Como a criminalizaçao da pobreza afeta a vida população carente

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  2. 2. A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA Relatório sobre as Causas Econômicas, Sociais e Culturais da Tortura e de Outras Formas de Violência no Brasil Relatório Alternativo submetido à 42ª Sessão do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas, em maio de 2009 Preparado por Justiça Global, Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e Organização Mundial Contra Tortura (OMCT) no contexto do projeto “Prevenindo a Tortura e Outras Formas de Violência por meio de Ação nas Suas Causas Econômicas, Sociais e Culturais.” Rio de Janeiro/Brasil Tel: +55 21 2544-2320 www.global.org.br Movimento Nacional de Meninos Meninas Rua Pernambuco/Brasil Tel: + 55 81 3222-8586 World Organisation Against Torture P.O. Box 21 - 1211 Geneva 8 Switzerland Tel.: 0041/22 809 49 39 / Fax: 0041/22 809 49 29 / www.omct.org A União Européia, através da “Iniciativa Européia pela Democracia e Direitos Humanos”, está fornecendo apoio significativo para este projeto, o qual também recebe apoio da Fundação Karl Popper (Karl Popper Foundation), a Organização Intereclesiástica de Cooperação para o Desenvolvimento (InterChurch Organisation for Development Cooperation - ICCO) e a Fundação pelos Direitos Humanos no Trabalho (Foundation for Human Rights at Work). O conteúdo deste relatório é de responsabilidade dos autores e não necessariamente reflete a opinião das organizações financiadoras deste projeto.
  3. 3. A Justiça Global, a OMCT e o MNMMR agradecem a Gracilene Rodrigues dos Santos, mãe do menino Matheus, Márcia Jacintho, mãe do jovem Hanry, Deize de Carvalho, mãe do jovem Andreu, e a todos aqueles que são atingidos pela violência praticada pelo Estado
  4. 4. 24º Encontro Estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra Rio Grande do Sul - Brasil - Janeiro de 2008 (foto: Leonardo Melgarejo)
  5. 5. A criminalização da pobreza no BRASIL Sumário Prefácio 1.1.Abordandoaquestãodapobreza,desigualdadeeviolência:“aprópriaessênciadaproteçãodosdireitoshumanos” A.Introdução B.Ouvindoaspessoas C.Oselementos-chavedesterelatório D.Principaisrecomendações E.TrabalhandocomoComitêparacausarmudança 2.Acriminalizaçãodapobreza:umresumo 3.DesigualdadeeviolêncianoBrasil A.Desigualdadesócio-econômica B.Níveisdeviolência C.Arespostadogovernoparaapobrezaeaviolência 4.Violênciapolicialcontraospobres A.Autosderesistência B.Mega-operaçõesnoComplexodoAlemãoeCoréia,RiodeJaneiro 5.Controledasmilíciassobreáreasurbanaspobres 6.Direitoseconômicos,sociaiseculturaiseosistemaprisional A.OperfildapopulaçãocarcerárianoBrasil B.Condiçõesdasprisões C.Vulnerabilidadedasmulheresecriançasencarceradas D.PresídioUrsoBranco,PortoVelho,estadodeRondônia E.CarceragensdaPolintereda76ªDelegaciadePolícia,estadodoRiodeJaneiro 7.Violênciacontraasmulheres 8.Violênciacontradefensoresdedireitoshumanosemovimentossociais 9.Conclusões 10.Recomendações 11.ObservaçõesFinaisdoComitêdeDireitosEconômicos,SociaiseCulturais Anexo1:Missãopreparatória,Brasil,10-17defevereirode2009 Anexo2:DestaquesnamídiasobreousoexcessivodeforçapelapolícianoRiodeJaneiro,2007 Anexo3:Listacompletadasvítimasdamega-operaçãodapolícianoComplexodoAlemão,RiodeJaneiro,27dejunhode2007 Anexo4:DoiscasosdetorturaemortessobcustódianoBrasil Anexo5:UmacartadeprofessoreseestudantesTupinambásdeSerradoPadeiro,Bahia,24deoutubrode2008 2 4 4 5 6 10 12 16 21 21 22 26 31 34 37 40 45 45 47 50 52 54 56 60 68 70 77 92 96 98 99 102
  6. 6. A criminalização da pobreza no BRASIL 2 A criminalização da pobreza no BRASIL 3 Prefácio Em 6 e 7 de maio de 2009, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais analisou o segundo relatório periódico do Brasil sobre a implementação do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Com o objetivo de apoiar o trabalho do Comitê e fornecer informações adicionais, o secretariado da Organização Mundial Contra Tortura (OMCT), na Suíça, uniu-se à Justiça Global e ao Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), no Brasil, para elaborar este relatório alternativo, o qual foi submetido para apreciação do Comitê em abril de 2009. Este relatório foi produzido no contexto do projeto da OMCT “Prevenindo a Tortura e Outras Formas de Violência por meio de Ação nas suas Causas Econômicas, Sociais e Culturais”, financiado pela “Iniciativa Européia pela Democracia e Direitos Humanos” da União Européia, Fundação Karl Popper (Karl Popper Foundation), Organização Intereclesiástica de Cooperação para o Desenvolvimento (InterChurch Organisation for Development Cooperation - ICCO) e Fundação pelos Direitos Humanos no Trabalho (Foundation for Human Rights at Work). Este projeto é financiado com base no princípio da interdependência dos direitos humanos e busca estimular respostas e soluções que abordem a ligação entre pobreza e marginalização, de um lado, e tortura e violência, de outro. Uma missão preparatória foi realizada no estado de Pernambuco por Eulange de Sousa e Maria Aparecida Pereira Martins, em nome do MNMMR, e Michael Miller, em nome da OMCT, entre 9 e 15 de fevereiro de 2009. Um agradecimento especial a Paulo Valença Jr. do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) por organizar as reuniões em Recife e em outros lugares no estado e por coordenar as contribuições da sociedade civil. Rafael Dias e Tamara Moreira Vaz de Melo, da Justiça Global, e Michael Miller realizaram, em seguida, uma missão na cidade do Rio de Janeiro entre 15 e 17 de fevereiro. Michael Miller foi o principal autor deste relatório. Tamara Melo e Rafael Dias também contribuíram com capítulos importantes e deram opiniões e suporte no decorrer do processo de elaboração. A Justiça Global, o MNMMR e a OMCT expressam sua gratidão aos especialistas e ativistas que dispensaram tempo para dividir seu conhecimento e experiência antes, durante e depois da missão preparatória. No estado de Pernambuco, estes incluem: Alexandre Nápoles Filho e Sebastian Conan, Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP); Ana Paula Maravalho, Observatório Negro; Ana Paula Portella, SOS Corpo – Instituto Feminista Para a Democracia; Ceica Pitagurany, José Barbosa dos Santos e Júnior Pankaramu, Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME); Eleonora Pereira, Casa de Passagem, Santo Amaro – Centro Brasileiro da Criança e do Adolescente; Ingrid Leão, Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM Brasil); Joana Santos, Fórum de Mulheres Pernambuco; João Batista do Espírito Santo Júnior, Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, Pernambuco (MNMMR-PE); João José da Silva, Movimento de Luta Popular e Comunitário de Pernambuco (MLPC/PE); José Karajá, Observatório de Favelas; Marcos Lopes Bastos Freire, Associação Carnaubense de Apoio à Família (ACAF); Rejane Pereira, Cidadania Feminina/Fórum de Mulheres de Pernambuco; Rivane Arantes, Relatoria Nacional dos Direitos Humanos ao Trabalho/Centro de Cultura Luiz Freire; Rosana de Souza Brasil, Instituto Joanna de Ângelis (IJA); Sueli Nascimento Meireles, Associação Espírita Lar Transitório de Christie (AELTC); Wilma Melo, Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões (SEMPRI); e a Associação de Mulheres de Água Preta. Na cidade do Rio de Janeiro, gostaríamos especialmente de agradecer às seguintes pessoas e organizações: Andressa Caldas, Justiça Global; Joba Alves, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); Márcia Adriana Fernandes, Centro de Estudos de Segurança e Cidadania/ Associação pela Reforma Prisional (CESeC/ARP); Tomas Ramos, Projeto Legal; Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM-RJ); Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência; e as pessoas entrevistadas na Oficina de Direitos Humanos, uma iniciativa da Justiça Global e do mandato do deputado estadual Marcelo Freixo, com o apoio do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis. Finalmente, as equipes da Justiça Global, MNMMR e OMCT gostariam de estender seus sinceros agradecimentos às muitas vítimas da violência com as quais conversaram durante a missão e que estavam prontas a dividir as suas experiências pessoais. Esperamos que este relatório de alguma forma retribua sua generosidade e coragem.
  7. 7. A criminalização da pobreza no BRASIL 4 A criminalização da pobreza no BRASIL 5 1. Abordando a questão da pobreza, desigualdade e violência: “a essência da proteção dos direitos humanos” A. Introdução Não há dúvida hoje de que tortura e tratamento ou pena cruel, desumana ou degradante e outras formas de violência – incluindo violência contra mulheres e crianças – estão relacionados, de várias maneiras, ao desrespeito dos direitos econômicos, sociais e culturais.1 Portanto, se se pretende eliminar estes fenômenos, as suas causas econômicas, sociais e culturais devem ser, primeiro, compreendidas e, segundo, efetivamente trabalhadas.2 Da mesma forma, o inverso também se aplica: atuar para reduzir os níveis de violência em uma determinada sociedade é um passo fundamental para assegurar o pleno gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais por todos. Como Louise Arbour, ex-Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU, observou em seu prefácio para o estudo da OMCT sobre o tema, a questão de “como prevenir ou reduzir a violência, inclusive tortura, atuando em suas causas reais, freqüentemente relacionadas a violações dos direitos econômicos, sociais e culturais”, é uma questão que “remete à própria essência da proteção dos direitos humanos”.3 1.Ver OMCT, Attacking the Root Causes of Torture: Poverty, Inequality and Violence – An Interdis- ciplinary Study, Geneva, 2006, disponível em: www.omct.org. No seu papel de Relator Especial sobre a questão da Tortura, Sir Nigel Rodley afirmou: “enquanto as sociedades nacionais e, de fato, a comunidade internacional falharem em abordar os problemas dos pobres, marginalizados e vulneráveis, elas estarão indiretamente - e, no que concerne à exposição ao risco de tortura, diretamente - contribuindo para o ciclo vicioso da brutalização que é um obstáculo e uma ameaça às nossas aspirações por uma vida de dignidade e respeito para todos”. “Relatório do Relator Especial da Comissão de Direitos Humanos sobre a questão da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes”, UN Doc. A/55/290, 11 de agosto de 2000, par. 37. 2.Certamente, muitas outras medidas devem ser adotadas para eliminar a tortura além de lidar com as suas causas econômicas, sociais e culturais. Tais medidas foram abordadas em relatórios alternativos da OMCT para o Comitê de Direitos Humanos da ONU, o Comitê contra Tortura, o Comitê para os Direitos da Criança e o Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher. 3.OMCT, Attacking the Root Causes of Torture: Poverty, Inequality and Violence – An Interdisci- plinary Study, Geneva, 2006, p. 9, disponível em: www.omct.org Como a inobservância dos direitos econômicos, sociais e culturais está relacionada com a tortura e outras formas de violência • Os pobres, excluídos e outros grupos vulneráveis são freqüentemente as primeiras e mais numerosas vítimas da violência, incluindo tortura e tratamento cruel, desumano e degradante. • Os níveis de violência em uma determinada comunidade ou sociedade podem ser tais que os indivíduos ou grupos sejam impossibilitados de gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais. • Violência é infligida em pessoas que demandam respeito pelos direitos econômicos, sociais e culturais – seus próprios ou de outros. • Políticaseprogramasdegovernos, atoresprivadoseinstituições financeiras e de desenvolvimento podem exacerbar a pobreza e as desigualdades e levar ao aumento dos níveis de violência institucional, criminal e doméstica. Este relatório, elaborado pela Justiça Global, pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e pela Organização Mundial Contra Tortura (World Organisation Against Torture - OMCT), não tem a pretensão de exaurir o tema do descumprimento dos direitos econômicos, sociais e culturais no Brasil, mas busca abordar alguns dos aspectos principais em que há ligação clara e direta entre violações de direitos econômicos, sociais e culturais e violência ou ameaça de violência neste país. Um elemento importante deste relatório é a lista de recomendações direcionadas a orientar o governo do Brasil sobre como lidar com as causas econômicas, sociais e culturais da tortura e outras formas de violência. B. Ouvindo as pessoas Em fevereiro de 2009, dois membros da equipe do MNMMR e um da OMCT realizaram uma missão preparatória ao estado de Pernambuco, na região nordeste do Brasil (em especial, na cidade de Recife e arredores). Em seguida, a equipe da OMCT viajou para a cidade do Rio de Janeiro, na região sudeste do país, para uma série de reuniões organizadas pela Justiça Global.
