitisse uma lição ou conclusão, afirma que "a vida é uma ordem" e deve ser vivida de forma simples, focada no momento presente. Consulte também a análise completa do poema "Os ombros suportam o mundo" . Destruição
Partindo do próprio título, neste poema é inegável a visão negativa do sujeito acerca dos relacionamentos amorosos. Descrevendo o amor como "destruição", reflete sobre o modo como os casais se amam "cruelmente", como se lutassem. Sem enxergar a individualidade do outro, deixam de se ver, procurando uma projeção de si mesmos no parceiro. É o próprio amor que parece "estragar" os amantes, corrompê-los, levá-los a agir desta forma. Alienados, não percebem que a união os destrói e afasta do resto do mundo. Por causa dessa paixão se apagam e se anulam mutuamente. Destruídos, guardam a memória do amor como uma "cobra" que os persegue e morde. Mesmo com a passagem do tempo, essa memória ainda machuca ("quedam mordidos") e a lembrança do que viveram persiste. Congresso Internacional do Medo
"Congresso Internacional do Medo" assume uma temática social e política que espelha o contexto histórico da sua criação. Depois da Segunda Guerra Mundial, uma das questões que mais assombrou poetas e escritores foi a insuficiência do discurso perante a morte e a barbárie. Esta composição parece refletir o clima de terror e petrificação que atravessava todo o mundo. Esse sentimento universal se sobrepõe totalmente ao amor e até ao ódio, criando a desunião, o isolamento, a frieza "que esteriliza os abraços". O sujeito pretende expressar que a humanidade ainda não superou todo o sofrimento a que assistiu, sendo assombrada e comandada apenas pelo medo e esquecendo todas as outras emoções. A repetição ao longo de todo o poema parece sublinhar que essa insegurança constante, essa obsessão, levará os indivíduos à morte e se perpetuará depois deles, em "flores amarelas e medrosas". Deste modo, Drummond reflete acerca da importância de nos curarmos, enquanto humanidade, e reaprendermos a viver. Confira também a análise completa do poema Congresso Internacional do Medo. Receita de Ano Novo
Nesta composição, o sujeito lírico parece falar diretamente com o seu leitor ("você"). Procurando aconselhá-lo, partilhar sua sabedoria, formula neste seus votos de transformação para o novo ano. Começa recomendando que este seja realmente um ano diferente dos anteriores (tempo "mal vivido", "sem sentido"). Para isso, é necessário buscar uma mudança real, que vá além da aparência, que gere um futuro novo. Prossegue, afirmando que a transformação deve estar presente nas pequenas coisas, tendo origem no interior de cada um, nas suas atitudes. Para isso, é preciso cuidar de si mesmo, relaxar, se compreender e evoluir, sem precisar de luxo, distrações ou companhia. Na segunda estrofe, consola seu leitor, determinando que não vale a pena se arrepender de tudo o que fez, nem acreditar que um novo ano será a solução mágica e instantânea para todos os problemas. Pelo contrário, tem que merecer o ano que chega, tomar a decisão "consciente" de mudar a si mesmo e, com muito esforço, mudar a sua realidade. Sentimento do mundo
Publicado em 1940, na ressaca da Primeira Guerra, o poema reflete um mundo ainda abalado perante o terror do fascismo. O sujeito frágil, pequeno, humano, possui "apenas duas mãos" para carregar o "sentimento do mundo", algo de enorme, avassalador. Em seu redor, tudo o confronta com a vulnerabilidade da vida e a inevitabilidade da morte. Rodeado de guerra e morte, se sente alienado, distante da realidade. Fazendo menção à luta política, através do uso da expressão "camaradas", sublinha que foi surpreendido por uma guerra maior, a batalha pela sobrevivência de cada um. Leia também a análise completa do poema "Sentimento do Mundo". As Sem-Razões do Amor
