A tribuna relacao juri popular

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“A eloqüência farfalhante da tribuna do júri”:

o tribunal popular e a lei em Nelson Hungria

Ricardo SONTAG

Resumo: Este artigo pretende analisar a questão do júri no

pensamento do penalista Nelson Hungria levando em

consideração o contexto histórico das transformações sofridas

pelas instituições penais durante o Estado Novo (particularmente

as leis sobre o júri e os códigos penal e de processo penal de

1940 e 1941 respectivamente), até o post scriptum do percurso

com as modificações trazidas pela Constituição de 1946 e pela lei

268 de 1947 e os seus escritos mais tardios. O aspecto chave a

ser considerado nesse percurso é a (in)distinção no uso por parte

de Hungria dos argumentos do tecnicismo jurídico-penal em

relação àqueles do positivismo criminológico dependendo do

contexto histórico.

Palavras-chave: História do Direito; Estado Novo; Júri; Nelson

Hungria.

Em janeiro de 1938, isto é, pouco tempo depois do golpe de

Getúlio Vargas que marcou o início do chamado ‘Estado Novo’

em novembro de 1937, o então ministro da Justiça Francisco

Campos assina o decreto-lei 167 que regulava a instituição do

júri. Abordar o júri no pensamento de Nelson Hungria quase se

confunde com a trajetória do tribunal popular no Estado Novo,

afinal, ele esteve presente na comissão de redação do referido

Doutorando em História do Direito; pesquisador do Ius Commune –

Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica (CNPq/UFSC).

Dipartimento di Teoria e Storia del Diritto – Università degli Studi di

Firenze – UNIFI – Via delle Pandette, 35, CAP 50127, ed. D4 – Firenze-

FI – Itália. E-mail:

RICARDO SONTAG

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decreto-lei, bem como na comissão que redigiu o código de

processo penal de 1941.

O objetivo, aqui, porém, não é traçar a história do tribunal

popular durante o Estado Novo

1

, nem destrinchar as minúcias

técnicas da regulamentação do decreto-lei 167 e, depois, do

código de processo penal. No pensamento de Nelson Hungria, o

júri é central na questão do uso do texto do então novo código

penal – também este feito durante o Estado Novo e com a

presença de Hungria na comissão que o redigiu -, envolvendo,

ainda, toda uma concepção de saber jurídico que se colocava

como ponte entre o texto da lei e a aplicação da norma nos

tribunais.

Compreender a questão do júri em Nelson Hungria levando

em consideração, portanto, o contexto histórico das

transformações sofridas pelas instituições penais durante o

Estado Novo (particularmente as leis sobre o júri e os códigos

penal e de processo penal de 1940 e 1941 respectivamente), até

o post scriptum do percurso com as modificações trazidas pela

Constituição de 1946 e pela lei 268 de 1947 e os escritos mais

tardios de Hungria. No sentido de adensar a especificidade

histórica do pensamento de Hungria em relação ao júri, ao invés

de buscar as origens remotas dos seus argumentos (que, em si,

não são, de fato, muito “originais”

2

) diluindo a sua voz em

durações demasiado longas, será dado maior privilégio ao

contexto da sua concepção de saber jurídico e de lei.

A consideração dos contextos nos quais se move o

pensamento de Hungria é essencial, também, para a hipótese

que pretendo levantar aqui em relação ao tipo de argumento

utilizado por Nelson Hungria contra o júri. Embora as críticas de

Hungria antes e depois da queda do Estado Novo, antes e

depois da Constituição de 1946, sejam enquadráveis em um

mesmo esquema teórico, considerar a diferença entre esses

contextos torna possível adensar ainda mais a leitura histórica.