  8. 8. A criminalização da pobreza no BRASIL 6 A criminalização da pobreza no BRASIL 7 A agenda completa de reuniões realizadas durante a missão de dez dias pode ser encontrada no Anexo 1. O objetivo da missão preparatória era duplo: primeiro, consultar representantes da sociedade civil brasileira sobre a ligação entre a violência e a violação dos direitos econômicos, sociais e culturais no Brasil e, segundo, conhecer e conversar com indivíduos cujas vidas foram diretamente afetadas pela violência. Alguns deles eram mulheres vítimas de violência doméstica, outros tinham sofrido violência nas mãos da polícia ou sido vítimas de tiroteios associados à violência de gangues e facções criminosas nos bairros onde moram. Outros tinham perdido familiares em razão de violência letal. Por fim, um grupo de mulheres com um parceiro ou marido na prisão falou da dificuldade econômica e o estigma social que a sua situação ocasiona. Em conjunto, estas entrevistas forneceram um panorama da violência e da insegurança que são elementos constantes nas vidas de muitos dos cidadãos mais pobres e marginalizados do Brasil. Além disso, permitiram que estes indivíduos expressassem suas opiniões sobre a maneira como a situação no Brasil pode ser melhorada. C. Os elementos-chave deste relatório Esta seção traz um breve resumo dos temas abordados neste relatório e situa-os no contexto da criminalização da pobreza, traçando os caminhos de uma situação complexa e desafiadora. Conclui com um resumo das recomendações principais propostas por Justiça Global, MNMMR e OMCT. A criminalização da pobreza A violência é um elemento muito presente e visível da pobreza no Brasil: ela afeta desproporcionalmente as comunidades mais pobres, tanto nas áreas urbanas quanto nas rurais, e, por sua vez, agrava ainda mais esta pobreza. Além disso, os atores estatais responsáveis pela segurança tendem a estereotipar os pobres, e particularmente os moradores das favelas, como “criminosos”. Tal identificação é reforçada por relatos da mídia e até mesmo por afirmações de figuras públicas. A criminalização dos pobres tem justificado estratégias de segurança pública que violam uma gama de direitos humanos, inclusive o direito à vida, tendo em vista que a polícia promove ações arbitrárias contra os moradores das favelas, em especial jovens negros. Identificados como criminosos pela polícia, os pobres são, ao mesmo tempo, também vítimas da polícia e de facções criminosas; e gangues organizadas controlam a maior parte dos recursos econômicos nos bairros urbanos pobres do Brasil. Desigualdade e violência Esta seção analisa como aqueles que são mais afetados pela desigualdade sócio-econômica – especialmente a população negra do Brasil – têm também muito mais chances de se tornarem vítimas da violência, sobretudo violência letal. O governo brasileiro introduziu uma série de medidas para tentar lidar com essa situação. Uma delas – o Plano Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI) – visa articular políticas de segurança pública com ação social. A eficácia deste programa ainda tem de ser avaliada, no entanto, organizações e movimentos sociais fazem algumas ressalvas relativas à sua estrutura e implementação. Violência policial contra os pobres A criminalização da pobreza é produzida por, e serve como justificativa para, uma forma de segurança baseada no “enquadramento social” e na identificação de um suspeito “típico”. Policiamento dessa natureza promove violência indiscriminada em vez de investigação imparcial e conflito armado em vez de diálogo comunitário. Como discutido na seção 4 deste relatório, as comunidades mais pobres e marginalizadas do Brasil vivem sob o risco diário de serem envolvidas em atos de violência letal praticados pelas mãos da polícia. O Relator Especial da ONU sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, em seu relatório sobre o Brasil, alerta que a polícia é responsável por um em cada cinco homicídios no país.4 A polícia também tem se envolvido em várias operações militarizadas expressivas nas áreas mais pobres das cidades brasileiras, as quais, apesar de provar terem sido altamente ineficazes5, receberam o apoio da administração do presidente Lula. 6 4.Alston, Philip (2008) “Promoção e Proteção de Todos os Direitos Humanos, Civis, Políticos, Econômicos, Sociais e Culturais, Incluindo o Direito ao Desenvolvimento. Relatório do Relator Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, Philip Alston, Adendo, Missão ao Brasil”. UN Doc. A/HRC/11/2/Add.2, 23 de março de 2009. 5. Alston as descreve como “assassinas e contraproducentes”. 6.Para mencionar apenas um exemplo relevante, o Complexo do Alemão no Rio de Janeiro foi palco de uma mega operação policial em 27 de junho de 2007, na qual um contingente de 1.450 policiais e agentes de segurança se envolveu em uma operação de ‘combate ao tráfico’de 8 horas nas ruas do bairro. No curso da operação, 19 civis foram mortos e pelo menos 9 ficaram feridos. Um total de 12 armas foi apreendido – quantidade consideravelmente menor do que o número de mortes civis. Para mais detalhes, ver Alston, Philip (2008) “Promoção e Proteção de Todos os Direitos Humanos, Civis, Políticos, Econômicos, Sociais e Culturais, Incluindo o Direito ao Desenvolvimento. Relatório do Relator Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Ar- bitrárias, Philip Alston, Adendo, Missão ao Brasil”. UN Doc. A/HRC/11/2/Add.2, 23 de março de 2009.
  9. 9. A criminalização da pobreza no BRASIL 8 A criminalização da pobreza no BRASIL 9 Controle das Milícias sobre as áreas urbanas pobres Nos últimos quatro ou cinco anos, outro elemento opressivo emergiu nas vidas dos pobres das áreas urbanas, notadamente no Rio de Janeiro, mas também em outras cidades do país. O crescimento ostensivo de milícias informais ou “semi-formais” se deu supostamente em resposta aos temores públicos quanto à “criminalidade”. Contudo, na prática, estes grupos são guiados por fortes interesses econômicos. Compostas por policiais e ex-policiais, juntamente com agentes carcerários, bombeiros e outros, as milícias no Brasil se situam em uma área obscura. Tecnicamente ilegais, mas na prática há muito toleradas, elas gozam de uma relação simbiótica com a polícia. De fato, as operações da polícia contra as gangues nas aéreas urbanas pobres têm criado um vácuo de poder, o qual tem sido preenchido pelas milícias; e, uma vez que um grupo de milícia assume o controle de uma área, a polícia não confronta os seus “colegas”. Sob o pretexto de fornecer segurança e “proteção”, as milícias estabelecem suas próprias estruturas para explorar as comunidades pobres – praticando extorsão e tomando conta do fornecimento de gás, televisão a cabo e conexão de internet. Afirma-se que o controle dos serviços de transporte local é uma atividade bastante lucrativa para as milícias. Em 2005, estimava-se que mais de 100 comunidades pobres se encontravam sob o controle de milícias na cidade do Rio de Janeiro. Apesar de conflitantes entre si, as milícias e as facções criminosas igualmente representam a apropriação violenta do espaço público e dos recursos econômicos dos pobres das áreas urbanas por atores não-estatais. Ironicamente – dado o impacto negativo no gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais dos moradores pobres das cidades –, as milícias conduzem regularmente suas operações a partir de uma associação ou de um centro social da comunidade, o qual se torna um símbolo da sua dominação no local. Também foi relatado que as áreas da cidade que são controladas por milícias tendem a atrair jovens à procura de “oportunidades de emprego” junto a estes grupos. Direitos econômicos, sociais e culturais e o sistema prisional O sistema prisional, discutido na seção 6, tem sido um elemento fundamental para perpetuar a ligação entre pobreza e violência no Brasil e alimentar o fenômeno da criminalização dos pobres. Pobreza, desigualdade e violência, inclusive violência institucional, não apenas levam ao encarceramento, mas também estão presentes para dentro dos muros das prisões; existem no ambiente prisional, mas também junto às famílias dos presos “no lado de fora”. O encarceramento, sem dúvida, traz para a família do preso sério estigma social. Isto, associado ao impacto econômico causado pela perda da capacidade de geração de renda pelo preso, pode levar à situação de extrema precariedade econômica. Se, antes da prisão, o detento era empregado no setor formal, a sua família então tem o direito de exigir uma pequena quantia de apoio financeiro (salário reclusão). Se, por outro lado, ele ou ela recebia sua renda do setor informal – que é o caso da maioria dos cidadãos brasileiros mais pobres – não há tal apoio. Nesse sentido, o modelo de encarceramento atualmente empregado no Brasil serve tão-somente para reforçar a discriminação e aumentar a desigualdade. Há uma fórmula triste, porém simples: os pobres, classificados a priori como “criminosos” em um sistema policial e de justiça nada compassivo, compõem a maior parte da população carcerária (e, novamente, podemos acrescentar outros identificadores paralelos tais como “negros” e “jovens”). Assim, o cárcere só agrava a sua marginalização e a de suas famílias. Enquanto a lei prevê educação e capacitação dos presos para facilitar sua reintegração na sociedade, mais uma vez, na prática, isto não funciona. No Rio de Janeiro, por exemplo, a população de presos condenados em 2007 era de 23.000, dos quais apenas 510 recebiam alguma forma de aperfeiçoamento ou capacitação. Violência contra as mulheres Como ocorre com freqüência, mulheres e crianças nas comunidades pobres não apenas são mais vulneráveis à violência, mas também são suscetíveis a experimentar tal violência de formas específicas ao seu gênero e idade. A seção 7 deste relatório discute como, em muitos casos, mulheres, em particular mulheres pobres, estão ligadas a parceiros violentos por dependência financeira e, especialmente no norte e nordeste do país, por uma visão tradicional das mulheres como propriedade dos homens. Importante ressaltar que a pobreza não é o único fator. Estatísticas demonstram que mulheres brasileiras com mais risco de serem mortas pelos seus parceiros não apenas são “pobres”, como também “jovens” e “negras”. A vulnerabilidade das mulheres frente à violência é agravada pelos desafios que elas enfrentam em procurar assistência. Especificamente, o enfoque deste relatório é a resposta da polícia, que tem sido descrita como “ineficiente, desrespeitosa e, comumente, violenta.” 7 7.SOS Corpo, Violência e Saúde da Mulher, Dados e Análises, III, no. 6, novembro 2007, p. 7.