O jogo de palavras presente no título do poema (a assonância entre "sem" e "cem") está diretamente relacionado com o significado da composição. Por muitas razões que tenhamos para amar alguém, elas serão sempre insuficientes para justificar esse amor. O sentimento não é racional ou passível de explicações, ele simplesmente acontece, mesmo se o outro não merecer. O sujeito acredita que o amor não pede nada em troca, não precisa ser retribuído ("com amor não se paga"), nem pode ser submetido a um conjunto de regras ou instruções, porque existe e vale em si mesmo. Comparando o sentimento amoroso à morte, declara que consegue superá-la ("da morte vencedor"), embora muitas vezes desapareça de repente. Parece ser esse caráter contraditório e volátil do amor que contém também o seu encanto e mistério. Confira a análise detalhada do poema As Sem-Razões do Amor. Para Sempre
Abalado e triste, o sujeito questiona a vontade divina, perguntando por que Deus leva as mães e deixa seus filhos para trás. Fala na figura maternal como algo maior que a própria vida ("Mãe não tem limite"), uma eterna "luz que não apaga". A repetição do adjetivo "puro" sublinha o caráter único e grandioso da relação entre mães e filhos. Por isso, o eu lírico não aceita a morte de sua mãe, já que "morrer acontece com o que é breve". Pelo contrário, ela é imortal, está eternizada na sua memória e continua presente nos seus dias. Desse modo, a vontade de Deus é um "mistério profundo" que o sujeito não consegue decifrar. Se opondo ao funcionamento do mundo, afirma que se fosse o "Rei" não permitiria mais que as mães morressem. Este desejo quase infantil de inverter a ordem natural das coisas vem lembrar que, mesmo depois de adultos, os filhos continuam necessitando do colo materno. O filho "velho embora, / será pequenino" sempre nos braços de sua mãe. O poema marca, assim, uma dupla solidão e orfandade do sujeito. Por um lado, perde a progenitora; por outro, começa a questionar sua relação com Deus, incapaz de compreender e aceitar o sofrimento presente. O Amor Bate na Porta
O poema fala sobre o poder transformador do sentimento amoroso e as emoções contraditórias que gera no sujeito lírico. A paixão súbita altera os comportamentos de homens e mulheres. Basta uma "cantiga de amor sem eira / nem beira" para virar "o mundo de cabeça para baixo", subvertendo as regras sociais. Aqui, o amor surge personificado, uma figura andrógina que invade a casa e o coração do eu lírico, afetando até a sua saúde ("cardíaco e melancólico"). A antítese entre as "uvas meio verdes" e os "desejos já maduros" parece ser uma alusão às expectativas românticas que frequentemente causam frustração nos amantes. Mesmo quando "verde" e ácido, o amor pode adoçar a boca daquele que o vive. Selvagem e esperto como um "bicho instruído", o amor é corajoso, temerário, segue seu caminho correndo todos os riscos. Muitas vezes, esses riscos geram sofrimento e perda, simbolizada aqui com a figura caindo da árvore ("Pronto, o amor se estrepou"). Usando um tom humorístico e quase infantil, o sujeito parece relativizar esse sofrimento, encarando-o como parte das aventuras e desventuras cotidianas. A imagem do amor no chão, se esvaindo em sangue, simboliza o coração partido do eu lírico. Trata-se de um final trágico que deixa uma ferida, que não se sabe quando passará ("às vezes não sara nunca / às vezes sara amanhã"). Mesmo machucado, "irritado, desapontado" depois da desilusão, continua vendo novos amores nascendo, mantendo uma inexplicável esperança. Mãos Dadas
Como uma espécie de arte poética, esta composição expressa as intenções e os princípios do sujeito enquanto escritor. Se demarcando de movimentos e tendências literárias anteriores, declara que não escreverá sobre um "mundo caduco". Também afirma que não está interessado no "mundo futuro". Pelo contrário, tudo o que merece sua atenção é o momento presente e aqueles que o rodeiam. Se opondo aos modelos antigos, aos temas comuns e às formas tradicionais, traça suas próprias diretrizes. Seu objetivo é andar "de mãos dadas" com o tempo presente, retratar sua realidade, escrever livremente sobre aquilo que vê e pensa.. Balada do Amor através das Idades
