6ª sinfonia de beethoven

A primeira década do século XIX é testemunha da fase mais produtiva de Beethoven. Nesses anos, pontilhados de insucessos amorosos, em que a surdez que o acomete avança lenta e implacavelmente, Beethoven explode como gênio inteiramente original, adotando em definitivo (ao menos ideologicamente) uma atitude romântica face à vida e à arte. Obras determinantes da estética beethoveniana, constituintes de um marco definitivo na história da música, são geradas e estreadas nesse alvorecer dos oitocentos: as duas sonatas op. 27 (ambas denominadas, paradoxalmente, “quasi una fantasia”), o terceiro e o quarto concertos para piano e orquestra, a quinta e a sexta sinfonias, a Apassionata, a Sonata “a Kreutzer”, dentre muitas outras.

Show

De fato, em 1808, Beethoven oferece a um assombrado público vienense um concerto extraordinário, que teve lugar no teatro An der Wien. O programa compreendia nada menos do que as primeiras audições da quinta e sexta sinfonias, do quarto concerto para piano e orquestra (tendo o próprio compositor como solista) e da Fantasia para Piano, Coro e Orquestra. O público se mostra relativamente apático, certamente por não reconhecer o gênero de prazer a que estava habituado. Essa reação do público demonstra claramente a adoção de uma nova postura estética em Beethoven, que o desvincula do continuísmo clássico e cria laços estreitos com a ideologia romântica, especialmente no que concerne ao direito quase revolucionário de uma expressão individual: a expressão de um gênio criador, consciente de sua missão diante de um status quo que precisa ser modificado.

A Sexta Sinfonia foi composta entre os anos de 1806 e 1808, mas já se encontram esboços dessa obra em blocos de notas que datam de 1802. O próprio título da sinfonia deu a Beethoven certo trabalho: pensou chamá-la inicialmente “Sinfonia Característica, ou Lembranças da Vida Campestre”. Imaginou depois chamá-la Sinfonia Pastorella, mas optou finalmente pelo nome que conhecemos hoje: Sinfonia Pastoral. Experiência única em Beethoven, o “conceito” dessa sinfonia funda-se no movimento de se tentar utilizar a música dita “pura” para se tentar expressar realidades e conteúdos extramusicais.

Não se deve, porém, associar esse conceito ao de música programática. A rigor, não há um texto ou um programa literário que explicite o desenrolar musical. A música da Pastoral não narra qualquer “história”. O próprio Beethoven afirma que “a descrição é inútil”, e faz estampar à testa da partitura a indicação de que a música, aí, era “mais expressão de sentimentos do que pintura”. Tal afirmação vincula Beethoven declarada e conscientemente à ideologia romântica e faz reconhecer que a arte musical só pode referir-se ao mundo enquanto existência sonora. As “impressões campestres” são, na Pastoral, impressões do próprio compositor, que as transfigura e elabora em realidades musicais. Não há, na Pastoral, descrição. Há, isso sim, evocações de impressões pessoais processadas e elaboradas conscientemente, e finalmente sublimadas em linguagem musical.

Moacyr Laterza Filho


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(1881)

Instrumentação: 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos e cordas.

A Sinfonia nº 6 foi concluída no início de setembro de 1881, no deslumbrante mosteiro barroco de São Floriano. Nesse mesmo convento, situado em uma paisagem bucólica e repleto de maravilhosas obras de arte, Anton Bruckner, aos treze anos, fora admitido como aluno, na condição de órfão pobre e bom cantor para o coro. Bruckner recordaria com carinho esses anos felizes – durante toda a vida permaneceu devotado e submisso aos ensinamentos religiosos dos monges que o educaram e nunca deixou de visitar com frequência o mosteiro, onde gostava de tocar órgão e buscava serenidade espiritual para compor.

O principal impulso de sua música sempre foi a religiosidade: “um místico gótico extraviado no século XIX” (nas palavras de Wilhelm Furtwängler). Bruckner criou, com idêntico espírito sacro, missas e sinfonias. Sua maneira de compor em blocos sonoros de colorações diferenciadas se inspira, claramente, na escrita para o órgão, instrumento religioso por excelência. Escreveu música para a glória de Deus, com a dedicação de um artífice e a certeza bíblica de que o trabalho enobrece o homem. Sob esse aspecto, a arte de Bruckner lembra a de Bach, a de César Franck; e antecede a de Messiaen.

Em contraste com sua prodigiosa inteligência musical, o compositor aparentava inaptidão quase patológica para as coisas práticas da vida. Ingênuo, protagonizou episódios comicamente ridículos que suscitaram preconceitos e sarcasmos ofensivos.

Quando conheceu a obra de Wagner, Bruckner, perto dos quarenta anos, iniciou com entusiasmo juvenil um novo período de experiências e ensaios. Embora dificilmente se possa imaginar um discípulo cuja personalidade fosse mais diametralmente oposta à do mundano e culto mestre de Bayreuth, a admiração de Bruckner por Wagner se transformou em veneração. Mais que uma influência, Tristan und Isolde significou para ele uma libertação, pois passou a assumir as próprias inovações. Entretanto, Bruckner manteve-se alheio às preocupações filosóficas e literárias da arte wagneriana, da qual só assimilou a ousadia harmônica e a ciência da orquestração. Mesmo assim, a admiração por Wagner rendeu-lhe a crítica cruel dos antiwagnerianos (entre outros, Hanslick e Brahms) e a alcunha de Sinfonista de Bayreuth. Suas obras, com destaque para as sete missas, o Te Deum e as nove sinfonias, nunca conseguiram ganhar a aprovação unânime de seus contemporâneos, apesar do empenho de regentes ilustres como Gustav Mahler e Hans Richter. A Sexta Sinfonia, por exemplo, só estreou sua versão integral no ano de 1901, em Stuttgart, após a morte do compositor.