  10. 10. A criminalização da pobreza no BRASIL 10 A criminalização da pobreza no BRASIL 11 Violência contra defensores de direitos humanos e movimentos sociais A dimensão final da criminalização da pobreza abordada neste relatório diz respeito a estratégias adotadas pela polícia e o sistema de justiça no Brasil para criminalizar os movimentos sociais e os defensores de direitos humanos que buscam proteger e promover os direitos humanos dos pobres, das mulheres, dos afro-brasileiros, dos povos indígenas e das comunidades quilombolas.8 Muitas das organizações que participaram da oficina de um dia em Recife para preparação deste relatório afirmaram que são perseguidas pelo Estado pelo seu envolvimento com direitos humanos, uma assertiva que foi repetida pelos representantes de várias organizações com as quais conversamos no Rio de Janeiro. D. Principais recomendações Um pré-requisito necessário para a promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais no Brasil é o estabelecimento do Estado de Direito em áreas onde o Estado é efetivamente ausente. Este objetivo deve ser alcançado de uma forma planejada e sistemática, e em plena observância dos direitos humanos. Não pode ser alcançado por meios de “mega-operações” e a aplicação do atual modelo de policiamento baseado em confronto agressivo e impunidade para as violações de direitos humanos. Urge implantar um novo modelo de policiamento responsável com uma forte dimensão comunitária. A lista completa de recomendações para o governo do Brasil resultantes deste relatório, incluindo medidas para melhorar o policiamento, encontra-se na seção 10. A mesma inclui recomendações para: • Adotar estratégias mais completas para a proteção dos defensores de direitos humanos, compreendendo-se também defensores de direitos econômicos, sociais e culturais, bem como acabar com a falta de responsabilização do Estado e seus agentes pelas violações de que os defensores são vítimas e oferecer apoio inequívoco para atividades em defesa dos direitos humanos. 8.Quilombolas pertencem a grupos etnicamente ou racialmente distintos cujas origens remontam em parte a comunidades formadas por escravos que fugiram do cativeiro antes da abolição da es- cravatura em 1888. Eles são caracterizados por uma forte identidade cultural, íntima ligação com os seus costumes e tradições e comprometimento com a conservação do seu modo de vida. Estas comunidades possuem ligações distintas a territórios específicos. • Desenvolver uma abordagem holística para eliminar a discriminação e a violência sofridas pelos cidadãos mais carentes do Brasil, inclusive aqueles em áreas de ocupação informal e favelas. As medidas necessárias incluem desenvolvimento econômico e social (criação de emprego, iniciativas de educação, serviços de saúde, melhoria do status da mulher etc) e abertura de espaço para a atuação expressiva da sociedade civil e para a participação das comunidades locais, inclusive no processo de monitoramento. Esta iniciativa deve ser acompanhada dos fundos necessários para sua implementação efetiva. • Introduzir medidas, incluindo também discriminação positiva nos campos de trabalho, capacitação e educação, para assegurar que os brasileiros de origem africana, os povos indígenas, as comunidades quilombolas, os brasileiros que residem em áreas de ocupação informal e favelas e outros grupos vulneráveis à exclusão sócio- econômica possam usufruir de seus direitos econômicos, sociais e culturais sem nenhuma discriminação. Isto implica garantir que eles tenham acesso a serviços básicos, tais como água e saneamento e serviços de saúde e educação de boa qualidade. • Identificar e abordar valores culturais específicos que discriminam e comprometem os direitos humanos das mulheres e crianças, incluindo o direito à proteção contra todas as formas de violência, além de criar oportunidades para que as mulheres possam gerar renda e obter independência financeira. • Disseminar as recomendações do Relator Especial da ONU sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, melhorar as condições de emprego dentro da polícia para desencorajar a corrupção e dar passos firmes para erradicar a prática ilegal do “bico” (segundo emprego do policial). Policiais que não estão no exercício da função em hipótese alguma deveriam ser autorizados a trabalhar para empresas de segurança privada. Para facilitar tais mudanças, os policiais deveriam receber salários consideravelmente mais altos e a estrutura da jornada de trabalho deveria ser reformada para que os policiais não possam trabalhar regularmente por longos períodos de tempo e obter vários dias de folga seguidos. • Assegurar a concreta implementação das provisões constitucionais relativas ao direito à terra e à moradia e promover uma reforma agrária condizente com os princípios enunciados na Constituição Federal. Esta reforma deve tratar do conflito de terras e garantir a distribuição equitativa de terra e o acesso a ela. Elaborar uma política nacional de regularização da ocupação da terra e simplificar a emissão
  11. 11. A criminalização da pobreza no BRASIL 12 A criminalização da pobreza no BRASIL 13 de escrituras, incluindo aquelas referentes a assentamentos rurais e urbanos, terras indígenas e comunidades quilombolas. • Reconhecer que os altos níveis de violência na sociedade brasileira, abrangendo violência de facções criminosas, violência policial e violência contra mulheres e crianças, têm impacto direto na saúde física e mental de muitos brasileiros, e prover serviços médicos, aconselhamento e apoio adequados, especialmente em áreas afetadas pela violência. • Introduzir reformas no sistema prisional para estabelecer condições de vida adequadas para todos os presos, assim como para os jovens nos centros de detenção de menores, e fornecer oportunidades apropriadas de educação e capacitação de qualidade para contribuir com a sua reintegração na sociedade, prevenindo, assim, que as prisões sirvam como fonte de mais crime e violência. • Dar todos os passos necessários para implementar de maneira completa e eficiente a lei federal número 11645/08 sobre a obrigação de incluir o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas do ensino fundamental como meio de superar o preconceito contra os cidadãos brasileiros de origem africana e povos indígenas. E. Trabalhando com o Comitê para causar mudança No final da sua 42ª sessão, tendo analisado o Segundo Relatório Periódico do Brasil sobre a implementação do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e depois de dois dias de diálogo e debate com representantes do governo brasileiro, o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais emitiu uma série de observações e recomendações importantes e abrangentes. Elas foram reproduzidas por inteiro, na sua versão original sem edição, no capítulo 11. Algumas recomendações são particularmente relevantes para o tema do presente relatório e várias delas refletem claramente os problemas levados ao Comitê pelas organizações Justiça Global, MNMMR e OMCT. De acordo com o parágrafo 8, por exemplo, o Comitê expressa profunda preocupação com: a cultura de violência e impunidade prevalente na parte do Estado. Nesse viés, o Comitê está preocupado com os relatos de que defensores de direitos humanos, inclusive aqueles assistindo indivíduos e comunidades para que tenham acesso aosseusdireitoseconômicos,sociaiseculturais,sãoameaçados, assediadosesubmetidosàviolência,freqüentementepormilícias privadascomissionadasporatorespúblicoseprivados.OComitê também está profundamente preocupado com os relatos da falha das autoridades brasileiras em garantir a segurança dos defensores de direitos humanos e processar os responsáveis por cometertaisatos. Isto, a seu turno, leva o Comitê a recomendar que: o Estado adote todas as medidas necessárias para combater a cultura de violência e impunidade prevalente em seu âmbito e assegurar a proteção dos defensores de direitos humanos contra violência, ameaças, retaliação, pressão ou qualquer ação arbitrária como conseqüência de suas atividades. O Comitê recomenda que o Estado melhore a capacitação em direitos humanos dos agentes de segurança, especialmente os policiais, e assegurequetodasasalegaçõesdeviolaçãodedireitoshumanos sejam prontamente e inteiramente investigadas por um órgão independentecapazdeprocessarosresponsáveis. O Comitê, mais uma vez, explicitamente trata da questão da violência ao expressar a sua preocupação de que “papéis negativos de gênero continuam a existir, até mesmo a representação das mulheres como objetos sexuais e os estereótipos tradicionais das mulheres na família e na sociedade, e podem torná-las mais vulneráveis à violência doméstica e outras formas de violência”. No parágrafo 14, o Comitê fortemente recomenda que o Estado brasileiro: reforce sua legislação sobre igualdade de gênero, adote todas as medidas eficazes para superar os estereótipos tradicionais referentes ao status da mulher nas esferas pública e privada e assegure, na prática, a igualdade entre homens e mulheres em todosossetoresdavida[…]. O Comitê também levanta a questão da violência doméstica no parágrafo 21, no qual recomenda que: o Estado fortaleça as medidas para combater a violência domésticacontramulhereseseusefeitospormeiode,entreoutras coisas:(a)reforçoefetivodalegislaçãosobreviolênciadoméstica;
  12. 12. A criminalização da pobreza no BRASIL 14 A criminalização da pobreza no BRASIL 15 (b) fortalecimento de campanhas de consciência pública contra a violência doméstica; e (c) fortalecimento do apoio às vítimas de violência doméstica para assegurar seu acesso a serviços de recuperação,aconselhamentoeoutrasformasdereabilitação. Da mesma forma, o Comitê se preocupa com “a grande incidência de abuso sexual e violência contra crianças, principalmente meninas, e a ausência de informações relativas a medidas adotadas para lidar com este fenômeno ou para assistir crianças vítimas de abuso”. Dentre as suas recomendações, o Comitê incentiva o governo brasileiro a “implementar suas medidas contra o abuso sexual infantil, especialmente o abuso de meninas, através de, entre outras coisas, monitoramento, relatórios, julgamento, bem como campanhas informativas direcionadas a pais, comunidades e crianças”. (par. 22) No tocante ao assédio e, de fato, homicídio de líderes sindicais, no parágrafo 17, o Comitê “recomenda que o Estado adote as medidas adequadas para assegurar a proteção dos membros e líderes sindicais de todas as formas de assédio e intimidação e investigue por inteiro as alegações de qualquer forma de violência.” O Comitê reproduz preocupações contidas neste relatório concernentes ao processo de reforma agrária e à demarcação de terras pertencentes aos povos indígenas, convidando o governo a “rapidamente completar o processo de demarcação e alocação de terras indígenas” (par. 9). O Comitê também está preocupado com a persistência das desigualdades nas condições econômicas, associadas à injustiça social que prevalece no Brasil, e convida o Estado a “intensificar seus reforços para reduzir as desigualdades e injustiças sociais entre diferentes regiões, comunidades e indivíduos” (par. 10). O Comitê recomenda, ainda, que o Estado “tome todas as medidas apropriadas para lidar com a discrepância entre as expectativas de vida e níveis de pobreza das populações negras e brancas através de um enfoque mais incisivo em programas de saúde e erradicação da pobreza para os negros”. (par. 11) Outras questões levantadas pelo Comitê em suas conclusões que são relevantes para o tema da violência na sociedade brasileira e a criminalização da pobreza incluem a persistência das desigualdades raciais no acesso ao emprego (par. 16), o número elevado de pessoas trabalhando no setor informal (par. 19), as limitações do programa Bolsa Família (par. 20), a ampla disseminação do trabalho infantil (par. 23), a vulnerabilidade das crianças moradoras de rua ao abuso e à exploração (par. 24) e o grande número de pessoas residindo em habitações urbanas precárias (par. 25). As recomendações do Comitê visam assegurar que cada cidadão brasileiro desfrute de todos os direitos previstos no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Ao passo que a obrigação de implementar estas obrigações cabe inteiramente ao governo do Brasil, a sociedade civil brasileira, com o apoio de parceiros internacionais, assume a tarefa de monitorar o cumprimento e manter o Comitê informado sobre os progressos realizados. No contexto do presente relatório, é encorajador notar que o governo do Brasil reconhece a importância de dar passos no sentido de solucionar a questão da violência na sociedade brasileira e, em especial, o fenômeno no qual alguns movimentos sociais são criminalizados por suas atividades. Em sua fala de abertura ao Comitê em 6 de maio de 2009, Paulo Vannuchi, ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, confirmou que “ [...] muitas das denúncias feitas com relação à violência no Brasil e a criminalização dos movimentos sociais são particularmente relevantes e levam o poder público a tomar atitudes corretivas”. 9 Os capítulos a seguir analisam esta violência, abordam as suas reais causas e trazem recomendações concretas de como o governo brasileiro deveria proceder com “atitudes corretivas”, em plena observância dos direitos humanos dos seus cidadãos. 9.“[…] muchas de las denuncias hechas sobre la violencia en Brasil y sobre la criminalización de los movimientos sociales son de las más relevantes y inducen los poderes públicos a tomar actitudes correctivas”. Discurso de su excelencia, el Ministro de la Secretaria Especial de los Derechos Humanos de la Presidencia de la República de Brasil, Paulo Vannuchi. Presentación del II Informe Nacional Brasileño referente al Pacto de Derechos Económicos, Sociales y Culturales de las Naciones Unidas, Genebra, 6 de maio de 2009, p. 16.