Logo nos dois versos iniciais do poema percebemos que o sujeito e sua amada são almas gêmeas, destinadas a encontros e desencontros ao longo dos séculos. Apesar do amor que os une, vivem paixões proibidas em todas as encarnações, condenados a nascer como inimigos naturais: grego e troiana, romano e cristã. Em todas as idades, terminam de forma trágica, com assassinatos, guilhotinas e até suicídio, como Romeu e Julieta. Nas primeiras três estrofes do poema, o sujeito narra todos os fracassos e provações que o casal teve que enfrentar. Por oposição, na última estrofe fala da vida presente, exaltando suas qualidades e se descrevendo como um bom partido. Face a tantas peripécias, o único obstáculo que enfrentam agora (o pai que não aprova o romance) não parece tão grave assim. Com humor, o eu poético parece convencer sua namorada que desta vez merecem um final feliz, digno de cinema. O poema deixa uma mensagem de esperança: devemos sempre lutar pelo amor, mesmo quando ele parece impossível. Ausência
A produção poética de Carlos Drummond de Andrade tem como um dos seus focos principais a reflexão sobre a passagem do tempo, a memória e a saudade. Nesta composição, o sujeito lírico começa por estabelecer a diferença entre "ausência" e "falta". Com a experiência de vida, percebeu que saudade não é sinônimo de falta mas o seu oposto: uma presença constante. Assim, a ausência é algo que o acompanha a todo o momento, que é assimilado na sua memória e passa a fazer parte dele. Tudo aquilo que perdemos e do qual sentimos saudade está eternizado em nós e, por isso, permanece conosco. Poema da necessidade
Este é um poema com forte crítica social que aponta os vários modos como a sociedade condiciona a vida dos indivíduos, ditando aquilo que devemos e "precisamos" fazer. De modo irônico, Drummond reproduz todas essas expectativas e regras de conduta, mostrando até que ponto a sociedade regula as nossas relações pessoais. Refere pressões como a necessidade de casar e constituir família, o ambiente de competição e hostilidade. A segunda estrofe, mencionando patriotismo e fé em Deus, parece ecoar os discursos ditatoriais. Existe também a menção do sistema capitalista, a necessidade de "pagar" e "consumir". Citando vários exemplos, o sujeito enumera as formas como a sociedade nos manipula, isola e enfraquece através do medo. A Máquina do Mundo
"A Máquina do Mundo" é, sem dúvida, uma das composições mais majestosas de Carlos Drummond de Andrade, eleito o melhor poema brasileiro de todos tempos pela Folha de São Paulo. O tema da máquina do mundo (as engrenagens que condicionam o modo como o universo funciona) é um tema bastante explorado pela ciência e a literatura medieval e renascentista. Drummond faz referência ao canto X dos Lusíadas, passagem onde Tétis mostra a Vasco da Gama os mistérios do mundo e a força do destino. O episódio simboliza a grandeza da construção divina face à fragilidade humana. No texto de Camões, é evidente o entusiasmo do homem face ao conhecimento que lhe é concedido; o mesmo não acontece no poema do autor brasileiro. A ação é situada em Minas, terra natal do autor, o que o aproxima do sujeito lírico. Ele está contemplando a natureza quando é atingido por uma espécie de epifania. Nas primeiras três estrofes, é descrito o seu estado de espírito: um "ser desenganado", cansado e sem esperanças. A compreensão súbita do destino o assusta e desvia. A perfeição divina apenas contrasta com a sua decadência humana, opondo o sujeito à máquina e evidenciando a sua inferioridade. Desta forma, rejeita a revelação, recusa compreender o sentido da própria existência por cansaço, falta de curiosidade e interesse. Permanece, deste modo, no mundo caótico e desordenado que conhece. Confira também a análise do poema A Máquina do Mundo. Ainda que mal
Neste poema, o sujeito lírico manifesta todas as contradições e imperfeições que atravessam os relacionamentos amorosos. Apesar de todas as dificuldades de comunicação e compreensão, da falta de verdadeiro entendimento ou intimidade entre o casal, o amor prevalece. Embora por vezes duvide da própria paixão ("ainda que mal te ame"), mesmo estando ciente da precariedade do sentimento, permanece "queimando" em seus braços. O amor é, simultaneamente, a salvação e a ruína do sujeito. Canção Final