Ela possui quatro movimentos – Majestoso, Adagio, Scherzo e Finale. Contrariando seus hábitos, Bruckner nunca a retocou e deu-lhe o apelido de Die Keckste (a mais ousada), em referência a seu caráter experimental. Em toda a Sinfonia, os diversos parâmetros – ritmos, alturas, tonalidades, linhas melódicas – são pensados seletivamente, explorando as possibilidades dialéticas da tensão repouso/dinâmica.

No início do Maestoso, as cordas estabelecem o motivo rítmico que dominará toda a partitura. O tema principal, Largo, surge em piano, nos violoncelos e contrabaixos. Após uma resposta das trompas, ele reaparece fulgurante em fortissimo orquestral. A flauta introduz um segundo motivo, em andamento muito mais lento. O desenvolvimento usa, sobretudo, elementos do primeiro tema. A reexposição conduz à brilhante Coda com o tema principal em todo esplendor e destaque para a marcação rítmica dos trompetes.

O Adagio, cuja solenidade é frequentemente suavizada pelas luzes pálidas do colorido orquestral, constrói-se sobre três temas. O tema principal, misterioso, aparece nos primeiros violinos e obtém melancólica resposta do oboé. A trompa e as madeiras fazem a transição para o sereno segundo tema nos violinos com um contracanto do violoncelo. O terceiro tema, de caráter sombrio, quase fúnebre, é novamente confiado aos primeiros violinos. A reexposição se faz nos moldes clássicos, e a Coda conduz aos harmoniosos acordes conclusivos dos violinos e das violas.

O belo Scherzo inspira-se em antigas melodias nórdicas que lhe conferem um fantástico clima lendário. Sobre as cordas graves e um curto motivo das violas e segundos violinos aparece o tema principal, compartilhado entre as madeiras e os primeiros violinos. Um clímax de grande intensidade antecede expressiva pausa. O lento Trio central é muito breve, com destaque para um maravilhoso motivo das trompas. Uma lembrança nas madeiras do tema inicial da Quinta Sinfonia do compositor antecede o retorno formal ao Scherzo.

O Finale possui três temas principais. O primeiro se desenvolve amplamente nos violinos sobre o pizzicato das cordas graves e um leve trêmulo das violas. A serenidade desse grupo é perturbada pelos violentos metais. O segundo tema, de caráter rítmico, aparece nas trompas. O lírico terceiro tema, confiado às cordas, apresenta um expressivo contracanto dos segundos violinos. O desenvolvimento orienta-se do tom maior para o menor. Após a reexposição temática, a Coda entrega o tema inicial aos retumbantes trombones.

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado – Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.


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(1903/1904)

Instrumentação: 3 piccolos, 4 flautas, 4 oboés, 3 cornes ingleses, requinta, 3 clarinetes, clarone, 4 fagotes, contrafagote, 8 trompas, 6 trompetes, 4 trombones, tuba, 2 tímpanos, percussão, 2 harpas, celesta, cordas.

“Nenhuma outra obra saiu tão diretamente de seu coração como esta”, escreveu Alma Mahler, a respeito da Sexta Sinfonia. Segundo relata em seu livro de memórias, Mahler confessou que o último movimento evoca sua própria queda, simbolizada pelo herói “sobre o qual são desferidos golpes de morte, o último dos quais o abate, como se abate uma árvore”. Hoje, sabemos que os golpes de martelo, no quarto movimento, são premonitórios. Não falam do momento de vida pessoal feliz em que a obra foi concebida, mas anunciam golpes do destino que, três anos depois, se abateriam sobre o compositor: a demissão do posto de diretor da Ópera de Viena, a descoberta da doença cardíaca que o vitimaria e a morte de uma de suas filhas. Significativamente, também a perda dessa criança já havia sido prefigurada nos Kindertotenlieder, ciclo de canções iniciado em 1901, cuja conclusão, em 1904, acompanha de perto a composição da Sexta Sinfonia. Apesar do cunho fortemente autobiográfico atribuído às Sinfonias e aos Ciclos de Canções de Mahler, suas obras falam de todos nós: são exemplos de transcendência, de elevação a uma esfera de comunhão, de compartilhamento do humano, do sofrimento, da alegria e do ideal de ascese.

A Sexta Sinfonia, a “Trágica”, é um momento de encontrar o compositor virtuose da orquestra, que trouxe para seu “instrumento” o virtuosismo do regente. É também a oportunidade de revisitar procedimentos caros a Mahler: a riqueza de contrastes – beirando mesmo a oposição –, o jogo antifonal entre densidades e rarefações, o trânsito tenso entre atmosferas; a presença arquetípica da marcha, anunciada, energicamente, nos compassos iniciais; os amálgamas tímbricos, cujas combinações denotam, também neste elemento composicional, um espírito de busca incessante.