Com o avanço do positivismo criminológico

3

, dos estudos

psiquiátricos, biossociológicos, a respeito do criminoso entre o

final do séc. XIX e primeiras décadas do séc. XX, a série de

argumentos relacionados à necessidade de uma adequada

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especialização científica na administração da justiça criminal

ganhava força, e,conseqüentemente, as teses a favor da abolição

do júri. As críticas de Nelson Hungria contra o júri, porém, vão

além da simples oposição leigos versus especialistas. O

especialista de Nelson Hungria é ainda mais especialista: é o

jurista do tecnicismo jurídico-penal. A partir desse modelo, o

próprio positivismo criminológico é colocado em questão por

Hungria no que se refere ao problema do júri. Porém, Hungria

não abdica completamente das razões do positivismo

criminológico: ele opera com a série de argumentos mais típica

do tecnicismo separada ou em conjunto com aquela do

positivismo criminológico dependendo do contexto histórico no

qual se move. É com esta chave – (in)distinção dos argumentos

do tecnicismo jurídico-penal em relação àqueles do positivismo

criminológico dependendo do contexto histórico – que a questão

do júri em Nelson Hungria será abordada neste artigo.

* * *

Na conferência intitulada “A evolução do direito penal

brasileiro” de 1942, o código penal de 1940 seria a última etapa

desta evolução (HUNGRIA, 1943: 11). Como signo de evolução, o

código é defendido com força em resposta aos críticos das

soluções adotadas no novo texto legal. Em linhas gerais,

Hungria tece essa defesa argüindo o acerto das soluções do

código em relação às mais modernas doutrinas penais e

criminológicas que teriam sido adequadamente adaptadas pela

comissão à situação brasileira. Dada essa premissa, todo o

problema estaria na correta aplicação da letra da lei nos

tribunais e na necessidade de uma postura comprometida com a

eficácia das normas codificadas por parte dos penalistas.

Depois de excluir criminologia, filosofia do direito penal,

etc, do âmbito da ciência do direito penal em sentido estrito, isto

é, aquela que compete exclusivamente aos juristas, Hungria

conclui que “restam as ciências técnicas que instruem a justiça

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penal ou auxiliam a realização militante do direito penal”

(HUNGRIA, 1942: 6). No esquema tecnicista, o trabalho do jurista

começaria com a exegese da lei, para depois entrar na

reconstrução dos institutos e do sistema já posto (a fase

chamada de “dogmática” propriamente dita) a partir dos

resultados da fase de exegese, e, por último - nem sempre citada

por Hungria - a fase de ‘crítica’. A exclusão das outras ciências –

no máximo utilizáveis, subsidiariamente, nos tribunais ou no

processo de reforma das leis – e a “domesticação” da crítica

4

são

centrais para que o objetivo central do novo modelo de ciência

do direito penal se realize: a colaboração com a efetivação das

leis nos tribunais.

Na perspectiva do tipo de discurso penal que Nelson

Hungria defendia, então, emergia como um sério problema a

figura do advogado, em especial a do advogado do júri. Na

relação tida como ideal por Hungria entre lei – doutrina –

jurisprudência, o embate em torno do júri condensa em si os

argumentos mais significativos em relação ao terceiro elemento

na construção imaginária deste tripé (ainda hoje fundamental no

campo jurídico): a jurisprudência.

Para além da bondade intrínseca do texto legal, era

necessário, para Hungria, eliminar os elementos perturbadores

do bom funcionamento do sistema legislativo. Um desses

elementos era o tribunal do júri, que teria sido, inclusive, um dos

responsáveis pelo mau funcionamento do velho código penal de

1890. Mas antes de entrar na análise específica da conferência

de 1942, retomemos o fio do contexto intelectual e institucional

no qual Hungria levara a cabo seu embate.

Pode-se dizer que a formação jurídica do século XIX girava

em larga medida em torno da figura do advogado, isto é,

sublinhava a capacidade retórica do jurista, pautado no bom uso

da palavra falada. Os corolários dessa opção são inúmeros. Entre

elas a tendência em valorizar um ensino fundado na oralidade,

onde a maioria dos textos que encontramos daquela época eram

pensados, em verdade, para serem declamados ante um

auditório determinado. Muito diferente do auditório impessoal

dos padrões de cientificidade do final do século XIX que

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atribuiria um valor muito maior à palavra impressa. Essa é a tese

de Carlos Petit em seu trabalho sobre a cultura jurídica da

Espanha Liberal no século XIX:

admitamos por um momento o paradoxo de colocar dentro do

século XIX – o século da difusão social das letras, o século da

linotipia e das revistas; sim, o século da lei escrita e do Estado –

um remoto entendimento que ainda esgota na tarefa do ius dicere

o momento decisivo da criação jurídica (PETIT, 2000: 11)

5

.