Com "Canção Final", o poeta exprime de forma primorosa as contradições que vivemos no término de um relacionamento. O primeiro verso anuncia o final de um romance e a intensidade da sua paixão pela mulher perdida. Logo depois, ele vai se contradizer ("não foi tanto assim"), relativizando a força do sentimento. O tom dos versos seguintes é de indiferença e desdém. O eu lírico confessa que nem os próprios deuses conseguem saber com exatidão aquilo que ele sentiu. A memória é apontada como uma "régua de exagerar as distâncias", que aumenta e exagera tudo. Além da incerteza, o eu poético desabafa sobre o vazio que o consome: não tem sequer a tristeza, já não tem nem a rotina de "acasalar e sofrer". Sem esperança, não tem nem uma "miragem", uma ilusão que o faça continuar. O Deus de Cada Homem
O poema é uma reflexão acerca da condição humana e da sua difícil conexão com a força divina. Na primeira estrofe, o sujeito aponta que a relação de cada um com Deus é particular, só sua. Quando dizemos "meu Deus", não estamos perante uma divindade única mas múltiplos "deuses pessoais". Cada um imagina seu próprio criador, a fé se processa de formas diferentes nos indivíduos. Na estrofe seguinte, o sujeito sublinha que o uso do pronome possessivo "meu" gera proximidade. Focando na"cumplicidade" entre o humano e o divino, evoca a sensação de companhia e amparo. A antítese na terceira estrofe ("Mais fraco, sou mais forte") reflete a relação paradoxal deste sujeito com Deus. Por um lado, assumindo que necessita da proteção divina, reconhece a sua fragilidade. Por outro, se fortalece através da fé, superando a "desirmandade", a solidão e a indiferença. Este laivo de luz se dilui nos versos seguintes, quando o eu lírico define sua fé como uma forna "gritar" sua "orfandade", desabafar seu desespero. Ele se sente abandonado por Deus, entregue à própria sorte. Acreditando na figura do Divino Criador, se sente preso por ele, submetido aos seus decretos ("O rei que me ofereço / rouba-me a liberdade") e sem poder para alterar a própria vida. A composição exprime, deste modo, a "ansiedade" do sujeito e seu conflito interior entre a fé e a descrença. Através da poesia manifesta, simultaneamente, a vontade de acreditar em Deus e o medo de que Ele não exista. Memória
Em "Memória", o sujeito poético confessa que está confuso e magoado por amar aquilo que já perdeu. Por vezes, a superação simplesmente não acontece e esse processo não pode ser forçado. A composição fala daqueles momentos em que continuamos amando mesmo quando não devemos fazê-lo. Movido pelo "sem sentido / apelo do Não", o sujeito insiste quando é rejeitado. Preso ao passado, deixa de prestar atenção ao tempo presente, aquilo que ainda pode tocar e viver. Contrariamente à efemeridade do agora, o passado, aquilo que já terminou, é eterno quando se instala na memória. Não se mate
"Carlos" é o destinatário da mensagem deste poema. Mais uma vez, parece existir uma aproximação entre o autor e o sujeito que reflete e fala consigo mesmo, procurando se aconselhar e apaziguar. De coração partido, lembra que o amor, como a própria vida, é inconstante, passageiro, repleto de incertezas ("hoje beija, amanhã não beija"). Afirma, então, que não tem como fugir disso, nem através do suicídio. O que resta é esperar "as bodas", o amor correspondido, estável. Para seguir em frente, precisa acreditar no final feliz, ainda que não chegue nunca. Caminha firme, "vertical", persiste mesmo derrotado. Melancólico, durante a noite, procura convencer a si mesmo que deve avançar com a sua vida, apesar da vontade de morrer, de se matar. Assume que o amor "é sempre triste" mas sabe que deve manter segredo, não pode partilhar o sofrimento com ninguém. Apesar de toda a desilusão, o poema transmite uma réstia de esperança, que o sujeito lírico procura cultivar para continuar vivendo. Embora seja a sua maior angústia e pareça a sua maior perdição, o amor surge também como o último reduto, no qual precisamos ter fé. O tempo passa? Não passa