As sinfonias de Mahler são obras longas, exigentes; demandam refinados recursos técnico-interpretativos do regente, dos instrumentistas – também de cantores e solistas, como é o caso da Segunda, Terceira, Quarta e Oitava Sinfonias –, e requerem uma escuta atenta, ativa. O ouvinte é convidado a mergulhar em um mundo de grande complexidade, onde uma simples linha melódica atinge uma dimensão polifônica, quando submetida a justaposições e superposições de cores, à maneira de uma melodia de timbres. Se pensarmos na superposição de melodias, própria do tecido contrapontístico, essa dimensão, com a polifonia de timbres, chega a atingir complexidades exponenciais. Nesse sentido, a Sexta Sinfonia é um exemplo significativo, considerando-se o efetivo instrumental mobilizado: madeiras e cordas numerosas; um naipe importante de metais, dos quais 8 trompas e seis trompetes; um amplo naipe de instrumentos de percussão. O papel estrutural de instrumentos ou de grupos instrumentais, associado a outros elementos do tecido composicional, evidencia-se em diversas passagens da Sinfonia. Como exemplo, logo após a marcha de abertura, podemos citar a intervenção de tímpanos e da caixa, que precedem dois acordes dos metais. Os acordes, sequências de duas tríades – maior e menor – descortinam um cenário novo, caracterizado por uma textura coral, entregue a madeiras e metais, que contrasta fortemente com o percurso anterior da obra. O coral é uma espécie de oásis entre dois temas, o segundo representando Alma Mahler, conforme declaração do compositor. Após a repetição da seção expositiva e em plena seção do desenvolvimento, novo contraste introduzido pela transparência da intervenção dos trêmulos de violinos, associados à celesta e ao emprego dos cincerros. No interior desse novo oásis – ou, com mais uma licença da imaginação, desse refúgio nos Alpes –, reencontramos a sequência de tríades maior/menor e ecos do coral, agora nas trompas. No segundo movimento – Scherzo – são novamente os metais – trompetes – que, na mesma sequência, anunciam a seção central. Exemplos dessa organicidade do tecido composicional se multiplicam ao longo da obra, demandariam uma longa exposição analítica e, evidentemente, teriam que passar pelo crivo da experiência. E esta última é pessoal, inesgotável.

Se ultrapassarmos o quadro da Sexta Sinfonia, vamos encontrar uma pluralidade de traços que a unem a outras obras sinfônicas de Mahler. Um desses traços, relacionado à oposição maior/menor, ouvimos em Das Lied Von der Erde (A Canção da Terra). No canto do cisne mahleriano, o tenor enuncia, nessa ambiência harmônica, uma frase emblemática da obra: Dunkel ist das Leben, ist der Tod! (Sombria é a vida, é a morte!)

O privilégio de poder experienciar, em concerto, uma obra da magnitude da Sexta Sinfonia, deixa ainda mais em evidência características responsáveis pela reverência com que a posteridade trata a obra de Mahler. Mostra, ao lado da filiação Romântica, um espírito de modernidade, uma ousadia harmônica e uma inquietação na busca por uma sonoridade única. As perspectivas abertas pelo compositor fizeram parte do aprendizado de gerações, a começar por seus contemporâneos, entre eles o jovem Schoenberg. Tal como este, Mahler poderia ter explicitado o coro de multivozes que se unem em seu estilo, mas teria o direito de acrescentar, com a mesma sinceridade, que não se restringiu ao que encontrou. Seu trabalho foi, também, de elaboração, de alargamento dos horizontes que o levaram a realizar o novo.

Oiliam Lanna
Professor da Escola de Música da UFMG.


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(1947)

Instrumentação: piccolo, 2 flautas, 2 oboés, corne inglês, 3 clarinetes, clarone, 2 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, harpa, celesta, piano, cordas.

Quando Prokofiev, aos treze anos de idade, passou nos exames para estudar no Conservatório de São Petersburgo, já havia composto quatro óperas, uma sinfonia, duas sonatas e várias obras para piano. Embora se tratasse de composições de juventude, é de se admirar o conjunto de obras compostas com tão pouca idade. Aluno de Rimsky-Korsakov, Anatoly Lyadov e Nikolai Tcherepnin, Prokofiev soube construir, ao longo dos anos, uma carreira de sucesso internacional como compositor, pianista e regente.

Quando estourou a Revolução de 1917, Prokofiev encontrava-se em turnê pela Europa, Japão e Estados Unidos. Sem planos imediatos de retornar à Rússia ele, primeiramente, resolveu ficar nos Estados Unidos. Mas sua música não era apreciada pelos americanos. Os críticos eram duros com suas obras e seu jeito de tocar piano era considerado extremamente seco. Para piorar, a estreia de sua ópera O amor das três laranjas, em Chicago, no dia 30 de dezembro de 1921, foi um fracasso total. Em 1922 ele resolveu voltar à Europa e se estabelecer em Paris, onde sua música era largamente aceita pelo público e pela crítica.

Longe da censura excessiva das autoridades soviéticas, Prokofiev pôde descobrir seu estilo e compor à sua própria maneira. Vivendo em Paris com a esposa e os dois filhos, e se apresentando regularmente por todo o mundo, inclusive na União Soviética, Prokofiev era um homem livre e bem-sucedido. Por isso o mundo jamais compreendeu a razão pela qual, em 1936, ele resolveu se estabelecer, definitivamente, em Moscou. As promessas das autoridades soviéticas poderiam tê-lo seduzido ao ponto de abandonar sua careira de sucesso por um futuro incerto na União Soviética? Dentre os privilégios estava a garantia de manter a posse do passaporte. De fato, isso permitiu que ele fizesse algumas turnês pela Europa e Estados Unidos sem ter de se humilhar às autoridades de seu país. Mas, em poucos anos, seu passaporte foi solicitado para conferências e nunca mais devolvido. Começavam, ali, os anos de chumbo: a patrulha ideológica, a censura, as perseguições, as prisões e a necessidade de se produzir, constantemente, música de propaganda para um regime cada vez mais brutal. Seria ele ingênuo ao ponto de acreditar nas promessas de Stalin, ou teria sido sua transferência para Moscou uma escolha calculada? Nos Estados Unidos, onde sua música era mal tolerada, Rachmaninov era um sucesso. Na Europa, Stravinsky já estava estabelecido como o maior compositor russo vivo. Sua volta para a União Soviética, em 1936, coincidiu com a época em que, após dois ataques no Pravda (26 de janeiro e 6 de fevereiro), a música de Shostakovich caía em desgraça. Calculada, ou não, sua volta foi muito arriscada. Na sua terra natal ele se tornou o maior compositor soviético, mas amargou as mesmas dores dos outros.