Desse ponto de vista, no âmbito de uma cultura jurídica,

segundo Petit, fundada no paradigma oratório-forense, a

advocacia não é somente mais uma profissão jurídica entre

tantas outras, mas a profissão jurídica por excelência:

sob o ponto de vista que ora se adota, o paradigma oratório-

forense implica também promover a antiga advocacia, da sua

atual condição de mera profissão jurídica (entre outras não

menos desejáveis e dignas), para a categoria ontológica onde

reina, solitário, o jurista perfeito (PETIT, 2000: 11)

6

.

A partir mais ou menos da década de 80 do século XIX, na

Espanha, Petit marca o nascimento de um novo paradigma nas

faculdades de direito: o do jurista-cientista. Pasquale Beneduce

também identifica um processo similar na Itália, cujos primeiros

embates e sinais “em torno do novo paradigma do jurista

universitário que progressivamente subordina a si qualquer

outra possível imagem do trabalho jurídico”

7

se verificariam nas

décadas de 60 e 70 do século XIX (BENEDUCE, 1996: 16-17).

Paradigma que nasce sob o influxo do cientificismo, e que

demanda toda uma série de práticas calcadas na escrita para se

sustentar, e onde a retórica advocatícia passa a aparecer cada

vez mais como uma forma de falsear a verdade.

Segundo Ricardo Fonseca, “esta passagem do jurista

‘eloqüente’ para o jurista ‘cientista’, grosso modo, pode ser

transplantada para o caso da cultura jurídica brasileira (...)

(FONSECA, 2006: 361). No final do culo XIX, Fonseca indica os

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inícios da passagem, no Brasil, do paradigma “eloqüente”, para

o paradigma “científico”, e Wilton Silva também aponta que se

afirmava uma “nova visão do conhecimento jurídico, realmente

‘scientifica’” (SILVA, 2007: 31). Tobias Barreto, por exemplo,

para ficar num caso da seara penal,

parecia não ter muito apreço pelo estilo retórico e grandiloqüente

que marcou as gerações precedentes dos juristas brasileiros

(como também da maior parte de seus contemporâneos), em

vista de sua sempre ácida condenação ao que ele denominava a

‘fraseologia’. Para ele, era uma tarefa importante insurgir-se

“contra a frase, contra o estilo de salão que enfraquece o

pensamento e corrompe os estudos sérios”. (FONSECA, 2006:

364)

Isso não quer dizer, porém, que personagens como Tobias

Barreto não carregassem as marcas da formação que criticavam.

É famosa a crônica da eloqüente defesa da tese de doutorado de

Tobias Barreto, do seu domínio da palavra falada (VENÂNCIO

FILHO, 2004: 264).

O que importa, porém, no plano da história do pensamento

jurídico, é que, desde o final do século XIX a figura do advogado

(ainda mais se for advogado do júri) passa a ser alvo privilegiado

daqueles juristas comprometidos com essa transformação no

modelo de discurso jurídico, cada vez mais orientado para o

cientificismo, contra aquilo que chamaríamos de “bacharelismo

liberal” (ADORNO, 1988).

Para tomar um exemplo mais tardio, mais próximo do

período deste trabalho, temos um discípulo de Tobias Barreto:

Viveiros de Castro. No prefácio de seu livro sobre a “Nova Escola

Penal” (referência ao positivismo criminológico), ele se insurge

contra a retórica advocatícia, referindo-se a ela como marca de

uma geração “(...) corroída até a medula pela rhetorica, pelo

gosto do palavriado inane, balofo, frívolo. A sciencia moderna

positiva, exacta, fria, irrita-lhe os nervos.” (CASTRO, 1913: 11)

Já na crítica de Hungria à retórica do advogado do júri, o

ponto central é o descaso pela eficácia do direito penal positivo.

