Quando um julgamento vai a juri popular

Cada Vara Criminal possui uma lista de cidadãos aptos a fazerem parte do sorteio de participação do júri popular. Nomes de 25 pessoas são depositados em uma urna e sete deles são aleatoriamente selecionados pelo juiz em frente do advogado de defesa e do promotor. Tanto a defesa quanto a acusação podem rejeitar até três desses nomes, havendo sorteio de substituição, até que sejam definidos os sete jurados finais.

Levado às telas de cinema em inúmeros filmes que o tornaram célebre, o Tribunal do Júri desperta a curiosidade de muitas pessoas que têm interesse em conhecer como funciona o sistema em que pessoas comuns da sociedade, não especialistas em Direito, decidem a sentença de acusados de crimes graves. Previsto na Constituição Federal de 1988 e regulamentado pelo Código de Processo Penal, o Tribunal do Júri é bastante antigo no Brasil, tendo sido criado em 1822 e previsto constitucionalmente pela primeira vez em 1824. Durante o ano de 2020, foram realizadas 473 sessões do Tribunal do Júri no Paraná (registros do Pro-MP, com destaque para o fato de que, durante boa parte do ano passado, os júris estiveram suspensos por conta da pandemia de Covid-19). O promotor de Justiça Paulo Sergio Markowicz de Lima, que integra o Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça Criminais, do Júri e de Execuções Penais, explica as razões históricas para o seu surgimento. “A participação popular na Justiça ocorre desde a Grécia antiga. Mas, na modernidade, o Tribunal do Júri surge como uma forma de participação popular no Judiciário, tendo tomado corpo a partir de reações ao absolutismo e à concentração do poder nas mãos de poucos, como na figura de um monarca ou mesmo das oligarquias, o que impedia a participação das demais estratos da sociedade na tomada de decisões”.

Crimes contra a vida – Mas quais são os crimes julgados pelo Tribunal do Júri? Somente aqueles que se caracterizam como dolosos contra a vida, ou seja, em que o autor possui a deliberada intenção de cometê-lo, ou que assumiu o risco de produzir a morte (dolo eventual), sejam eles tentados ou consumados. De acordo com a legislação brasileira, são eles: homicídio, infanticídio, aborto e induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio. Paulo Markowicz explica as razões para tal definição. “São crimes de gravidade sensível e que afetam sobremaneira a sociedade, atingindo-a em seu bem mais valioso, que é a vida. E daí a importância de que a própria comunidade decida se determinada conduta deve resultar ou não na perda da liberdade de uma pessoa”.

Quando um julgamento vai a juri popular
Composição – O Tribunal do Júri é composto por um juiz que o preside e sete jurados que compõem o Conselho de Sentença, escolhidos entre um grupo de 25 pessoas previamente convocadas pela Justiça. Para o cadastramento dos jurados, o juiz-presidente de cada comarca elabora, anualmente, uma lista com nomes de pessoas que podem ser convocadas para participarem dos julgamentos. A relação é composta por nomes indicados por autoridades locais, órgãos públicos, associações de classe e de bairro, instituições de ensino, entre outros, mediante solicitação da Justiça. Na foto ao lado, o Tribunal do Júri em Curitiba.