  13. 13. A criminalização da pobreza no BRASIL 16 A criminalização da pobreza no BRASIL 17 2. A criminalização da pobreza: um resumo É impossível pensar a pobreza, a desigualdade e, sem dúvida, o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais em geral no Brasil sem abordar a questão da violência. Em suma, a violência no Brasil não é incidental à pobreza e à desigualdade, mas um elemento diretamente correlacionado a estes fenômenos. Ser pobre não significa apenas lutar para obter serviços de educação e saúde adequados ou para encontrar trabalho remunerado no setor formal; mas também é enfrentar o risco constante ou repercussões da violência em casa ou nas ruas. Por sua vez, esta violência agrava a exclusão social – crianças têm medo de ir à escola, comunidades são forçadas a deixar seus territórios, a falta de oportunidades incentiva os jovens a se envolverem no tráfico de drogas e em outras atividades ilegais, e homens e mulheres, “manchados pelo crime associado à área onde residem”10 , não conseguem encontrar trabalho. A presença constante da violência em suas mais variadas formas tem também tido impacto na saúde daqueles atingidos por ela. Durante a missão preparatória, Patricia, moradora do bairro de Lins de Vasconcelos no Rio e mãe de três filhos, descreveu como ela tinha sido estuprada quando criança, como o seu pai tinha levado um tiro e como, 13 anos atrás, o seu filho de 3 anos tinha sido morto por uma bala perdida na sua casa. Como resultado destas experiências, ela sofre de ansiedade crônica e ataques de pânico e não consegue ler um jornal ou assistir televisão. Ela agora está fazendo sessões de tratamento em um hospital psiquiátrico. A sua condição fez com que perdesse o seu emprego e ela explicou que não pode mais pagar pelo gás de cozinha e agora usa lenha. Ela ressaltou que, além disso, não sabe de onde virá a próxima refeição para si e seus filhos. O ciclo de pobreza e violência pode ser observado pelo Brasil em uma série de circunstâncias. É evidente na Amazônia, por exemplo, onde os interesses da extração de madeira oprimem violentamente as comunidades indígenas e outras que se opõem ao desmatamento e à invasão de seus territórios por atividades comerciais. Do mesmo modo, este ciclo fica claro em áreas agrícolas do país tais como o estado do Mato Grosso do Sul, onde a promoção de monoculturas de produtos como a soja e a cana-de-açúcar por empresas nacionais e internacionais está levando os agricultores a saírem das terras, e onde os trabalhadores empregados no agronegócio não raro passam 10.Alston, Philip (2008) “Promoção e Proteção de Todos os Direitos Humanos, Civis, Políticos, Econômicos, Sociais e Culturais, Incluindo o Direito ao Desenvolvimento. Relatório do Relator Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, Philip Alston, Adendo, Missão ao Brasil”. UN Doc. A/HRC/11/2/Add.2, 23 de março de 2009, nota de rodapé 10. por condições condizentes com formas contemporâneas de escravidão. O Mato Grosso do Sul é também um dos estados com mais violência contra povos indígenas. Neste relatório, as causas econômicas, sociais e culturais da violência, e, sem dúvida, o impacto da violência na possibilidade de usufruir dos direitos econômicos, sociais e culturais, são examinados especificamente da perspectiva da “criminalização da pobreza”, com particular ênfase nas áreas urbanas do Brasil.11 O termo “criminalização da pobreza” foi utilizado com freqüência tanto pelos representantes da sociedade civil quanto pelas vítimas da violência no curso das entrevistas e reuniões realizadas durante a missão preparatória. Ele se refere a um fenômeno claro e visível em que os membros mais pobres da sociedade brasileira identificados por atores estatais e quase-estatais (a polícia, em especial a polícia militar, agentes do sistema legal, agentes carcerários e milícias) como criminosos ou potencialmente criminosos e, com base nisto, são alvos de extorsão, prisão e detenção arbitrárias, violência física e até mesmo execução sumária. Apesar da pobreza ser um importante identificador social na construção da criminalidade no Brasil, ela não é a única. A condição de ser “pobre” é agravada por alguns outros descritivos que se sobrepõem, tais como ser “jovem” e “negro”. O problema da discriminação racial no Brasil, não raro, passa despercebido, mas, no entanto, está presente em toda a sociedade brasileira: estima-se, por exemplo, que os brasileiros afro-descendentes ganhem menos de 50% da média de salário de outros brasileiros. 12 Outro importante elemento que alimenta a caracterização da criminalização da pobreza está relacionado ao local de residência da pessoa. Muitos dos cidadãos menos avantajados do país moram em áreas urbanas de ocupação informal ou semi-formais – as favelas. Estas áreas são amplamente desprovidas de poder estatal e a violência é uma ocorrência comum. Para muitos brasileiros, as favelas estão associadas de forma intrínseca à criminalidade; não obstante, embora as favelas sejam de fato onde alguns criminososvivem,inclusive,emalgunscasos,facçõescriminosasorganizadas, eles são uma minoria desta população. A prática comum de associar os favelados (residentes das favelas) com a criminalidade, contudo, abastece 11. Embora este relatório enfoque duas cidades grandes em particular – Rio de Janeiro e Recife –, é importante notar que a violência está presente em todas as localidades urbanas, sejam grandes ou pequenas. Na verdade, a violência pode ser bastante aguda em centros urbanos pequenos e iso- lados, onde menos serviços de apoio estão disponíveis, os locais onde estes serviços são prestados têm menos estrutura, os contornos políticos não são tão bem desenvolvidos, a cobrança da opinião pública é menos presente e a consciência acerca de garantias legais e direitos humanos é menor. 12.Bertelsmann Stiftung, 2007, BTI 2008 – Brazil Country Report, Gütersloh: Bertelsmann Stif- tung, p. 14.