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Segundo ele, esse período marcado pelos oradores do júri teria

produzido um direito penal “romântico e emocional”,

direcionado somente aos “êxitos tribunícios”,

para cujo triunfo se torcia e retorcia o direito positivo [...],

reduzido a letra morta

pelo soberano arbítrio e lógica de

sentimento do tribunal popular. O caluniado código de 90 fôra

metamorfoseado, pela espetacular e profusa oratória criminal,

desorientadora da justiça ministrada pelos juízes de fato, num

espantalho ridiculamente desacreditado. Foi o período áureo do

passionalismo sanguinário, que andava à solta, licenciado sob a

estapafúrdia rubrica de “privação dos sentidos”. As teorias

revolucionarias da chamada “nova escola penal”, difundidas à la

diable, mal compreendidas ou tendenciosamente utilizadas, era a

moeda que, embora sem autorização legal, mas sob o pretexto de

deplorável atraso da nossa lei escrita, livremente circulava nos

recintos do tribunal dos jurados. A literatura psiquiátrica, a

lobrigar o patologismo nas mais fugidias discordâncias de

conduta, era piamente acreditada e abria a porta da prisão a uma

privilegiada chusma de sicários e rapinantes. (HUNGRIA, 1943:

13-14. Grifos meus)

Hungria e alguns dos expoentes do positivismo

criminológico estão de acordo, portanto, no que tange aos males

da retórica advocatícia de um modo geral. Mas é interessante

notar que é justamente esse caráter de “exatidão” que Nelson

Hungria negava ao saber do positivismo criminológico,

acusando-o de, com as suas imprecisões e com os intermináveis

debates contra o “classicismo”, ter contribuído com a retórica

tribunícia que corroeria a eficácia da norma penal positiva.

Nesse sentido, bem notou a historiadora Joseli Mendonça que

muitos dos embaraços da justiça penal nesse momento advinha

“da atuação dos advogados de defesa que, como Evaristo de

Moraes, instrumentalizavam os (des)conhecimentos das ciências

médicas para ampliar a ‘classe’ dos agentes inimputáveis”

(MENDONÇA, 2004: 344). O livro de memórias de Evaristo de

Moraes, “Reminiscências de um rábula criminalista” (1989) é

uma confirmação eloqüente da existência desse tipo de uso do

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positivismo criminológico durante a Primeira República no

Brasil. Evaristo de Moraes conta, às vezes com riquezas de

detalhes, varias ocasiões em que apropriou-se das teorias

lombrosianas (e afins) com êxitos bastante distantes da

almejada “defesa social” ou da efetividade das normas positivas.

Não é à toa a avaliação ambígua de Hungria acerca de

Evaristo de Moraes, lamentando que o momento em que vivera,

época de vivacidade do debate entre as escolas penais, o teria

impedido de deixar para a posteridade um livro de estudo

técnico-jurídico do direito vigente: “mesmo aqueles que

conheciam, de verdade, a autêntica ciência penal abstinham-se,

pelo receio de compromissos doutrinários em contraste com o

interesse profissional, de fixar em livros didáticos a austera

interpretação do direito positivo”, e completa, “haja vista aquele

que foi príncipe entre eles, o insigne Evaristo de Moraes, em cuja

extensa bagagem literária não se depara um só estudo de feição

estritamente técnico-jurídica” (HUNGRIA, 1943: 14. Grifo meu).

Surpreende, aliás, os elogios de Hungria a Evaristo de Moraes:

este, advogado rábula, conhecidíssimo pelas suas façanhas

retóricas no tribunal do júri durante a Primeira República no Rio

de Janeiro, encaixa-se quase como o tipo ideal de advogado do

júri que, para o tecnicismo hungriano, teriam trazido todos os

malefícios para a ciência do direito penal brasileira.

Sobre esses dois filões de críticas ao júri (em nome da

Ciência em geral ou em nome da Lei em particular), Roberto Lyra

(talvez o mais famoso dos penalistas contemporâneos de Nelson

Hungria), ao defender o tribunal popular, distinguia,

exatamente, duas posturas críticas em relação ao júri:

“equivocam-se os que depreciam o júri sob o crivo técnico-

jurídico ou técnico-científico” (LYRA, 1975: 134). Ou seja, pode-

se dizer que o positivismo criminológico crítica o júri e a figura

do advogado em nome da ciência (crivo técnico-científico), e o

tecnicismo de Nelson Hungria o faz em nome da lei (crivo

técnico-jurídico). Isso não quer dizer que esses dois planos não

possam entrecruzar-se, mas, nesta conferência de Hungria, eles

são claramente diferenciados, tanto é que o positivismo

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criminológico é, ao contrário, acusado de colaborar para a

perpetuação da retórica enganadora dos advogados do júri.