Neste poema, é evidente o contraste entre o tempo exterior, real, e o tempo interior do sujeito, a sua percepção. Embora envelheça e sinta as marcas da idade superficialmente, o eu lírico não sente a passagem do tempo na sua memória ou nos seus sentimentos, que permanecem iguais. Esta diferença de ritmos se deve ao amor que o acompanha. A rotina parece unir mais e mais os amantes, que se transformam em um só verso, um só ser. Anuncia, movido pela paixão, que a vida não deve ser poupada nem desperdiçada: o nosso tempo deve ser dedicado ao amor, propósito maior do ser humano. Juntos, os amantes não precisam se preocupar com prazos, datas ou "calendários". Vivem em um mundo paralelo, afastado dos outros e entregues um ao outro, porque sabem que "além do amor / não há nada". Subvertendo regras universais, misturam passado, presente e futuro, como se pudessem renascer a cada segundo por estarem unidos. Deste modo, a composição ilustra o poder mágico e transformador do sentimento amoroso. Algo que faz os amantes se sentirem e querem ser imortais: "só quem ama/ escutou o apelo da eternidade". Consolo na praia
Assim como em outras composições do autor, estamos perante um desabafo do sujeito que parece tentar apaziguar a própria tristeza. O destinatário da mensagem de consolo, tratado na segunda pessoa, pode também ser o próprio leitor. Refletindo sobre a sua jornada e a passagem do tempo, constata que muita coisa se perdeu ("a infância", a "mocidade"), mas a vida continua. Conheceu várias paixões, sofreu perdas e desgostos mas soube conservar a capacidade de amar, apesar de todos os relacionamentos falhados. Fazendo um balanço, enumera o que não realizou e o que não tem, recordando dores e ofensas passadas e revelando que ainda são feridas abertas. Quase no final da vida, olha para trás, reconhecendo aquilo em que falhou. Perante a injustiça social, o "mundo errado", sabe que tentou se rebelar mas seu protesto foi "tímido", não fez diferença. Mesmo assim, parece consciente de que fez a sua parte e de que "outros virão". Com a esperança depositada nas gerações futuras, analisando profundamente sua existência e cansaço, conclui que deveria se jogar no mar, terminar com tudo. Como se murmurasse uma canção de ninar, consola seu espírito e espera a morte como se fosse o sono. Cidadezinha qualquer
Parte da coletânea Alguma Poesia (1930), a composição usa um vocabulário simples e rimas singelas, quase infantis. Estamos perante um retrato do cotidiano de uma pequena cidade rural, com versos que descrevem o dia-a-dia do lugar. O sujeito poético vai enumerando as casas, as árvores e os animais que estão no seu campo de visão, mencionando também as mulheres e os homens que pertencem àquele cenário. Há um elemento que se repete e chama a nossa atenção: a repetição do vocábulo "devagar". Isto transmite ao leitor a impressão de que tudo ali se movimenta num ritmo lento, sem surpresas ou grandes emoções. É como se tudo estivesse praticamente parado, congelado no tempo, e os novos dias apenas reproduzissem aquilo que já existia. Essa sensação toma conta do eu-lírico: o verso final é como um desabafo, uma exclamação que resume aquilo que ele está sentindo. A rotina naquela cidadezinha é identificada como uma "vida besta", por ser simples ou até mesmo vazia. Fica, deste modo, evidente que o sujeito se sente sozinho e desenquadrado ali, assumindo a postura de um observador. Tempo de Ipê