  14. 14. A criminalização da pobreza no BRASIL 18 A criminalização da pobreza no BRASIL 19 ações policiais violentas e opressivas contra comunidades inteiras: em todas as grandes cidades do Brasil, a maioria das vítimas de violência policial é residente das favelas. Dentre as músicas utilizadas durante o treinamento do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da polícia militar do estado do Rio de Janeiro, há uma que inclui as seguintes palavras: “Interrogatório é muito fácil de fazer, pegue um favelado e bata nele até doer; interrogatório é muito fácil de terminar, pegue um favelado e bata nele até matar.” A associação de certas categorias econômicas e sociais com a criminalidade é ainda reforçada pelas representações da pobreza produzidas pela mídia. Santo Amaro, uma favela na área de Recife, é comumente descrita na imprensa como “bairro do crack” e até “crackolândia”, de uma maneira que associa todos os seus moradores com o tráfico de drogas. Certos políticos também têm tido um papel na promoção e no reforço destas idéias. Em uma entrevista concedida em 22 de outubro de 2007, Sérgio Cabral Filho, governador do estado do Rio de Janeiro, comentou sobre os benefícios de legalizar o aborto como meio de diminuir a criminalidade: “Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana [bairros brancos de classe média do Rio de Janeiro], é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha [a maior favela do Brasil, localizada na zona sul O carro blindado utilizado pela polícia para entrar em favelas é um símbolo da letalidade policial no estado do Rio de Janeiro. Inspirado no Mello-Yello, utilizado pelo governo da África do Sul na época do apartheid, o ‘Caveirão’ reflete a visão de governantes que encaram comunidades pobres como ‘área de conflito’ e ‘território inimigo’. foto:GustavoMehl–JustiçaGlobal do Rio]. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal.” 13 A idéia de que mulheres pobres são vetores da violência e delinqüência foi reproduzida por José Mariano Beltrame, o Secretário de Segurança Pública no estado de Rio de Janeiro, em julho de 2008: “[O Rio vive] uma cultura [da violência] que o marginal traz do ventre da sua mãe.”14 Esta distorção transforma vítimas da violência das classes mais pobres do Brasil em “criminosos”, uma distorção que é cinicamente manipulada pela própria polícia: homicídios de jovens por tiros de policiais de forma arbitrária nas favelas são oficialmente registrados em “autos de resistência” (como resistência à prisão). Por vezes, isto pode envolver agentes da polícia colocando drogas, um arma ou walkie-talkie no corpo para “confirmar” o envolvimento da vítima com o tráfico de drogas. Nos últimos anos, o número de casos de morte registrados como autos de resistência cresceu dramaticamente. Em 1997, a polícia do Rio de Janeiro registrou 300 civis mortos por autos de resistência, um número que subiu para 427 em 2000 e para 1330 em 2007. O relatório mais recente emitido pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) do estado do Rio de Janeiro aponta um aumento de 9,1% nas mortes registradas como autos de resistência pela polícia nos primeiros seis meses de 2008, comparado ao mesmo período em 2007.15 É claro que os moradores de áreas de ocupação informal e outras comunidades pobres não são vítimas apenas das forças de segurança. Eles são também vítimas de violência das facções criminosas que controlam muitas das áreas mais pobres das cidades brasileiras. Fortemente armadas, e muitas vezes agindo livremente, estes grupos tiram grande parte de sua renda do tráfico de drogas e armas, além dos crimes violentos de rua. As facções também diversificam consideravelmente, atuando em áreas como a de fornecimento de gás, transporte, televisão a cabo e “segurança” para os moradores destes locais. Elas também recorrem à extorsão dos moradores e estabelecimentos, impõem suas próprias “leis” e põem em prática a sua própria forma de justiça. A presença destas facções criminosas, conseqüentemente, traz impactos tanto para a segurança das comunidades locais quanto para o seu bem estar 13.Entrevista para G1: Globo.com, 24 de outubro de 2007, disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00-CABRAL+DEFENDE+ABORTO +CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html 14.Beltrame estava participando de um debate sobre segurança pública organizado pelo jornal Extra. Ao ser criticado pela extremidade do seu comentário, ele deu a seguinte explicação: “O que é extremo é uma mulher que está caminhando na rua com o seu filho e tem que passar por pessoas com granadas e fuzis. Durante décadas o Rio de Janeiro foi construído sobre isso. Isto é o que eu queria dizer”, Folha de S. Paulo, Folha online, 29 de julho de 2008, disponível em: www1.folha. uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u427571.shtml 15.Entre janeiro e julho de 2007, 694 pessoas morreram em decorrência de ações policiais, ao pas- so que no mesmo período em 2008, foram registradas 757 mortes deste gênero. Todos os números são do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, www.isp.rj.gov.br
  15. 15. A criminalização da pobreza no BRASIL 20 A criminalização da pobreza no BRASIL 21 econômico. No relatório sobre a sua visita ao Brasil, o Relator Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias descreve “um contexto significativo de crime organizado” e confirma que a atividade das facções criminosas é, com freqüência, motivada por interesses econômicos: Se o monopólio da atividade criminosa e o monopólio da violência podem ser estabelecidos dentro de uma mesma área, uma organização pode: (a) efetivamente exigir taxas de proteção de estabelecimentos e “impostos” dos moradores; (b) evitar que moradores informem a polícia de suas atividades e, assim, esconder-se em segurança, juntamente com suas drogas e armamento; e (c) impor aos moradores quaisquer outras regras que facilitem suas atividades criminosas.16 A violência que é normalmente direcionada aos pobres das áreas urbanas do Brasil serve para acentuar ainda mais a sua marginalização econômica. Geralmente, eles enfrentam a falta de oportunidades de trabalho e a deficiência na prestação de serviços públicos; e onde estes serviços existem, a sua qualidade é baixa. A relação entre oportunidade sócio-econômica e violência é discutida na seção 3 deste relatório. No curso da missão preparatória, quando indagados acerca do que consideram como elementos essenciais para quebrar o ciclo de violência e pobreza nas áreas de ocupação informal do Brasil, os moradores destas áreas consistentemente enumeraram: (i) a criação de oportunidades de emprego apropriadas no setor formal; e (ii) provisão de educação de qualidade, envolvendo professores qualificados e material adequado. Para que isto aconteça, o Estado de Direito deve ser estabelecido – em plena observância dos direitos humanos – nas áreas urbanas pobres do Brasil, mas é sabido que a atual estrutura, treinamento e modus operandi das forças de polícia brasileiras são completamente inadequados para esta tarefa. 16.Alston, Philip (2008) “Promoção e Proteção de Todos os Direitos Humanos, Civis, Políticos, Econômicos, Sociais e Culturais, Incluindo o Direito ao Desenvolvimento. Relatório do Relator Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, Philip Alston, Adendo, Missão ao Brasil”. UN Doc. A/HRC/11/2/Add.2, 23 de março de 2009, par. 17. 3. Desigualdade e violência no Brasil A. Desigualdade sócio-econômica Brasil, um ator de crescente importância internacional com um produtointernobrutode1.314,2bilhõesdedólaresem2007,aindapermanece como um país marcado por profunda desigualdade. Estima-se, por exemplo, que entre 1995 e 2005, a renda combinada dos 40% mais pobres das rendas familiares brasileiras representava apenas 6% da renda total dos lares do país, enquanto os 20% mais ricos representavam 61% do total da renda familiar do país neste período (a média global para o mesmo período era 19% e 42%).17 Em números divulgados pelo Banco Mundial em 2008, estimava-se que 22% da população do Brasil encontra-se abaixo da linha da pobreza.18 Há diferentes dimensões raciais e de gênero na desigualdade do Brasil e as populações negra, indígena e quilombola são especialmente vulneráveis à exclusão econômica. Em sua análise de 2008, sobre os padrões de vida da população brasileira, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstrou que da população de analfabetos de pouco mais de 14 milhões, quase 9 milhões eram afro-descendentes.19 Além disso, discrepâncias educacionais entre a população branca e a negra tendem a aumentar à medida em que o nível educacional sobe. Na faixa etária entre 15 e 17 anos, 85,2% dos jovens brancos estão estudando e, destes, 58,7% estão matriculados na série apropriada à sua faixa etária (ensino médio). Todavia, dentre os jovens afro-descendentes da mesma idade, 79,8% vão à escola, mas apenas 39,4% destes estão no ensino médio. Na faixa etária entre 18 e 24 anos, esta diferença é ainda mais acentuada: 57,9% dos jovens brancos deste grupo estudam em escola politécnica ou universidade (ensino superior), comparados a apenas 25% dos jovens afro-descendentes.20 As diferenças educacionais, por sua vez, não surtem efeitos em termos de renda: a renda média de um brasileiro de origem africana é aproximadamente 50% da renda de um brasileiro branco. E esta diferença não é inteiramente explicada pelo nível de instrução: ao se comparar o salário por hora de acordo com os 17. Todos os números foram fornecidos pela UNICEF, 2008, The State of the World’s Children 2009, UNICEF, Nova York, p. 118 e 121. 18.Banco Mundial, 24 de setembro de 2008, disponível em: http://devdata.worldbank.org/AAG/ bra_aag.pdf 19. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) utiliza os termos “preta” e “parda” para descrever esta população. 20. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2008) Síntese de Indicadores Sociais. Ama Análise das Condições da Vida da População Brasileira, 2008, Estudos & Pesquisas, no. 23, IBGE, Rio de Janeiro, p. 211
  16. 16. A criminalização da pobreza no BRASIL 22 A criminalização da pobreza no BRASIL 23 anos de estudo, brasileiros brancos ganham consideravelmente mais do que brasileiros afro-descendentes com o mesmo nível de instrução. Outra forma de olhar para isto é de acordo com a renda familiar nos 10% mais pobres e no 1% mais rico da população. A população branca representa pouco mais de 25% da renda total das famílias mais pobres do Brasil, mas 86% dentre as mais ricas. Ao mesmo tempo, a população afro-descendente contribui com 74% da renda das famílias mais pobres e com apenas 12% da renda das mais ricas.21 As disparidades econômicas do Brasil também têm uma dimensão geográfica clara: as taxas de pobreza são particularmente mais altas nas regiões norte e nordeste do país e relativamente baixas nas regiões sul e sudeste, que são mais industrializadas. Não obstante, a desigualdade do Brasil não pode ser apenas explicada por diferenças regionais, já que também se verifica profunda disparidade dentro das regiões sul e sudeste e nas áreas metropolitanas. Grande parte dos pobres das áreas urbanas se encontra nas periferias das grandes cidades brasileiras – em áreas que também são caracterizadas por baixos níveis educacionais, saúde mais precária, condições de trabalho precárias e maiores níveis de desnutrição.22 De fato, o alto nível de urbanização do Brasil – 85% em 200723 – representa um sério desafio no que tange à garantia de serviços e emprego e fornecimento de infra-estrutura para a população urbana do país. A polarização sócio-econômica da população brasileira tem sido, até certo ponto, reduzida pelas reformas introduzidas pela presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, cujo primeiro mandato iniciou em 2003. O desemprego caiu, a pobreza foi reduzida e a disparidade de renda está sendo amenizada. Entretanto, o Brasil ainda possui uma das distribuições de renda mais desiguais do mundo. B. Níveis de violência Com relação à ocorrência de violência no Brasil, e se tomarmos homicídio como um indicador de crime violento em geral24 , a taxa total do Brasil é extremamente elevada. O Relator Especial da ONU sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias reporta que homicídio é a principal causa de morte de pessoas entre 15 e 44 anos de idade. Entre 1980 e 2002, a 21. Ibid., p. 213–214. 22. Diretoria Executiva do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e do Fundo de População das Nações Unidas, “United Nations Population Fund. Country programme for Bra- zil”, UN Doc. DP/FPA/CPD/BRA/4, 9 de outubro de 2006, p. 2. 23.UNICEF, 2008, The State of the World’s Children 2009, UNICEF, Nova York, p. 138. 24.Homicídio é geralmente reconhecido como sendo associado a outros tipos de crime e violência. taxa de homicídio (para cada 100.000 habitantes) quase triplicou – para um pico em 2002 de 30,4% (um total de 49.640 homicídios naquele ano). Os números caíram um pouco nos anos seguintes, para 28.3 em 2004, 27 em 2005 e 25 em 2006, mas permanecem bem acima da média mundial (8,8 para cada 100.000 habitantes em 2000, excluindo mortes relacionadas a guerras, de acordo com a Organização Mundial da Saúde - OMS). Quase 70% dos homicídios no Brasil envolvem armas de fogo.25 Um estudo em 2005 demonstrou que havia aproximadamente 17 milhões de armas de fogo no país, das quais 90% estavam em mãos de particulares. Estima-se que destes, 25% – 3,8 milhões de armas – estejam nas mãos de criminosos.26 De acordo com pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Avançada (IPEA) e o Ministério de Planejamento, Orçamento e Gerência (MPOG), em 2004, o custo total da violência no Brasil, incluindo o custo do cuidado com as vítimas e da reparação dos danos, foi de R$90 bilhões, ou 5% do produto interno bruto do país.27 O estado de Pernambuco, na região nordeste do país, possui uma das taxas de homicídios mais altas no país (53 para 100.000 habitantes em 2005), mas é importante reconhecer que a taxa real de homicídio para alguns outros estados do Brasil, incluindo o Rio de Janeiro e São Paulo, é significativamente mais elevada do que as estatísticas oficiais indicam porque, diferentemente de Pernambuco, elas não incluem as mortes causadas por policiais em serviço. O Relator Especial da ONU sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias informa que no Rio de Janeiro (onde a taxa de homicídio era 40,7 em 2006), policiais em serviço matam três pessoas todo o dia e são responsáveis por algo perto de 18% das mortes totais.28 Se estes números fossem incluídos nas estatísticas de homicídio, o estado do Rio de Janeiro teria uma taxa semelhante àquela de Pernambuco. As áreas metropolitanas do Brasil tendem a apresentar taxas ainda maiores de homicídios: em 2005, a taxa em Vitória, no estado do Espírito Santo, era de 78,2 para 100.000 25. Alston, Philip (2008) “Promoção e Proteção de Todos os Direitos Humanos, Civis, Políticos, Econômicos, Sociais e Culturais, Incluindo o Direito ao Desenvolvimento. Relatório do Relator Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, Philip Alston, Adendo, Missão ao Brasil”. UN Doc. A/HRC/11/2/Add.2, 23 de março de 2009, par. 8. 26. Dreyfus, Pablo; Guedes, Luis Eduardo; Lessing, Ben; Bandeira, Antônio Rangel; Nascimento, Marcelo de Sousa; e Rivero, Patricia Silveira (2008), Small Arms in Rio de Janeiro. The Guns, the Buyback, and the Victims, um estudo da Small Arms Survey, Viva Rio e ISER, publicado em inglês pelo Graduate Institute of International and Development Studies, Genebra, p. 31. 27. Ipea/MPOG citado em Ministério da Saúde (2008), Prevenção de Violências e Cultura de Paz V. III, Painel de Indicadores do SUS, no. 5, Ministério da Saúde, Brasília, p. 10. 28. Alston, Philip (2008) “Promoção e Proteção de Todos os Direitos Humanos, Civis, Políticos, Econômicos, Sociais e Culturais, Incluindo o Direito ao Desenvolvimento. Relatório do Relator Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, Philip Alston, Adendo, Missão ao Brasil”. UN Doc. A/HRC/11/2/Add.2, 23 de março de 2009, par. 9.