Prokofiev foi um dos primeiros compositores do século XX a retornar às estruturas e maneirismos do período clássico. Ele era um excelente orquestrador, capaz de criar atmosferas tão inusitadas quanto as de seu mestre Rimsky-Korsakov. Suas melodias são intensas e cheias de uma vivacidade típica da música russa. Sua Sexta Sinfonia começou a ser esboçada pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial, no verão de 1945. A orquestração só seria finalizada em 1947. Em Mi bemol maior, a Sinfonia nº 6 de Prokofiev é escrita na mesma tonalidade da Sinfonia nº 6 de seu amigo Nikolai Myaskovski, a quem ela foi dedicada. A primeira apresentação teve lugar em Leningrado, em 11 de outubro de 1947, pela Orquestra Filarmônica de Leningrado, sob a regência de Evgeny Mravinsky. O público da estreia a recebeu sem muito entusiasmo. Sua reputação só se estabeleceria, nas salas de concerto, após a morte do compositor.

O primeiro movimento (Allegro moderato) inicia-se com uma breve introdução constituída de ataques secos nos metais. As cordas logo apresentam o primeiro tema, que será repetido e constantemente modificado pela orquestra até atingirmos o segundo tema, um lamento anunciado no oboé e reapresentado nas cordas (Moderato). Um terceiro tema (Andante molto), uma bela melodia no corne inglês e violas, surge sobre um pano de fundo marcial. Uma seção central tumultuada, onde elementos do primeiro tema são trabalhados, nos leva ao clímax do movimento. Logo após um momento tranquilo temos a reapresentação do segundo e terceiro temas, que nos conduzem a um final calmo e misterioso.

O segundo movimento (Largo) inicia-se com o primeiro tema: blocos sonoros imensos nos metais e madeiras que nos remetem à música litúrgica russa. Os violoncelos anunciam o segundo tema, lírico e apaixonado. Uma curta seção central tem início, onde ataques súbitos nos lembram tiros de fuzil. Somos, pouco a pouco, conduzidos à reapresentação do segundo tema para, logo depois, ouvirmos o primeiro tema, que fecha o segundo movimento, tão misterioso quanto o primeiro.

O terceiro movimento (Vivace), mais alegre que os anteriores, inicia-se com um tema vivo nos violinos, respondido por um ritmo vigoroso no grave. O segundo tema, mais lírico, é apresentado pelas madeiras sobre um acompanhamento vigoroso. Uma nova seção tem início, onde ouvimos os dois temas constantemente modificados. Esta seção nos conduz à aparição, inusitada, do tema do oboé do primeiro movimento (Andante tenero). Estamos a um minuto do fim e uma nova agitação nos leva ao final majestoso.

Guilherme Nascimento
Professor na Universidade do Estado de Minas Gerais e na Fundação de Educação Artística


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(1880)

Instrumentação: Piccolo, 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, cordas.

Duas obras de Dvorák haviam sido programadas para a temporada de 1879 da Orquestra Filarmônica de Viena: a Rapsódia Eslava no 3, op. 45, e a Serenata para dez instrumentos de sopro, op. 44. Os músicos se encantaram com a Rapsódia desde o início, a ponto de Hans Richter, o regente titular, encomendar uma nova obra ao compositor para a temporada seguinte: uma sinfonia. Mas o público recebeu a Rapsódia com uma frieza sem precedentes, e as críticas que se seguiram ao concerto foram tão violentas que os membros da orquestra decidiram não executar a Serenata. Dvorák, entretanto, começou a trabalhar na composição da nova sinfonia. Os músicos recusaram-se, novamente, a executar outra obra sua, e a Sinfonia no 6 acabou tendo sua estreia não mais em Viena, mas em Praga, no dia 25 de março de 1881, sob a regência de Adolf Cech.

Não é de se estranhar a hesitação da orquestra vienense em programar repetidas obras de um compositor tcheco relativamente desconhecido. Naquela época, dos aproximadamente duzentos concertos anuais que aconteciam na cidade, menos de vinte eram concertos de orquestras ou coros profissionais. A Filarmônica de Viena apresentava apenas oito concertos por ano. Seus ingressos, a preços exorbitantes, eram destinados a um seleto grupo de pessoas endinheiradas. O grosso do repertório centrava-se nos compositores clássicos do final do século XVIII e início do XIX. Os grandes compositores alemães vivos (Wagner, Brahms e Bruckner) detinham, juntos, apenas doze por cento da programação, ou seja, aproximadamente duas obras de cada um por ano.

Além do mais, o público da Filarmônica, constituído basicamente de grandes industriais, banqueiros, oficiais graduados e altos funcionários públicos – as classes rica e média alta da cidade –, identificava-se fortemente com a ideologia liberal que pregava a superioridade cultural alemã e a necessidade de se transmitir essa cultura aos outros povos do Império Austro-Húngaro. Os valores que estavam em jogo não eram raciais ou étnicos, mas apenas culturais. Se o sabor eslavo das obras de Dvorák foi capaz de causar certa excitação numa Alemanha tão confiante de si, já na Viena dos Habsburgo, numa época em que os austríacos ainda lutavam para impor sua supremacia cultural aos diversos povos do Império, qualquer exotismo vindo do leste era visto com forte oposição.

E, curiosamente, a Sinfonia no 6 talvez seja a mais vienense das sinfonias de Dvorák, por conter fortes referências às sinfonias de Beethoven e Brahms. Enquanto o primeiro movimento é repleto do encanto e da luminosidade tão presentes em sua obra, o segundo traz outra característica ímpar do compositor: a melancolia. Se Dvorák tentou esconder o típico sabor tcheco de sua música, compondo uma sinfonia ao gosto vienense, no Scherzo ele se trai e nos brinda com uma deliciosa dança camponesa de sua terra natal. O último movimento, doce, traz a delicada ambientação do início da Sinfonia no 6 de Beethoven.