Podem participar do Tribunal do Júri os maiores de 18 anos, que não tenham antecedentes criminais e estejam em dia com suas obrigações eleitorais e no gozo de seus direitos políticos. O número de jurados cadastrados varia de acordo com a população de cada localidade. Nas comarcas com mais de 1 milhão de habitantes, são alistados pelo presidente do Tribunal do Júri de 800 a 1,5 mil jurados; naquelas com mais de 10 mil habitantes, de 300 a 700, e nas de menor população, de 80 a 400 pessoas são cadastradas anualmente. A relação dos jurados é publicada pela Justiça no mês de outubro de cada ano. Para garantir a isenção das decisões, a legislação elenca algumas situações de impedimento. Não podem participar do mesmo conselho de sentença: marido e mulher, ascendente e descendente, sogro e genro ou nora, irmãos e cunhados, tio e sobrinho e padrasto, madrasta e enteado. Também fica impedido quem tenha manifestado prévia disposição para condenar ou absolver o condenado e, ainda, que tenha trabalhado como jurado em outro julgamento do mesmo processo (por exemplo, em caso de mais de um réu com julgamentos separados ou novo julgamento de um mesmo caso). Diferente de outros países, onde a decisão ocorre mediante discussão e deliberação conjunta entre os jurados, no Brasil os integrantes do Conselho de Sentença não se comunicam entre si e, ao final das exposições da promotoria e da defesa, manifestam sua decisão individualmente e em sigilo, escolhendo cédulas contendo as palavras “sim” e “não”, sendo a decisão computada pela maioria dos votos (respostas) às perguntas feitas pelo juiz. A procuradora de Justiça Lucia Inez Giacomitti Andrich, que atuou por 14 anos no Tribunal do Júri de Curitiba, sendo a primeira mulher a ser designada para tal função na capital, destaca a responsabilidade da decisão dos jurados. “É uma responsabilidade muito grande. Em um tempo relativamente curto, o jurado escuta argumentos contrários e favoráveis à condenação e à absolvição do réu e toma a decisão, considerando também seus próprios valores e convicções”, comentou. A mesma avaliação é feita por Paulo Markowicz. “Por exemplo, um jurado cujo parente cumpriu pena por um crime poderá ser condescendente com o réu. Mas, como no júri temos sete pessoas, há uma dissociação de idiossincrasias e experiências pessoais, existindo maior probabilidade de um julgamento mais imparcial”. O promotor de Justiça Ricardo Alves Domingues, que atuou no Tribunal do Júri em Londrina por seis anos, destaca a importância e a repercussão dos julgamentos feitos por cidadãos comuns, especialmente nas cidades distantes dos grandes centros. "Os crimes dolosos contra a vida abalam a tranquilidade das pequenas cidades e o júri popular permite que os próprios cidadãos participem ativamente das decisões judiciais referentes aos crimes cometidos. Desse modo, o Tribunal do Júri contribui decisivamente para a promoção da segurança pública nas pequenas comunidades", afirmou.

Última palavra – Outra característica do Tribunal do Júri está relacionada ao princípio da soberania das votações, o que significa que a decisão dos jurados é a última palavra sobre a condenação ou absolvição do acusado. As únicas situações que podem motivar a anulação de um julgamento ocorrem quando há um descumprimento de alguma regra processual – como, por exemplo, a utilização pela promotoria ou pela defesa de uma prova que não estava integrada antecipadamente ao processo – ou quando a decisão do conselho de sentença é manifestamente contrária à prova dos autos. Sobre a última hipótese, o promotor de Justiça, Paulo Markowicz de Lima, exemplifica: “Foi o que ocorreu, por exemplo, no primeiro júri, que durou 34 dias e aconteceu em 1998, do caso do menino Evandro Ramos Caetano. Naquela ocasião, mesmo com laudos que comprovavam que o corpo era de Evandro Ramos Caetano, morto em um ritual de magia negra em 7 de abril de 1992, os jurados votaram pela absolvição por entenderem que o corpo não era da criança”. O Ministério Público recorreu da decisão do Conselho de Sentença e o Tribunal de Justiça anulou o julgamento porque os jurados não poderiam ter desconsiderado uma prova técnica feita com base em exame de DNA e arcada dentária. No segundo júri, os jurados rejeitaram a tese da defesa de negativa da identidade do corpo da criança e decidiram pela condenação.