  17. 17. A criminalização da pobreza no BRASIL 24 A criminalização da pobreza no BRASIL 25 habitantes, ao passo que em Recife a taxa era de 76,7; no Rio de Janeiro, era de 62,6, e em São Paulo, de 51,7.29 Não é de surpreender que os padrões de violência no Brasil tendam a refletir padrões de exclusão sócio-econômica, tanto regionalmente quanto em termos de grupos vulneráveis. A região nordeste do Brasil possui a taxa mais alta de homicídio em geral, bem como a mais alta taxa de homicídio com arma de fogo, enquanto que a região sul tem a menor. Similarmente, a região nordeste tem a taxa mais alta de homicídio por todos os outros tipos de armas, ao passo que o sudeste tem a menor taxa para esta categoria de homicídio. Discriminação, educação de má qualidade e falta de oportunidades inevitavelmente levam uma proporção dos jovens brasileiros – homens jovens e pobres em especial – a se voltarem para o crime, quer seja crime de rua ou atividades criminosas mais organizadas. Em alguns casos, o envolvimento no crime é visto como um meio de alcançar status econômico e social em um mundo que, do contrário, oferece poucas oportunidades para que um indivíduopossa“deixarsuamarca”.Emoutroscasos,nãoháescolhaconsciente para entrar na atividade criminosa: jovens em Recife contaram como, por exemplo, traficantes repassam quantidades de droga para crianças guardarem e os pais sabem que se comunicarem à polícia, haverá conseqüências letais. Esta estratégia permite que o traficante estenda as redes do tráfico dentro de um determinado bairro trazendo novos recrutas, reforçando o controle sobre os moradores com táticas intimidadoras e dividindo o risco de guardar quantias significativas de droga. Crianças menores de 12 anos, e, portanto, abaixo da idade mínima para responsabilidade penal, também são recrutas atraentes para redes do tráfico porque, se forem parados pela polícia, não podem ser acusados. Inevitavelmente, isto cria um risco real de que a polícia recorra a medidas ilegais para “punir” as crianças ou para obter informações delas. Da mesma maneira, e de acordo com padrões internacionais, jovens com idade entre 12 e 18 anos são sujeitos ao sistema juvenil e não correm o risco de ter uma ficha criminal. Jovens desta faixa etária que são apreendidos pela polícia correm, no entanto, risco de sofrerem violência nas mãos dos policiais e de serem enviados a instituições para menores, nas quais, muitas vezes, as condições são ainda piores do que nas prisões de adultos. No que diz respeito às vítimas de violência, ainda não há estatísticas unificadas no Brasil, embora o IBGE esteja atualmente trabalhando em 29. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, citado por Children and Youth in Organised Armed Violence (COAV), “Estatísticas – Brasil: Taxa de homicídios entre jovens quase dobrou nos anos 90”, disponível em: www.coav.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1385&tpl=pr interview&sid=3 um projeto desta natureza. Contudo, há dados suficientes para confirmar que a imensa maioria das vítimas de homicídio é composta de homens jovens, negros e pobres. Entre 1993 e 2002, o número de pessoas entre as idades 15 e 24 que foram mortas Brasil aumentou em 88,6%, enquanto o número de homicídios na população em geral cresceu em 62,3 (comparado ao crescimento da população de 15,2% no mesmo período).30 A taxa de homicídios entre os afro-brasileiros de idade entre 15 e 24, em 2002, era 68,4 para 100.000 habitantes: 74% mais alto do que a taxa para brasileiros brancos da mesma idade.31 Em Pernambuco, as chances de um jovem negro se tornar vítima de homicídio são cinco vezes maiores do que as de um jovem branco.32 Há o dobro de homicídios de negros em relação aos de brancos no Brasil, e esta proporção vale para homens e mulheres. Em 2006, 29.191 brasileiros negros foram mortos, comparados com 15.220 brasileiros brancos; e, enquanto o risco de se tornar vítima de homicídio está diminuindo um pouco na população branca, ele parece estar estável para a população negra.33 Entre as mulheres negras, o risco de se tornar vítima de homicídio está aumentando: em 2000, a taxa de homicídio entre mulheres negras era 20% 30.Waiselfisz, Julio Jacob (2004) Mapa da violência IV: Os jovens do Brasil, UNESCO, Instituto Ayrton Senna, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Brasília, p. 29–30. 31.Ibid., p. 56. 32. Ibid., p. 58. 33. Ministério da Saúde (2008), Prevenção de Violências e Cultura de Paz V. III, Painel de Indica- dores do SUS, no. 5, Ministéro da Saúde, Brasília, p. 20. Manifestação pública organizada por familiares de vítimas da violência praticada por agentes do Estado – Rio de Janeiro, 2009 foto:GustavoMehl–JustiçaGlobal
  18. 18. A criminalização da pobreza no BRASIL 26 A criminalização da pobreza no BRASIL 27 mais alto do que a das mulheres brancas; em 2006, a taxa de homicídio de mulheres negras estava 71% maior.34 O nível de instrução também é um fator: baseado em números de 2003, o risco de morte por homicídio na faixa etária entre 15 e 59 anos era expressivamente maior entre pessoas com menos de quatro anos de instrução. Dentre os brasileiros brancos com menos de quatro anos de instrução, o risco de ser vítima de homicídio aumenta 2,3 vezes; enquanto para a população negra, o risco aumenta 2,9 vezes. O Relator Especial da ONU sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias confirma que as altas taxas de crime e homicídio afetam desproporcionalmente as classes mais pobres, principalmente os moradores das favelas, e aponta para uma forte correlação negativa entre a renda média e as taxas de homicídio. Em algumas cidades, a taxa de homicídio nos bairros mais pobres é 4,5 vezes maior do que nas áreas mais ricas. O Relator Especial utilizou números do Instituto de Segurança Pública (ISP) para a cidade do Rio de Janeiro que demonstram que, entre 2000 e 2005, as áreas pobres da zona norte 2 e Baixada Fluminense tinham taxas de homicídio de 56,8 e 55,2 para 100.000 habitantes, respectivamente, enquanto a área rica da zona sul tinha uma taxa de 12,6.35 As discrepâncias entre os bairros ricos e pobres, tanto em relação às condições sócio-econômicas quanto à prevalência de violência, são comumente agravadas pela proximidade física destas áreas. Em muitas cidades, e mais notadamente no Rio de Janeiro, bairros ricos e favelas coexistem lado a lado, aumentando as preocupações da classe média com a falta de segurança e incentivando o uso de empresas de segurança privada, o surgimento de condomínios murados protegidos por grades de segurança, a construção de shopping centers fechados e o abandono dos espaços públicos. Residentes de Santo Amaro, no Recife, contaram como, quando o grande Tacaruna Shopping Center foi construído no terreno adjacente, um muro de dois metros de altura foi levantado em volta do bairro, além dos limites de segurança estabelecidos ao redor do shopping. Os moradores consideram tal iniciativa como uma forma evidente de exclusão espacial – e visual. C. A resposta do governo para a pobreza e a violência O Brasil provou ser relativamente eficaz em termos de 34. Ibid. 35. Alston, Philip (2008) “Promoção e Proteção de Todos os Direitos Humanos, Civis, Políticos, Econômicos, Sociais e Culturais, Incluindo o Direito ao Desenvolvimento. Relatório do Relator Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, Philip Alston, Adendo, Missão ao Brasil”. UN Doc. A/HRC/11/2/Add.2, 23 de março de 2009, nota de rodapé 10. desenvolvimento de estruturas legais e políticas públicas para lidar com questões econômicas, sociais e culturais e, com efeito, é geralmente considerado como um modelo internacional neste aspecto. Durante a missão preparatória, porém, afirmou-se que o governo, em inúmeras situações, tem tido dificuldades em cumprir tais leis e políticas. Em decorrência disto, poucas destas surtiram o efeito pretendido nas vidas dos cidadãos brasileiros. Deste modo, geralmente faltam canais para a participação efetiva da sociedade civil na elaboração destas políticas, bem como falta transparência neste processo. Por exemplo, o comprometimento do Brasil com orçamentos participativos é amplamente admirado e, de certa forma, esta admiração é justificada. Mas, ao mesmo tempo, as organizações da sociedade civil relatam que, na prática, a mobilização necessária de todos os atores que deveriam estar envolvidos na elaboração do orçamento é habitualmente ignorada e as decisões orçamentárias são tomadas em geral a portas fechadas. Com relação à redução da pobreza, uma das iniciativas mais conhecidas é o programa Bolsa Família. Ele consiste num programa de transferência condicional de dinheiro que fornece uma contribuição financeira mensal para as famílias que enviam seus filhos à escola (no máximo três filhos). O programa foi citado repetidamente pelos indivíduos entrevistados durante a missão preparatória como a única maneira de garantir que iriam poder comprar comida e roupas para seus filhos; embora este mecanismo seja certamente importante para garantir a subsistência dos cidadãos brasileiros mais carentes, ele é produto de uma política social que foi apenas parcialmente desenvolvida. Na prática, o programa Bolsa Família continua sendo uma iniciativa isolada, sem o acompanhamento de medidas complementares que introduziriam uma dimensão sustentável necessária. Em 2007, o presidente Lula anunciou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), direcionado a acelerar o desenvolvimento econômico do país. O PAC enfatiza o investimento público em setores-chave da economia e inclui a criação de um fundo para projetos de infra-estrutura, juntamente com redução de impostos em determinados setores no intuito de gerar investimento. O apoio dado pelo PAC para projetos de infra-estrutura e outros de grande desenvolvimento provocou sérias preocupações relativas a violações de direitos humanos, sobretudo nas comunidades indígenas e quilombolas que vem sendo obrigadas a deixar suas terras – muitas vezes sem qualquer alternativa ou compensação adequada – para dar lugar a usinas hidrelétricas e outros projetos. O PAC também promoveu investimento, há muito necessário, em infra-estrutura nas favelas brasileiras; no entanto, mais uma vez, falta real participação comunitária nessas iniciativas e, em certos casos, elas levaram a deslocamento e evicções forçadas. Iniciativas para