Guilherme Nascimento
Compositor, Doutor em Música pela Unicamp, professor na Escola de Música da UEMG, autor dos livros Os sapatos floridos não voam e Música menor.


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(1939)

Instrumentação: 3 flautas, 3 oboés, 4 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpano, percussão, harpa, celesta, cordas.

A vasta obra do russo Dmitri Shostakovich foi composta em pleno stalinismo, regime com o qual estabeleceu relações dúbias — ao longo de sua carreira, duras advertências governamentais alternaram-se com honrarias e prêmios oficiais. A vocação política de sua música manifestou-se cedo. Neto de um revolucionário polonês exilado na Sibéria, Shostakovich teve as primeiras lições de piano com a mãe e, criança prodígio, aos doze anos, escreveu uma Marcha Fúnebre em memória de dois líderes democráticos assassinados por marinheiros bolcheviques.

Sua numerosa produção inclui três óperas, música de câmara, coros a capella e seis concertos, além de dois grandes ciclos: as quinze sinfonias e os quinze quartetos de corda. As sinfonias distribuem-se de forma bastante regular em sua carreira e foram suas peças “públicas”, às vezes revestidas de caráter oficial, dedicadas às grandes massas. Os quartetos, mais intimistas, concentram-se principalmente na fase criativa final e são mais experimentais.

Shostakovich estudou no Conservatório de Petersburgo, sob a direção de Alexander Glazunov. Como peça de graduação, o talentoso aluno apresentou sua Primeira Sinfonia, escrita aos dezenove anos de idade. Por essa época, dedicava-se igualmente ao piano e obteve uma menção honrosa na Primeira Competição Internacional Frédéric Chopin, na Polônia (1927). Com o sucesso da Primeira Sinfonia, regida por Bruno Walter em Berlim, Shostakovich abandonou a carreira de pianista e se concentrou na Composição, estudando as fugas de Bach, os quartetos de Beethoven, as sinfonias de Mahler. Dos compositores russos, destacava Mussorgsky (cuja ópera Boris Godunov reorquestrou) e Tchaikovsky (como criador de belas melodias e brilhante orquestrador). Entre os modernos, Shostakovich admirava particularmente Alban Berg e Bela Bartók. E tinha verdadeira adoração pela música de Stravinsky, embora desprezasse os hábitos cosmopolitas do ilustre compatriota.

No final da década de 1920, Shostakovich filiou-se à Associação para a Música Contemporânea e, paralelamente, começou a escrever trilhas sonoras para cinema e para o Teatro da Juventude Proletária, trabalho que, por seu apelo social, mantinha-se imune a qualquer “heresia estética” e era muito bem visto pelos censores oficiais. Entretanto, a personalidade inovadora do compositor afirmou-se cedo, desde as duas primeiras sinfonias e na ópera O nariz (1928), baseada na famosa novela de Nicolau Gogol. Os ataques da censura stalinista tornavam-se frequentes. Shostakovich, punido com a interrupção dos ensaios da Quarta Sinfonia (1936) e a interdição da ópera Lady Macbeth do distrito de Mzensk, foi forçado a se retratar publicamente. O músico penitenciou-se com a composição da Quinta Sinfonia (1937), obra de grande apelo popular cujo sucesso o reabilitou perante a censura. No mesmo ano, Shostakovich foi nomeado professor do Conservatório de Moscou.

A recepção da Sexta Sinfonia, escrita rapidamente no decorrer de 1939, ao contrário, foi apática. O próprio Shostakovich criou uma falsa expectativa para a obra, a princípio planejada como uma homenagem a Lenin, com solistas, coros e textos de Maiakovski. Quando a sinfonia estreou, em novembro de 1939, os ouvintes se surpreenderam com uma peça relativamente pequena, em três movimentos encadeados de forma não habitual – Largo, Allegro e Presto. O passar do tempo, entretanto, foi generoso com essa sinfonia que, cada vez mais, desperta o interesse por sua originalidade.

O Largo inicial possui o clima mórbido característico de muitos movimentos lentos do compositor. Ao naipe das madeiras são destinados solos de grande beleza melódica (que evidenciam a declarada influência de Tchaikovsky) e se alternam entre o piccolo, o corne inglês, a flauta e o oboé. Na segunda seção, a flauta tece maravilhosos arabescos. Ao final, antes da reexposição do primeiro tema, a trompa apresenta um recitativo melancólico, sobre o fundo de trinados e acordes solenes. No Allegro central, o caráter é de um scherzo. A escrita clara, fluida e bastante efetiva possui uma ironia mordaz, cruel, com suas síncopes e frequentes mudanças de ritmo. A orquestração, extremamente virtuosística, torna-se agressiva na aspereza dos timbres. O humor do Presto final contrasta inteiramente com o sarcasmo do movimento anterior. Há espaço para pequenas citações espirituosas, referenciando obras de Mozart, Rossini e Verdi. O episódio central privilegia o fagote, a flauta e o piccolo, antes que o violino desenvolva um longo trecho e retome o primeiro tema. O final evolui para um clima de festa e saudável alegria.

Ao longo de sua carreira, Shostakovich recebeu as mais altas condecorações governamentais e ocupou cargos de destaque. Em 1942, com a Sétima Sinfonia, inicia o ciclo heroico das grandes obras patrióticas, consagrando-se oficialmente como o sinfonista russo por excelência. Tal reconhecimento não impediu que, por ocasião da “jornada antiformalista” de 1948, o compositor tivesse, ao lado de muitos outros artistas, a maioria dos seus trabalhos condenados e banidos. Em suas memórias, publicadas postumamente, Shostakovich revela o drama de um homem submetido a fortes pressões oficiais – o dilema do artista inovador condicionado a um academismo inevitável.

Paulo Sérgio Malheiros dos Santos
Pianista, Doutor em Letras, Professor na UEMG, autor dos livros Músico, doce músico e O grão perfumado: Mário de Andrade e a arte do inacabado. Apresenta o programa semanal Recitais Brasileiros, pela Rádio Inconfidência.