Tão importante para Nelson Hungria era a questão do júri

que ele considerava mesmo as recentes mudanças na estrutura

desse tribunal o ponto de partida da “transformação evolutiva”

na direção de um saber jurídico penal “ponderado” e realmente

comprometido com a eficácia das normas. Mudanças que

limitavam a competência legal do tribunal popular, e

aumentavam, conseqüentemente, a dos juízes togados, bem

como submetia as decisões do júri à revisão do Tribunal de

Apelação. Os juízes togados - daí a importância dessas

mudanças -, seriam, para ele, tendencialmente mais aptos a

resistirem à retórica enganadora dos advogados. Passava-se,

para ele, da “eloqüência farfalhante da tribuna do júri” à

“dialética ponderada, sóbria e leal na exegese, análise e

aplicação dos textos legais”. Nas palavras de Hungria,

Com o declínio (...) do tribunal do júri, teve de operar-se uma

profunda mudança nos arraiais da justiça penal. Transferido dos

juizes de fato aos juizes de direito o julgamento da maioria dos

crimes, entrou de despontar, no debate da solução dos casos e

questões penais, o que se pode chamar de “pudor jurídico”.

Elevou-se o nível da cultura jurídico-penal. A eloqüência

farfalhante da tribuna do júri foi substituída pela dialética

ponderada, sóbria e leal na exegese, análise e aplicação dos

textos legais (HUNGRIA, 1943: 15)

Essas transformações no tribunal do júri às quais Hungria

se referia são, em grande parte, aquelas do decreto-lei nº 167, de

5 de janeiro de 1938, sob o regime de Vargas, como também do

próprio código de processo penal de 1941. Segundo relatório

produzido pelas instâncias administrativas governamentais,

seriam modificações que pretendiam recuperar o “prestígio” do

júri:

essa lei [o referido decreto nº 167 de 1938] integrou

definitivamente o tribunal popular no aparelhamento de defesa

da sociedade, livrando suas decisões das influências pessoais e

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restabelecendo o prestígio que ele vinha perdendo. A mais

sensível das inovações operadas pelo decreto-lei nº 167 foi a

faculdade que conferiu aos Tribunais de Apelação para, em

recurso, conhecer do mérito das decisões do júri e reformá-las,

seja para absolver, seja para aplicar-lhe a pena merecida. Os

dispositivos da lei do júri foram reproduzidos no Código de

Processo Penal, com as alterações impostas pela experiência e

pelo sistema de aplicação da pena adotado no novo Código Penal

(SCHWARTZMAN, 1982: 85).

Uma mudança significativa no processo do júri levado a

cabo não muito tempo depois do golpe que instituiu o Estado

Novo: a outorga da Constituição de 1937 data do mês de

novembro, e o decreto-lei 167 é de janeiro de 1938. Sinal de que o

controle das forças centrifugas que poderiam atuar no tribunal

popular em detrimento da “defesa social” (palavra de ordem

adotada pelo regime na política criminal) era considerado

bastante urgente.

A “lógica do sentimento” que a exposição de motivos

denuncia como principal defeito do júri popular deveria ser o

ponto a ser devidamente controlado pela nova lei, para que o

tribunal popular pudesse transformar-se, como os outros

tribunais togados, em um eficaz dispositivo estatal de defesa

social. Enrijecimento do controle penal contra qualquer

“indulgência para com criminosos”:

Já não se pode compreender que alguns cidadãos, investidos na

função de juízes de fato, se sobreponham, incontrastavelmente,

às exigências da justiça penal, na sua finalidade de defesa da

sociedade. A lógica do sentimento, que serve às decisões do Júri,

não pode redundar em escandalosa indulgência para com

criminosos (CAMPOS, 1938: 228).