  19. 19. A criminalização da pobreza no BRASIL 28 A criminalização da pobreza no BRASIL 29 melhorar a segurança e reduzir a violência têm incluído medidas para reduzir o número de armas de fogo nas ruas, inclusive o Estatuto do Desarmamento, lei nº 10.826 de 2003, a qual tornou ilegal o porte arma sem licença e exige que todas as armas sejam registradas. Mais recentemente, um passo importante foi dado para a proteção das mulheres contra violência com a lei federal nº 11.340, conhecida como a Lei Maria da Penha36 , em 7 de agosto de 2006. Esta lei define a violência contra mulher, identifica os serviços apropriados para lidar com essa questão e estabelece mecanismos para a responsabilização do ofensor. Inclui um aumento da pena máxima para os responsáveis pela violência doméstica de um para três anos, assim como medidas tais como remoção do violador de casa, proibição de se aproximar da vítima ou imposição de prisão preventiva quando tiver havido ameaças contra a integridade física da mulher. A introdução desta lei também foi importante para criar consciência acerca do problema da violência contra as mulheres na sociedade brasileira. Ela também teve impacto no procedimento nas delegacias de polícia: de outubro de 2006 a maio de 2007, 32.630 inquéritos foram iniciados – uma média de 177 para cada Delegacia Especializada de Atendimento a Mulher.37 Para abordar as reais causas da violência que permeia a sociedade brasileira, o governo desenvolveu uma resposta na forma do PRONASCI (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), o qual busca articular políticas de segurança pública com ação social. De acordo com o governo, o PRONASCI, lançado em 2007, é voltado para o treinamento dos agentes responsáveis pela segurança pública, a reestruturação do sistema prisional e o envolvimento comunitário na prevenção da violência. Para este fim, une os governos dos estados e municípios, ONG’s e organizações internacionais.38 O PRONASCI é formado por um total de 94 elementos, os quais operam do nível nacional ao comunitário. Estes incluem: • um fundo para treinar os profissionais de segurança pública para trabalhar e atuar com as comunidades locais; • treinamento da polícia em tecnologias não-letais, técnicas investigativas, técnicas periciais, princípios de direitos humanos etc; 36.Maria da Penha, que deu nome à lei, viveu por seis anos com um marido violento que tentou matá-la em duas ocasiões diferentes – primeiro com uma arma de fogo, depois por eletrocução e afogamento. Em conseqüência, ela ficou paralítica. 37.Ministério da Saúde (2008), Prevenção de Violências e Cultura de Paz V. III, Painel de Indica- dores do SUS, no. 5, Ministério da Saúde, Brasília, p. 45. 38. Ver a documentação sobre o PRONASCI fornecido pelo Ministério da Justiça do governo fed- eral, disponível em: www.mj.gov.br/pronasci/data/Pages/MJF4F53AB1PTBRIE.htm • capacitação para mulheres líderes comunitárias (Mulheres da Paz); • treinamento de jovens pelas Mulheres da Paz (“efeito cascata”) e equipes multidisciplinares, que se dirigirão a outros jovens e suas famílias para promover cidadania; • criação de locais especiais no sistema penitenciário para grupos específicos, em especial jovens dentre 18 e 24 anos, e mulheres, além de treinamento dos agentes carcerários; • fornecer moradia para os profissionais de segurança pública de renda baixa; e • Fortalecer parcerias entre ministérios para promover ações sociais e reduzir a violência. A abordagem holística da violência, do policiamento e de atividades sociais inerente ao PRONASCI é certamente a base sobre a qual iniciativas eficazes podem ser construídas. No entanto, o PRONASCI já provocou sérias preocupações na sociedade civil brasileira por causa da falta de transparência associada ao seu desenvolvimento. A sociedade civil afirma que, apesar da retórica do governo, o PRONASCI é uma iniciativa que vem de cima para baixo cujos elementos essenciais foram determinados sem consulta significativa. De fato, diz-se que o PRONASCI foi desenvolvido em grande parte dentro no Ministério da Justiça sem a participação explícita de outros ministérios tais como o de Desenvolvimento Social ou o de Planejamento, ou a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Ademais, apesar de as preocupações gerais do PRONASCI serem conhecidas, muitos dos seus detalhes ainda permanecem obscuros, inclusive as questões relativas à unificação das três forças de polícia no Brasil e a independência das ouvidorias e do Instituto Médico Legal. Semelhantemente, iniciativas para reduzir os níveis de homicídios perpetrados pela polícia são abordadas de forma inadequada e nenhuma medida é prevista para afastar policiais que estão sendo investigados por homicídio.Comrelaçãoàsuaimplementação,nãohágarantiasdequeosatores participantes do PRONASCI irão deter poder real de decisão. Organizações de mulheres também têm expressado séria preocupação de que a dimensão de Mulheres da Paz – onde mulheres são nomeadas líderes comunitárias e, em contrapartida, treinam jovens locais – estaria distorcendo a obrigação do Estado de adotar medidas para proteger e promover os direitos das mulheres por meio do recrutamento das próprias mulheres como “agentes do Estado”. Além disso, não há um prazo para a implementação de muitas das medidas incluídas no programa, e não foram estabelecidos objetivos específicos e
  20. 20. A criminalização da pobreza no BRASIL 30 A criminalização da pobreza no BRASIL 31 dotações orçamentárias. No sistema federal do Brasil, os governos estaduais desempenham papelfundamentalnaabordagemdaviolência.Parapegarumexemplo,oplano de segurança pública desenvolvido pelo estado de Pernambuco e conhecido como “Pacto pela Vida” traz uma combinação de medidas de curto, médio e longo prazo que visam reverter o aumento de crimes violentos no estado, e especialmente crimes com conseqüências letais. O objetivo básico é reduzir os níveis de mortalidade como resultado de violência intencional em 12% ao ano. O Pacto se fundamenta nas seguintes idéias: • incorporação de uma perspectiva de direitos humanos nas políticas e práticas de segurança pública; • introdução de melhores técnicas de policiamento, incluindo coleta de inteligência e investigação, e medidas sociais com a finalidade de prevenir violência; • coordenação de todos os elementos do governo do estado envolvidos em aspectos de segurança pública; • incorporação de mecanismos de gerência, monitoramento e avaliação em todos os níveis; e • participação da sociedade civil desde a formulação de estratégias até a execução de ações de segurança pública.39 O impacto desta e de outras iniciativas similares depende não apenas da disponibilidade de recursos, mas também da vontade política de assegurar a implementação e monitoramento contínuo. Além disso, é essencial que se dê espaço e oportunidade para a sociedade civil participar expressivamente dessas iniciativas e ter influência sobre elas. 39.Fórum Estadual de Segurança Pública (2007) Pacto pela Vida. Plano Estadual de Segurança Pública, Governo de Pernambuco, Recife, p. 13. 4. Violência policial contra os pobres No Brasil, e notoriamente no Rio de Janeiro, a ação policial nas comunidades pobres revela sistemáticas violações de direitos humanos. Os casos repetidos de execuções sumárias e uso desproporcional da força por agentes do Estado, assim como o modelo de mega-operações policiais, inserido na política de segurança pública, evidenciam a trágica repetição de práticas que naturalizam as violações de direitos humanos e que são também criminalizadoras da pobreza. O Anexo 2 apresenta uma seleção de manchetes de jornais que noticiam casos de execuções sumárias praticadas pela polícia do Rio de Janeiro, no ano de 2007, e ilustra o uso comum de violência excessiva, revelando que isto se torna uma característica na vida cotidiana dos cidadãos brasileiros. Na verdade, o uso de força letal se tornou muito freqüente, e as forças policiais do Rio de Janeiro consideram o elevado número de mortes como Moradores do conjunto de favelas da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, fazem manifestação após a morte do jovem estudante Felipe dos Santos, em abril de 2009. Felipe conversava com amigos a poucos metros da porta de sua casa quando foi atingido na cabeça por um tiro de fuzil disparado por policiais foto:GustavoMehl–JustiçaGlobal
  21. 21. A criminalização da pobreza no BRASIL 32 A criminalização da pobreza no BRASIL 33 um padrão de eficiência.40 Os mais afetados pela violência são os moradores de bairros mais pobres da cidade, que não têm assegurados os direitos econômicos, sociais e culturais estabelecidos nas normas internacionais e na Constituição brasileira. Relativizando a aceitabilidade das operações policiais em diferentes áreas do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, o secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, declarou à imprensa que “um tiro em Copacabana é uma coisa, um tiro no Complexo do Alemão é outra”.41 Na diferenciação entre o significado e o impacto das ações por policiais armados em uma área rica do Rio de Janeiro e de uma favela 40. Além das sérias violações de direitos humanos associadas a esta política, não há evidência de que ela seja bem sucedida no combate ao crime. Dados oficiais do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ver http://www.isp.rj.gov.br) mostram que, de janeiro a setembro de 2007, 961 pessoas foram mortas por ações da polícia, uma média de sete mortes a cada dois dias. Isto indica um crescimento de 154 mortes, ou 19%, em relação ao mesmo período em 2006. Como o número de mortes cresceu, o número de apreensões caiu. De 1º de janeiro a 30 de setembro de 2007, a polícia prendeu 10.215 suspeitos, em comparação a 13.109 no mesmo período em 2006. Houve também redução na apreensão de drogas: 7.062 casos foram registrados de janeiro a setembro de 2007, em comparação a 8,450 casos no mesmo período no ano anterior. Semelhantemente, um número menor de armas foi apreendido: 7.770 em comparação a 10.233 – uma queda de 2.463. 41.Folha de S. Paulo, “Para o Secretário, um tiro em Copacabana ‘é uma coisa’ e no Complexo do Alemão, ‘é outra’”. 24 de outubro de 2007, disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ ff2410200728.htm Matheus Rodrigues, de apenas oito anos, saía de casa para comprar pão no momento em que policiais entravam no conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, em 2008. O menino foi atingido na cabeça por um tiro de fuzil disparado por policiais militares. Matheus caiu segurando a moeda de um real que sua mãe havia lhe dado foto:NaldinhoLourenço–AgênciaImagensdoPovo conhecida, o secretário de Estado parece sugerir que os cidadãos que vivem em comunidades pobres não dispõem dos mesmos direitos ou status que aqueles moradores de bairros mais ricos da cidade. Durante a missão preparatória, ouvimos o testemunho de várias pessoas que perderam membros da família durante operações policiais arbitrárias e violentas. Luis, um residente do Complexo de Acari - comunidade com cerca de 40.000 habitantes na cidade do Rio de Janeiro que possui um dos maiores índices de pobreza no estado - contou que seu filho de 3 (três) anos de idade foi morto em 1996 por um tiro na cebeça disparado pela polícia: “Quando eles [os policiais militares] entram na favela, é para matar. Há sempre uma vítima.” E quando a vítima é pobre, raramente o crime é investigado e os envolvidos, responsabilizados. Os pobres enfrentam graves dificuldades para ter acesso à assistência jurídica, e o sistema de justiça é muito lento, especialmente quando os pobres são partes interessadas. Em se tratando de crimes cometidos pela polícia, verifica-se um alto grau de impunidade: casos de execuções sumárias e outros atos de violência raramente são levados à Justiça, e quando alguma vítima ou familiar decide denunciar os abusos praticados pela polícia, via de regra torna-se alvo de mais ameaças e retaliações. É importante destacar que os altos níveis de violência policial em certos bairros comprometem ainda mais os direitos econômicos, sociais e culturais dos moradores locais. Relatórios da sociedade civil mostram que as operações policiais impedem que crianças e jovens frequentem as escolas; dificultam o acesso de moradores ao trabalho e provocam o fechamento de postos de saúde. A Plataforma de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais do Brasil (Plataforma DhESCA - Brasil), no âmbito do Relatório Nacional sobre o Direito Humano à Educação, realizou uma missão de investigação no Complexo do Alemão em 2007, após denúncias relativas à violação do direito à educação. A Plataforma confirmou a extrema vulnerabilidade da comunidade no que diz respeito ao acesso à educação e apontou para o fato de que as escolas da região estão sujeitas diariamente ao impacto da violência. O relatório concluiu que: “É fundamental apostar em um conjunto de políticas articuladas que melhorem as condições de vida da população”.42 As desigualdades econômicas e sociais estão intimamente ligadas ao tratamento que os cidadãos mais pobres do Brasil recebem nas mãos da polícia. 43 As forças policiais do país são mal treinadas e recebem baixos salários. No caso da polícia militar, os requisitos de escolaridade para ingresso 42.Plataforma DhESCA – Brasil. Violação dos Direitos educativos da comunidade do Complexo do Alemão. Curitiba, 2008. 43. No Brasil, há três forças policiais – a polícia federal e a polícia civil comandada pelos estados, as quais são responsáveis pelas investigações criminais, e a polícia militar, que cuida da ordem nas ruas e contribui para a segurança das prisões.