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(1893)

Instrumentação: piccolo, 3 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 2 trompetes, 3 trombones, tuba, tímpanos, percussão, cordas.

A história da sexta e última sinfonia de Tchaikovsky é cercada de mistérios indecifráveis. Tchaikovsky terminou sua composição em agosto de 1893 e regeu sua estreia no dia 28 de outubro do mesmo ano, em São Petersburgo. Nove dias depois, morria de causas ainda não comprovadas.

A estreia foi um fracasso, aparentemente por se tratar de uma música muito intimista. Quando o assunto era sinfonia, o público esperava ouvir uma música que, embora pudesse conter alguns momentos tristes, deveria iniciar e terminar com temas grandiosos. A Sexta Sinfonia, para surpresa geral, inicia e termina de maneira triste e melancólica. Tchaikovsky não gostou da recepção da obra e resolveu refazer alguns trechos, além de acrescentar o título de “Patética”. E, contrariando a ordem sanitária vigente em São Petersburgo na época, bebeu um copo de água sem ferver, contraiu cólera e morreu nove dias depois, deixando o mundo todo surpreso. Desde então, começaram a surgir os mistérios em torno da Sinfonia e de sua morte.

Segundo seu irmão, Modest, Tchaikovsky bebera o copo de água fatal no dia seguinte à estreia, em sua casa; mas seu sobrinho, Iurii Davydov, irmão de Vladimir Davydov, para quem Tchaikovsky dedicara a Sinfonia, atestou que a água havia sido bebida no Restaurante Leiner, onde Tchaikovsky jantara com amigos e parentes logo após o concerto de estreia. No início do século XX, novas versões vieram à tona. A filha de Iurii, Xeniya Davydova, declarou que a história da água contaminada era pura ficção. Segundo ela, seu pai, perturbado com os crescentes rumores de que seu tio suicidara, inventara a versão de que estivera presente no restaurante para poder atestar uma história diferente. Vasily Bertenson, um dos médicos que atenderam Tchaikovsky em suas últimas horas, afirmou, no final da vida, que o compositor havia tomado veneno. Alexander Zander, filho do outro médico que atendera o compositor, admitiu que seu pai contara a ele uma história semelhante.

Ao que tudo indica, jamais saberemos se Tchaikovsky morreu de cólera, se fora envenenado ou se tomara veneno por conta própria. As inúmeras contradições dos membros da família, a respeito do copo de água contaminada, parecem atestar que a morte por cólera pode, de fato, ter sido uma invenção; e esses membros jamais apareceram com uma acusação de possível assassinato. Sobraria, assim, a versão do suicídio.

Tchaikovsky já havia tentado se matar uma vez, em 1877, logo após a catástrofe de um casamento infeliz. Para evitar que sua família caísse em desgraça pelo escândalo de um suicídio, ele procurou fazer de modo a parecer que fosse de causa natural. Assim, ele entrou no Rio Moscou e lá permaneceu a noite inteira, na esperança de pegar pneumonia e morrer. Agora, nos últimos anos de vida, Tchaikovsky talvez se sentisse pressionado mais uma vez. Segundo alguns estudiosos, ele suportava, com dificuldade, os rumores de que o amor por seu sobrinho, Vladimir Davydov, era mais do que paternal. Sua provável homossexualidade havia se tornado pública e sua vida social se tornava insustentável. Seria possível que, mais uma vez sobre enorme pressão, ele fizesse uma segunda tentativa?

E, então, temos a Sexta Sinfonia. De acordo com algumas cartas de Tchaikovsky, suas sinfonias eram como “confissões musicais”, capazes de “expressar tudo aquilo para o qual não existem palavras”, principalmente questões como Vida, Morte, Amor e Beleza. O que estaria o compositor, então, tentando nos dizer, nesta sua carta de adeus? Provavelmente, das suas desilusões amorosas e musicais, da sua impotência frente às dificuldades da vida… Possivelmente, da sua angústia com o vazio que se descortinava, um vazio causado pelo fato de que tudo que ele amava e acreditava fosse eterno, estivesse, talvez, se dissolvendo…

Guilherme Nascimento
Doutor em Composição, professor de Música da UEMG e da Fundação de Educação Artística, autor do livro Música menor.


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(1944)

Instrumentação: 2 piccolos, 4 flautas, 2 oboés, corne inglês, 2 clarinetes, clarone, 2 fagotes, contrafagote, 4 trompas, 4 trompetes, 4 trombones, tuba, tímpanos, percussão, 2 harpas, celesta, cordas.

“Até a própria Natureza é também uma grande artista para quem sabe apreciá-la com respeito, fé e vontade de querer”, afirmou Heitor Villa-Lobos. Ao admirarmos cada palmo de sua obra, deparamos com uma criatividade admirável, às vezes grandiloquente tal qual a vastidão das terras brasileiras, as quais ele palmilhou coletando melodias indígenas e canto dos pássaros. Para além das escolas nacionalistas, sua música é uma declaração de amor à pátria e se estende, literalmente, pelas serras e montanhas brasileiras. A milimetria, ou milimetrização, processo criado por Villa-Lobos, propõe-se a transformar o contorno das serras em linhas melódicas, ao relacionar frequência e duração rítmica. Essa técnica composicional, batizada por ele “Melodia das Montanhas”, surgiu em 1935, inspirada na silhueta do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro. Em 1939, a ideia foi concretizada em duas obras para piano: Melodia da Montanha, utilizando as linhas da Serra da Piedade, em Caeté, Minas Gerais, e New York Skyline Melody, a partir do contorno dos arranha-céus de Manhattan. A milimetrização foi inserida no programa do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico – do qual Villa-Lobos foi nomeado diretor em 1943 – como um processo pedagógico de criação musical que despertaria nos alunos o gosto pela composição. Posteriormente, na França, Olivier Messiaen – que reconhecera Villa-Lobos como grande orquestrador – qualificou oito elementos extramusicais motivadores de uma composição musical, entre eles a geometria das montanhas, advindo do reino mineral.