Ainda na Exposição de Motivos do decreto-lei 167,

Francisco Campos justifica que o júri não foi abandonado porque

poderia colaborar para a “educação cívica do povo”. O

argumento de que o júri teria sido abolido tacitamente pela

Constituição de 1937, já que ela não o mencionava (ao contrário

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do texto constitucional anterior), é rechaçado por Campos. Não

abolir o júri, mas adequá-lo às feições do novo regime, contra um

tipo de tribunal popular, segundo ele, resquício do Império:

O que se tornou indissimulavelmente antinômico com o atual

regime político, orientado primacialmente na defesa do

preponderante interesse coletivo, ate agora embaraçado pelas

demasias de um anacrônico liberalismo individualista, foi o Júri

que o Império nos legara, o Júri ilimitadamente soberano e

irresponsável (CAMPOS, 1938: 228).

Em suma, o governo aplica no júri um golpe duríssimo,

ainda que não tenha adotado a tese da abolição do tribunal

popular.

As críticas ao júri circulavam também em outros cantos do

mundo, como na Itália – “pátria” dos maiores expoentes do

positivismo criminológico. Críticas que, mesmo quando não se

aceitava a pura e simples abolição, exigiam alguma resposta,

clamando por reformas institucionais. As respostas não foram

unívocas: na Itália, por exemplo, o regime fascista adotou o

chamado scabinato, onde jurados leigos e juízes togados

compartilhavam da função de julgar, sem a divisão de funções

tradicional (ROCCO, Alfredo, 1931: 604; LONGHI, 1932: 183;

Regio Decreto 23 marzo 1931, n. 249).

Embora o problema na relação novo código – júri que

Nelson Hungria e Francisco Campos levantavam fosse muito

similar ao que se discutia na Itália Silvio Longhi sintetizou

muito bem a questão dizendo que “o maior tecnicismo assumido

pelo novo código penal deveria tornar ainda mais intolerável

qualquer intervenção de profanos” (LONGHI, 1932: 182)

8

– a

resposta brasileira foi mais moderada, ainda que tocasse

igualmente um pilar fundamental da instituição do júri ao

relativizar a soberania dos seus julgamentos.

O art. 96 do decreto-lei 167 de 1938 estipulava que “se,

apreciando livremente as provas produzidas (...), o Tribunal de

Apelação se convencer de que a decisão do júri nenhum apoio

encontra nos autos, dará provimento à apelação, para aplicar a

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pena justa, ou absolver o réo, conforme o caso.” O recurso contra

sentença manifestamente contrária às provas dos autos,

atualmente, redunda em protesto por novo júri, repetição do

julgamento, para não ferir o dispositivo constitucional que

considera soberanas as decisões do tribunal popular,

diferentemente da solução adotada pelo referido decreto-lei 167

de 1938 que afirmava a reformabilidade direta da sentença pelo

Tribunal superior. Ou seja, a ausência de referência ao júri na

Constituição de 1937 abriu o caminho para que uma lei ordinária

relativizasse a soberania do tribunal popular.

Na mesma edição da Revista Forense onde, como de

costume, esta norma foi divulgada para o meio jurídico,

juntamente com a Exposição de Motivos do ministro da Justiça,

acompanhava o comentário do jurista Magalhães Drumond sobre

a nova disciplina do júri, e, tratando do tema mais delicado – a

reformabilidade das decisões – o texto legal era defendido nos

seguintes termos:

Há muito quem veja nisso um perigo para os réus. Penso que

perigo haverá para os réus merecedores de condenação. É

necessário não esquecer que o nosso juiz togado é – também

psiquicamente – brasileiro, e como tal não concorrerá para que a

justiça penal do Brasil se anti-humanize. Os Juizes dos Tribunais

de Apelação vão julgar, brasileiramente, sentimentalmente,

eticamente, tais quais os juízes populares, apenas com a

diferença de poderem apreciar muito mais utilmente a prova do

fato e a personalidade do criminoso. Por outro lado, sabedores de

que suas deliberações estão sujeitas a tal revisão, os jurados

vigiar-se-ão mais na sua sentimentalidade, procurarão objetivar

mais as causas que julguem, de modo a que possam ver

comprovadas as suas decisões. (DRUMOND, 1938: 224)