  22. 22. A criminalização da pobreza no BRASIL 34 A criminalização da pobreza no BRASIL 35 na corporação exigem apenas a conclusão do ensino fundamental. Isto significa que, em geral, os policiais são provenientes dos setores mais pobres da sociedade e, portanto, pertencem ao mesmo grupo sócio-econômico das principais vítimas da violência do Estado. Policiamento é considerado menos uma profissão do que um meio regular de ganhar um salário, ainda que modesto. Inevitavelmente, muitos acabam envolvidos com corrupção. Moradores da comunidade de Santo Amaro, a maior favela da cidade de Recife, informaram durante a missão preparatória que conheciam de vista e pelo nome três ou quatro policiais envolvidos com o fornecimento de armas para gangues locais. Em muitos casos, estes oficiais simplesmente revendem armas que foram apreendidas em operações policiais anteriores. Outros policiais, em virtude de seus baixos salários, acabam por exercer outros empregos, geralmente atuando como seguranças particulares. Embora esta prática - conhecida como bico - seja proibida, é ampla e abertamente reconhecida pelas autoridades. O bico cria um espaço onde policiais - funcionários do Estado - “privatizam” as suas atividades, burlando as normas de conduta ética da profissão. A organização Human Rights Watch informou que, no ano de 2008, 70% de todos os homicídios praticados no estado de Pernambuco foram cometidos por esquadrões da morte que possuem policiais entre os seus membros.44 O grau de impunidade destes grupos pode ser percebido pelo fato de que eles usam uniformes para serem identificados. Segundo relatos colhidos na missão preparatória em Pernambuco, membros de um determinado grupo vestem camisetas com a seguinte frase: “Mamãe cria e nós matamos”. A. Autos de resistência No estado do Rio de Janeiro, os assassinatos cometidos pela polícia, sempre justificados pela resistência oferecida pelo suspeito (e registrados como autos de resistência pela polícia civil) causam especial preocupação, e estão ligados diretamente ao tema das execuções sumárias. O Relator Especial da ONU sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, no relatório preliminar de sua visita ao Brasil realizada em novembro de 200745, expressou grande preocupação com o uso da categoria auto de resistência para designar as mortes provocadas pela polícia: 44.Human Rights Watch, World Report 2009 – Brazil, 14 de janeiro de 2009, UNHCR Refworld, disponível em: www.unhcr.org/refworld/docid/49705faa78.html 45. O Relator Especial esteve em missão no Brasil entre 4 e 14 de novembro de 2007 e visitou São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro e Distrito Federal (Brasília). Na maioria dos casos, mortes causadas por policiais em serviço são registradas como ‘autos de resistência’ ou casos de ‘resistência seguida de morte’. Em 2007, no Rio de Janeiro, a polícia registrou 1330 ‘autos de resistência’, uma figura que representa 18% do número total de homicídios no Rio de Janeiro. Em teoria, há circunstâncias em que a polícia usou força necessária e proporcional em resposta à resistência de suspeitos de crime a ordens de oficiais encarregados da segurança. Na prática, o quadro é radicalmente diferente. A determinação sobre se uma execução extrajudicial é uma morte dentro da lei é feita primeiramente pelo próprio policial. Raramente as auto-classificações são seriamente investigadas pela polícia civil. Eu recebi várias alegações bastante críveis de que homicídios ‘por resistência’ seriam de fato execuções extrajudiciais. Isto é reforçado por estudos de relatórios de autópsias e pelo fato de que a taxa de civis mortos pela polícia é surpreendentemente alta. 46 A categoria auto de resistência não possui embasamento no Código Penal e afirma-se que foi criada justamente para evitar classificar as mortes provocadas pela polícia como crimes de homicídios dolosos. Por isso, o número oficial de homicídios informado pela polícia civil do estado não inclui os assassinatos cometidos por policiais em serviço47 . Há, portanto, uma clara distorção das estatísticas de homicídios no estado do Rio de Janeiro, já que o número de pessoas mortas em operações policiais é extremamente alto. A grande maioria dos casos acontece na região metropolitana do Rio de Janeiro. Não existem registros de nenhuma outra área metropolitana no mundo onde as intervenções policiais causem um número comparável de vítimas. O número de autos de resistência cresce anualmente, tendo sido particularmente dramático no ano de 2002 e novamente em 2007. Nesse ano de 2007, 1.330 pessoas foram mortas pela polícia, uma cifra superior à taxa 46. Alston, Philip (2008) “Promoção e Proteção de Todos os Direitos Humanos, Civis, Políticos, Econômicos, Sociais e Culturais, Incluindo o Direito ao Desenvolvimento. Relatório do Relator Especial sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias, Philip Alston, Adendo, Mis- são ao Brasil (4–14 novembro 2007)”. UN Doc. A/HRC/8/3/Add.4, 14 de maio de 2008, par. 10. 47.Relatório da sociedade civil para o relator especial da ONU para execuções sumárias, arbi- trárias e extrajudiciais. Rio de Janeiro, 2007.
  23. 23. A criminalização da pobreza no BRASIL 36 A criminalização da pobreza no BRASIL 37 de homicídios de vários países de tamanho similar ao Brasil. Vale lembrar que essas cifras correspondem a casos em que os policiais registram suas ações. O número real de mortes (inclusive de “desaparecimentos”) perpetradas por policiais deve ser significativamente superior, já que em muitos casos os policiais não registram os fatos. Além disso, a figura do auto de resistência não abarca aqueles homicídios dolosos de caráter particular cometidos por policiais (disputas interpessoais, violência doméstica etc.). A letalidade policial no Rio de Janeiro é elevada não apenas em termos de qualquer comparação internacional, mas também em relação a outros estados do Brasil. Dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública revelam que, no ano 2000, o Rio de Janeiro apresentava a maior taxa de mortes de civis em intervenções de policiais militares para cada mil policiais, entre todos os estados considerados. Por sua vez, os mesmos registros da Secretaria Nacional de Segurança Pública indicam que o Rio de Janeiro ficava atrás apenas do Distrito Federal em número de mortes geradas por policiais militares em serviço para cada 100 mil habitantes48. Esses números, extrapolados ao longo dos anos em que dura a carreira média de um policial, implicam que uma fração significativa dos policiais do Rio de Janeiro passará pela experiência de matar uma pessoa ao longo de sua vida profissional. Esse fato tem profundas implicações tanto para a cultura policial quanto para os 48.Ibid., p.9. O filho de Márcia Jacintho, Hanry Silva Gomes, tinha 16 anos quando foi seqüestrado por policiais e executado com um tiro no peito a queima roupa em uma favela do Rio de Janeiro, em 2002. O crime foi registrado como ‘auto de resistência’ e só foi investigado graças à luta incansável de Márcia. Dois policiais foram condenados pelo assassinato foto:GustavoMehl–JustiçaGlobal níveis de estresse a que os policiais estão submetidos. Naprática,acategoriaautoderesistênciaconsisteemummecanismo destinado a garantir a impunidade do policial responsável pelo crime. Ao investigar a eficácia da Justiça Militar no Brasil, o sociólogo Ignácio Cano indica que ela “é incapaz de controlar e punir os abusos de utilização da força letal por parte dos policiais militares e os crimes que possam ser cometidos no uso da mesma.” 49 Ainda hoje não existem mecanismos que possam investigar com isenção e autonomia os casos de abuso da força cometidos pela polícia. Dessa maneira, a utilização do termo auto de resistência funciona como procedimento sistemático para inviabilizar investigações autônomas da atividade policial. B. Mega-operações no Complexo do Alemão e Coréia, Rio de Janeiro A estratégia de segurança pública em curso no Rio de Janeiro envolve o uso de operações policiais militares de grande escala, justificadas no combate ao tráfico de drogas nas favelas da cidade. Ao identificarem bairros inteiros como alvos, essas mega-operações, que utilizam carros blindados e helicópteros, além de policiais fortemente armados e soldados, representam o agravamento de uma política de criminalização da pobreza. Essas operações causam um elevado número de mortes de civis devido à ação indiscriminada da polícia, e já se mostraram ineficazes para atingir o objetivo anunciado de reduzir ou eliminar o crime organizado, incluindo o tráfico de drogas e armas. Um caso emblemático é o da mega-operação policial realizada na comunidade do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, em 27 de junho de 2007. Esta envolveu mais de 1.300 homens das polícias militar e civil e soldados da Força Nacional. Como conseqüência da ação policial, 19 pessoas foram assassinadas, com um total de 78 tiros desferidos, sendo 32 disparados pelas costas das vítimas.50 Os laudos apresentados demonstram que as pessoas assassinadas foram atingidas em regiões vitais, o que comprova que não houve a intenção de imobilizá-las, mas sim de executá-las. O Anexo 3 apresenta uma lista completa dos cidadãos brasileiros mortos nesta operação policial e indica o tipo de lesão constatada em cada um deles através dos laudos elaborados por peritos independentes designados pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH). Os peritos independentes acionados pela SEDH foram conclusivos em assinalar que: “várias das mortes decorrem de 49.Cano, Ignácio (1997), Letalidade da Ação Policial no Rio de Janeiro, ISER, Rio de Janeiro, p. 33. 50.“Laudos trazem indícios de espancamento, diz OAB.” Jornal O Globo, de 6 de julho de 2007.