Villa-Lobos compôs ao todo doze sinfonias – embora esteja a Quinta extraviada – que merecem ser executadas publicamente e ombreadas aos grandes ciclos das Bachianas Brasileiras e dos Choros. A Sinfonia nº 6, escrita em 1944, é a composição que melhor representa a técnica da milimetrização. Ela utiliza três contornos: do Pão de Açúcar, Rio de Janeiro; da Serra da Piedade, Minas Gerais; e da Serra dos Órgãos, Rio de Janeiro, anotados por Villa-Lobos em 1935, 1937 e 1940, respectivamente. A obra, dedicada a sua esposa Mindinha, foi estreada no Rio de Janeiro em 29 de abril de 1950 pela Orquestra do Theatro Municipal, conduzida pelo compositor. O segundo movimento possui uma textura orquestral que se caracteriza por glissandi nas cordas e solos nas madeiras, citando os temas das serras que anotara. Aos poucos a música se adensa, as brumas dessa atmosfera misteriosa são desfeitas, rompidas pela percussão e iluminadas pelos metais.

As onze sinfonias de Villa-Lobos foram recentemente gravadas pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo com regência do maestro Isaac Karabtchevsk, que também fez um trabalho de revisão musicológica das obras.

Marcelo Corrêa
Pianista, Mestre em Piano pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor na Universidade do Estado de Minas Gerais.


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(1924)

Instrumentação: 2 piccolos, 2 flautas, 2 oboés, 2 clarinetes, 2 fagotes, 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tímpanos, cordas.

Jean Sibelius é conhecido universalmente, hoje em dia, principalmente por suas sete sinfonias e pelo concerto para violino. Exageradamente considerado, pela crítica, como um compositor nacionalista, Sibelius foi, na verdade, um compositor cosmopolita, atento às transformações musicais de seu tempo, mas sempre fiel ao seu estilo. Sua obra tem sido vista, recentemente, como comparável à de Gustav Mahler, ambos responsáveis por uma grande ampliação do gênero sinfônico no início do século XX. A chave para se conhecer as sinfonias de Sibelius está exatamente onde elas diferem das de Mahler. Se para Mahler a sinfonia deveria expandir-se ao ponto de abarcar o mundo, para Sibelius ela deveria conter apenas o essencial: a concentração máxima da forma com uma elevada economia de material.

Assim que o século XX se iniciou, o estilo de Sibelius foi considerado como um prolongamento do Romantismo, o que fez com que sua música fosse vista como moderna pelo meio musical da França, Alemanha e Áustria. Porém, em dez anos essa mesma característica o condenaria ao rótulo de retrógrado. Sibelius não era nem moderno nem retrógrado, mas sabia tratar os elementos musicais, já assimilados de longa data, de maneira ímpar, dando-lhes um frescor inusitado. Era excepcional a sua capacidade de retrabalhar aspectos largamente conhecidos, tais como a melodia, a harmonia e a trama orquestral, e dar-lhes uma aparência nova. Nos anos 1920 sua popularidade – na França e nos países de língua germânica – havia declinado consideravelmente, enquanto, curiosamente, estava em franca ascensão nos países de língua inglesa. Enquanto França, Alemanha e Áustria travavam uma batalha política pela hegemonia da modernidade nas artes, os círculos mais conservadores dos Estados Unidos e Inglaterra viam a música de Jean Sibelius como uma via de escape para as tendências modernistas que assolavam a Europa. A composição de sua Sétima Sinfonia se deu justamente nessa época. Terminada em 1924, foi estreada em Estocolmo, em 24 de março do mesmo ano, sob a regência do compositor. Calorosamente recebida pelo público escandinavo e, mais tarde, pelo inglês e o norte-americano, foi praticamente ignorada pelos países da Europa central.

Embora a primeira menção à Sétima Sinfonia tenha ocorrido em uma carta de Sibelius de 1818 – em que se descobre que o plano original da obra contemplava três movimentos –, fragmentos do material musical utilizado na Sinfonia podem ser encontrados em cadernos de rascunhos do compositor desde o ano de 1914. Em 1923 o compositor condensou os três movimentos em um único. O resultado, entretanto, está longe de parecer uma simples colagem. Sibelius conseguiu construir uma estrutura complexa ao utilizar aquilo que se convencionou chamar de forma rotacional ou forma cíclica. A forma rotacional opera por constantes reaparições variadas do mesmo material musical. Ou seja, cada vez que determinado trecho musical reaparece, ele traz consigo transformações (expansões, condensações, reordenações etc.) e acúmulo, ou subtração, de materiais. O resultado sonoro assemelha-se ao aparecimento de constantes flashbacks que se acumulam inusitadamente, como um passado que insiste em retornar constantemente, porém diferente.

A obra possui quatro seções intercaladas pelo tema do trombone. Na primeira seção (Adagio) Sibelius expõe o material principal: o rufo dos tímpanos, a escala ascendente das cordas e o motivo das flautas (respondido pelos clarinetes). Um curto momento em que as cordas tocam pequenos motivos, em imitação, culminará na primeira aparição do tema do trombone. Uma longa transição, com rotações livres dos materiais do início, acelera o tempo até chegarmos à próxima seção. Na segunda seção (Vivacissimo), com caráter de scherzo, os mesmos materiais reaparecem, novamente transformados. Em pouco tempo ouvimos o tema do trombone (Adagio), desta vez mais longo e funcionando, ele próprio, como transição. A terceira seção (Allegro molto moderato), a mais longa de todas, possui também o caráter de scherzo; trata-se aqui, porém, de um scherzo mais leve e expansivo, recheado de transformações livres dos materiais do início. A terceira aparição do tema do trombone (Adagio) nos leva à quarta e última seção, onde os materiais são livremente reordenados em uma breve reexposição.