Atuação do MP – Como o Ministério Público dá início ao processo, cabe-lhe provar a ocorrência de um crime e a autoria dele. No entanto, o promotor de Justiça Paulo Markowicz pondera que, ainda que predominantemente seja de acusação o papel do MP, a condenação do réu não é buscada a qualquer custo, devendo o promotor de Justiça garantir o efetivo cumprimento da lei. “A função do promotor no Tribunal do Juri é de verdadeiro defensor da sociedade, o que inclui, inclusive, o próprio acusado. Por isso, existem casos em que se comprova no processo que o réu agiu em legítima defesa ou, que as provas de que ele é o autor do crime são insuficientes. Nesses casos, é dever do promotor pedir a absolvição”. O papel da instituição nesses casos é também ressaltado por Lucia Inez Andrich. “Somos os fiscais da lei e nosso desafio é conjugarmos os aspectos legais com o que a sociedade pensa. E como o acusado é também parte da sociedade, seus direitos devem ser igualmente defendidos por nós. Não é porque representamos a sociedade que devemos ir sempre contra o réu”, finalizou.

A imprevisibilidade da decisão dos jurados é um dos desafios impostos à atuação dos promotores em processos que vão a júri popular. “O promotor deve estar atento não apenas ao processo tal como consta nos autos, mas conhecer a sociedade em que está inserido. Isso porque, além de ter as provas constantes do processo, é preciso convencer os jurados da tese sustentada”, avalia a procuradora de Justiça Lucia Inez Andrich. Todas as 162 comarcas do estado do Paraná possuem um Tribunal do Júri e, aproximadamente, 300 promotores de Justiça atuam nesses julgamentos.

MP no Rádio – Confira, também, a entrevista do promotor de Justiça Marcelo Balzer Correia sobre o Tribunal do Júri ao programa MP no Rádio.

Entenda Direito - Acesse aqui a edição do Entenda Direito que explica o funcionamento do Tribunal do Júri.

Confira na arte abaixo como funciona um julgamento feito pelo Tribunal do Júri.

O que se passa dentro de um tribunal é mistério para muita gente – muitos, inclusive, só têm ideia de como funciona porque já assistiram a um julgamento sendo retratado em filmes ou seriados. Desta forma, além das cenas clássicas de tribunais, casos de grande repercussão nacional também acabam despertando o interesse do público em acompanhar os julgamentos. Em muitos deles, a sociedade civil não só acompanha o processo como também participa dele. É o chamado Tribunal do Júri – ou júri popular, como também é conhecido.

O júri popular nada mais é do que um grupo de pessoas que são convocadas para ajudar a decidir se o réu merece ir para a cadeia ou não. Casos que receberam cobertura intensa da imprensa, como o de Isabella Nardoni e Elize Matsunaga, por exemplo, embora sejam muito diferentes um do outro, se assemelham em pelo menos dois aspectos: ambos são exemplos de crimes contra a vida e ambos tiveram a participação de um júri popular em seus respectivos julgamentos.

Mais abaixo, você vai entender melhor de que forma o júri popular atua e como se dá o julgamento com a presença de membros da sociedade civil no Tribunal do Júri.

6 perguntas e respostas sobre júri popular

Para quais tipos de crime o júri popular é convocado?

Os membros da sociedade civil podem ser convocados para julgar casos de crimes contra a vida, a exemplo de homicídios dolosos, tentativas de homicídio, infanticídios, incentivo e participação em suicídios e até mesmo aborto.

De acordo com Jacqueline do Prado Valles, sócia do escritório de advocacia Valles & Valles, em São Paulo, “todos os crimes dolosos cometidos contra a vida (quando houve intenção) podem ser levados à júri popular, com exceção dos homicídios dolosos praticados com alguma excludente de punibilidade, a exemplo da legítima defesa”. Nestes casos, o próprio juiz, ao verificar essa circunstância, absolve o acusado. Além disso, para que o Tribunal do Júri seja convocado, é preciso haver provas da materialidade e indícios de autoria do crime doloso.

Crimes conexos ao homicídio, como ocultação de cadáver, também podem ir à júri popular, mas somente em casos em que o dolo do réu – ou seja, a intenção de matar – esteja claro.

Como os jurados são escolhidos?

Todo cidadão brasileiro maior de 18 anos e sem antecedentes criminais pode participar de um júri popular. “Até mesmo advogados criminalistas e formadores de opinião pública estão aptos a compor o grupo de jurados”, diz Jacqueline. “Além disso, pessoas que tenham participado de um júri nos últimos 12 meses não podem ser convocadas novamente até o final deste período”.