Publicado em Amar se aprende amando (1985), o último livro de poemas que o autor lançou em vida, o poema pode ser interpretado como um manual de sobrevivência para tempos difíceis. Logo no verso inicial, o sujeito poético manifesta a sua posição, deixando claro que não se interessa por "IPM", uma sigla que se traduziria por "Inquérito Policial Militar". Percebemos que estamos perante uma composição de temática social e política, que usa seus versos para denunciar o cotidiano de um país em sofrimento e ditadura. Ele vai mais longe afirmando que prefere "maravilha" do que "militar". O que vale o seu tempo e a sua atenção é a natureza, metaforizada pelos ipês, um tipo de árvore que existe em todo o Brasil. Um símbolo de resiliência, ela perde todas as suas folhas e depois se enche de flores coloridas. Este eu-lírico associa o florescimento dos ipês à alegria, à força e à esperança. Na sua visão, eles teriam dado flores antes do tempo para alegrar os cidadãos do Rio de Janeiro. O encanto dos ipês contrasta com a realidade distópica do local: "desamor, tumulto, inflação, mortes". O mundo natural não parece afetado por nada disso. Assim, o sujeito apenas quer se concentrar naquilo que é belo, declarando que está "dissolvido na natureza". Por tudo isso, remata ao declarar que fugindo do contato humano e das durezas da vida. Sentimental
Com um tom de doçura e inocência, a composição apresenta um sujeito que age como um menino apaixonado. Escrevendo o nome da amada com as letrinhas da sopa, fica frustrado quando percebe que um elemento está em falta. Alguém, que está presente na mesa, repara na sua atitude, que parece absurda ou incompreensível. Resolve chamar a atenção dele e repreende-lo: pergunta se ele está "sonhando", como se isso fosse uma coisa ruim. Aí, o eu-lírico confirma o seu caráter sonhador e relembra o quanto é mal encarado numa sociedade que encara o sonho como algo inútil e, por isso, perigoso. O último verso, que anuncia uma proibição, pode ser interpretado como um comentário acerca da repressão que sufocava o povo brasileiro. O inglês da mina
Publicado durante a década de 70, o poema faz parte de um "mergulho literário" de Drummond nas memórias da sua infância, bem como na própria história de Minas Gerais. Tendo como cenário a região de Itabira, onde o autor nasceu e cresceu, a composição fala do período em que as minas locais foram vendidas aos britânicos. A partir daí, o local passou a ser habitado pelos ingleses que começaram a trabalhar por lá. Embora frequentassem a cidade e tivessem algum poder aquisitivo, eles não se integravam e continuavam sendo encarados como estranhos. Retratando este processo de "invasão da terra", estes versos também podem ser vistos como uma referência ao passado colonial. Papel
A composição breve é como um balanço do sujeito que chega no final da vida. Resume a sua trajetória e até sua existência ao "papel", algo que pode ser facilmente associado à leitura, escrita e criação. Contudo, os versos estão sujeitos a várias interpretações. Por exemplo, podemos assumir que a fragilidade do papel é uma metáfora para a efemeridade e vulnerabilidade da vida. Finalmente, também podemos considerar que tudo não passou de "papel" porque suas ideias e opiniões não trouxeram resultados ou transformações na prática, ficando apenas registradas em seus textos. Conheça também
Compartilhar Carolina Marcello Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes e licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Como encarar a morte Carlos Drummond de Andrade?Mais impressionante ainda é "Como Encarar a Morte", no qual o poeta "visualiza" o fim da existência de cinco ângulos: de longe; a meia distância; de lado; de dentro; e (terrível!) sem vista.
Quando alguém morre poema?Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar. Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.
Qual é a obra mais famosa de Carlos Drummond de Andrade?Entre suas principais obras poéticas estão os livros “Alguma Poesia” (1930), “Sentimento do Mundo” (1940), “A Rosa do Povo” (1945), “Claro Enigma” (1951), “Poemas” (1959), “Lição de Coisas” (1962), “Boitempo” (1968), “Corpo” (1984), além do póstumo “Farewell” (1996).
Como já dizia Carlos Drummond de Andrade?Frases de Carlos Drummond de Andrade. Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade. ... . O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar. ... . A minha vontade é forte, porém minha disposição de obedecer-lhe é fraca. ... . Os homens distinguem-se pelo que fazem; as mulheres, pelo que levam os homens a fazer.. |