Guilherme Nascimento
Compositor, Doutor em Música pela Unicamp, professor na Escola de Música da UEMG, autor dos livros Os sapatos floridos não voam e Música menor.


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(1941)

Instrumentação: 3 flautas, 3 oboés, 4 clarinetes, 3 fagotes, 8 trompas, 6 trompetes, 6 trombones, tuba, tímpanos, percussão, piano, 2 harpas, cordas.

Depois da efervescente turbulência – pródiga em originalidade, em experimentações e na descoberta de novas possibilidades e novas orientações estéticas – que marca a música dos primeiros anos do século XX, a atividade criadora parece ter feito um movimento de retração. Seria como dizer que há uma espécie de chamada à ordem sobre a “insolência” criativa de nomes como Debussy, Stravinsky e Webern que conquistaram, cada um a seu modo, um novo infinito de caminhos possíveis para a linguagem musical. As profundas consequências sociais e políticas que trouxeram a Primeira Guerra Mundial (1914–1918), de um lado, e a Revolução Russa (1917), de outro, parecem ter freado esse entusiasmo criativo com que foi pintado o início do século XX. No entanto, há que se marcar com ênfase que esse movimento aparentemente reacionário da criação musical é também um fenômeno histórico, revelador de um novo posicionamento estético, que, por sua vez, não deixou de assimilar grande parte das conquistas dos movimentos anteriores e que orientou, em positivo ou em negativo, grande parte da música que o sucedeu.

As tendências neoclássicas que despontam a partir desse período, a que se rende inclusive o próprio Stravinsky, parecem ser a orientação principal de uma tentativa de reorganizar a pulverização de toda uma tradição musical, subvertida pelos compositores que abriram os Novecentos. É assim que surgem, a partir desse período, nomes como Prokofiev, que, confessadamente neoclássico e grande melodista, trouxe a linguagem moderna mais próxima da sensibilidade popular, e Shostakovich, que o sucedeu e que, com ele, foi um dos maiores representantes da Escola Soviética.

A linguagem de Shostakovich é, nesta esteira neoclássica, fortemente embasada em uma releitura da estética romântica. Pode-se mesmo dizer que em Shostakovich há um retorno ao mundo tonal, relido e recuperado a partir de uma espécie de expressionismo ultrarromântico, que ele filtra de Mahler e de Berg. Fazendo uso franco de elementos atonais, usando largamente do cromatismo e com algumas (raras) investidas na bitonalidade, Shostakovich relê, com as lentes da modernidade, um universo tonal já em fase de esfacelamento e preocupado em dar novos rumos à linguagem musical. É a esse universo que Shostakovich volta os olhos e é nele que encontra elementos de significação que lhe possam garantir a expressão pessoal de seu trabalho criador. Na forma, mais ou menos na mesma perspectiva que Prokofiev, Shostakovich não hesita em recuperar os procedimentos clássicos: em Bach ele reencontra os prelúdios e as fugas, em Beethoven, os quartetos, em Mahler, as sinfonias. De seus compatriotas, à parte Prokofiev, Shostakovich admira particularmente Mussorgsky (de quem faz reorquestrações de duas óperas) e, paradoxalmente, Stravinsky, por quem ele tem profundo respeito como compositor, mas a quem execra como pensador. Além do contexto musical em que está imerso e de suas predileções pessoais, outro fator parece ter norteado fortemente a opção estética de Shostakovich: as pressões do Partido Comunista, então em pleno regime stalinista. Após as duras críticas de seus primeiros trabalhos (nomeadamente sua ópera Lady Macbeth de Mtsensk, em cuja estreia esteve presente o próprio Stalin), foi somente a partir de sua quinta sinfonia que ele começou a desenvolver uma linguagem que, aceita pelo Partido, lhe valeu o elogio de “verdadeiro artista soviético”.

Das quinze sinfonias que compôs, a sétima, estreada em 1942, tornou-se extremamente popular tanto na Rússia quanto no Ocidente, como símbolo de resistência ao Nazismo. Trata-se da sinfonia mais longa do compositor, e aí é nítida a recuperação de algumas de suas fontes principais: Mahler, Bruckner e Stravinsky. Talvez por isso, a despeito de seu sucesso, a crítica e o meio musical no Ocidente não a tenham recebido bem, taxando-a, inclusive, de excessivamente emocional, em detrimento da coerência sinfônica, um híbrido de Mahler e Stravinsky. De fato, Shostakovich lança mão, nessa sinfonia, de “imagens musicais” que, estilizadas, a aproximam de um realismo quase pictórico que não é avesso ao gosto da estética soviética: fanfarras, marchas, ostinatos e citações de temas folclóricos. Além disso, a obra, dedicada à cidade de Leningrado e composta no ano em teve início o sítio de novecentos dias a essa cidade pelas tropas nazistas, é polvilhada de temas que, à parte a sua função estrutural, também aderem a essa concepção quase realista de uma música que nasce no seio dos horrores da guerra. O famoso “tema da invasão”, no primeiro movimento, foi concebido pelo autor como o “tema de Stalin”. Mais tarde, porém, foi tomado como um tema “anti-hitlerista”.

Seja encarada como retrato da perplexidade ante as barbaridades do Segundo Conflito Mundial, seja tomada apenas como música, não necessariamente atrelada a qualquer temática extramusical, é inegável que essa obra está imbuída da mentalidade contraditória e conflituosa que norteou e ainda norteia o homem de nossos tempos.

Moacyr Laterza Filho
Pianista e cravista, Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais e da Fundação de Educação Artística.