Os jurados que compõem o Tribunal do Júri são todos membros da sociedade civil. Eles podem tanto se voluntariar para eventualmente serem chamados a participar de um júri como também podem ser convocados por meio de sorteio. Neste caso, o cidadão selecionado não pode se recusar a participar. Se não comparecer ao Fórum na data e horário marcados ou se por ventura se ausentar em algum dos dias de julgamento e não apresentar uma boa justificativa, ele pode responder ao crime de desobediência, podendo pagar multa de um a dez salários mínimos.

São impedidos de participar do Conselho de Sentença (corpo de Jurados) pessoas que também manifestaram predisposição para condenar ou absolver o acusado. Isso pode ocorrer quando as pessoas, por exemplo, vão até a porta do Fórum manifestar a sua opinião quanto ao resultado do julgamento – o que é bem comum em casos de grande repercussão midiática.

Quantos jurados formam o Tribunal do Júri?

Ao todo, 21 pessoas são convocadas para comparecer ao Fórum no dia do julgamento. Para que a seção seja aberta, pelo menos 15 delas precisam estar presentes. Caso contrário, é realizado um novo sorteio para definir os substitutos e o julgamento é adiado.

Tendo quórum suficiente para iniciar os trabalhos, dos presentes, somente sete são selecionados para formar o Conselho de Sentença, que é grupo que vai acompanhar todo o julgamento.

Caso alguma das partes – acusação ou defesa – tenha dúvidas sobre a idoneidade do júri selecionado, pode-se pedir o chamado desaforamento para outra comarca da mesma região, ou seja, a transferência do caso para outro local, com nova seleção de jurados.

“Tanto a promotoria quanto a defesa do acusado têm direito de recusar três jurados sorteados para a Tribuna do Júri, e não precisam dar nenhuma razão para isso”, explica Jacqueline.

Todos os jurados selecionados têm a sua identidade protegida e o anonimato garantido por lei.

Como se garante que um jurado não tem predisposição a inocentar ou condenar o réu?

“Não é possível garantir com 100% de certeza que os jurados não tenham predisposição para inocentar ou condenar o réu”, afirma Jacqueline. Para que a decisão do júri seja a mais justa possível, porém, ela lembra que os jurados ficam proibidos de conversar entre si sobre o caso, acessar a internet, ler jornais ou até mesmo entrar em contato com a família.

Quando o julgamento demora mais de um dia para ser concluído, os jurados ficam hospedados nas dependências do Fórum ou em um hotel nas proximidades, e não podem ter os dias de ausência no trabalho descontados da folha de pagamento.

De que forma o júri estabelece a sentença?

A função do Tribunal do Júri não é estabelecer a sentença que será dada ao réu, mas sim decidir se ele irá ou não para a cadeia. A sentença é determinada pelo juiz com base na decisão tomada pela maioria do júri – ou seja, dos sete que formam o Conselho de Sentença, é preciso haver quatro votos a favor da condenação ou absolvição para que se chegue a um veredicto.

Para tomar a decisão sobre o futuro do réu, os jurados devem responder a uma série de perguntas. “Eles são questionados, por exemplo, se a exposição das provas os convenceu de que a vítima foi morta pelas causas apresentadas, se o réu realmente cometeu o crime ou não, qual o contexto do crime cometido, entre outras”, explica Jacqueline.

A sentença do júri pode ser anulada? Em quais circunstâncias?

A decisão do Tribunal do Júri é soberana e protegida pela Constituição. O veredicto não pode ser alterado, ou seja, um juiz não pode inocentar um réu condenado pelo júri ou condenar um que tenha sido inocentado.

Há casos, porém, em que a decisão do júri pode ser anulada a pedido do Tribunal de Justiça. Um exemplo disso é quando os desembargadores decidem que os jurados deliberaram de maneira contrária às provas apresentadas no processo. Se isso acontecer, um novo júri deverá ser convocado para julgar o caso novamente.