Para defender que a reforma das decisões do júri não seria

um perigo para os réus, Magalhães Drumond apela para o

estereótipo da sentimentalidade inerente ao povo brasileiro em

geral, e, assim, do vínculo sentimento – humanismo. Porém,

aproximando-se, na segunda parte, do pensamento de Nelson

Hungria acerca de sentimento/romantismo versus

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objetividade/cientificidade no campo penal, a possibilidade de

as decisões do júri serem revistas por juízes togados forçaria os

jurados a serem menos sentimentais, “objetivando mais as

causas que julgam”.

De resto, é bastante claro o argumento do positivismo

criminológico: a incapacidade dos jurados de decidirem sobre

questões profundamente científicas e especializadas como a

personalidade do criminoso. Um argumento, aliás, que já fora

usado anteriormente na discussão sobre o novo código penal.

Aureliano Correa de Araújo, por exemplo, relator do parecer da

congregação da Faculdade de Direito de Recife sobre o projeto

de Código Penal Sá Pereira (n° 118-A de 1935) escrevia que

o projeto neste ponto incide nas constantes censuras que se

increpavam e se increpam às leis vigentes, que, em relação ao

Tribunal popular, armam os juizes leigos das graves atribuições

de julgar questões técnicas relativas ao estado mental dos

criminosos, sem conhecimento de princípios elementares de

psico-patologia forense (CORREA, 1937: 45)

A reforma levada a cabo sob a égide do Ministro Campos,

porém, não se limitou à relativização da soberania do júri.

Conforme explica o próprio Francisco Campos na Exposição de

Motivos do decreto-lei,

além da reformabilidade das decisões do Júri pelos Tribunais de

Apelação, foram introduzidas as seguintes inovações: a)

fortalecimento da autoridade e maior amplitude de ação do

presidente do Tribunal do Júri; b) critério positivo de maior rigor

na seleção dos jurados; (...) e) redução do tempo dos debates,

para evitar que estes degenerem em discussões acadêmicas ou

torneios de retórica (...). (CAMPOS, 1938: 228)

O segundo ponto aparecia no artigo 7°: “Os jurados devem

ser escolhidos dentre os cidadãos que, por suas condições,

ofereçam garantias de firmeza, probidade e inteligência no

desempenho da função”. O “povo” do tribunal popular não é

qualquer um. Sob o Estado Novo, a seleção desse “povo” deveria

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ser ainda mais rigorosa. Apesar disso, a fórmula utilizada pela

lei brasileira é bastante genérica em comparação com outras

soluções análogas, isto é, que buscavam controlar de maneira

mais estrita a “qualidade” dos jurados. É o caso da lei italiana:

também modificada nesse aspecto pelo regime fascista, o artigo

4 do Regio Decreto 23 marzo 1931 n. 249 que trata dos requisitos

para alguém se tornar jurado é bastante extenso e detalhado, ao

contrário do dispositivo brasileiro que é sucinto, genérico, e,

também, menos objetivo.

A inovação da lei brasileira mencionada no item “e” da

Exposição de Motivos de Francisco Campos (“redução do tempo

dos debates, para evitar que estes degenerem em discussões

acadêmicas ou torneios de retórica”) nos faz lembrar

imediatamente a argumentação de Hungria, anteriormente

mencionada, acerca da retórica enganadora dos advogados do

júri. Já que não se optou por abolir o tribunal popular, a solução

encontrada foi diminuir o tempo dos debates.

O art. 9, por sua vez, institui formas de responsabilização

do jurado, “nos mesmos termos em que o são os juízes de oficio,

por prevaricação, inexaçao, peita ou suborno (...).” Este artigo,

juntamente com o art. 96, são aqueles que atingiam mais

diretamente o indesejado traço “ilimitadamente soberano e

irresponsável” do tribunal popular, e, na medida em que o juiz

togado era o modelo de bondade para juristas como Campos e

Hungria, adotar medidas como essa, que aproximavam o jurado

do juiz, eram, para eles, claramente desejáveis.

Completando a reforma penal desejada pelo regime de

Vargas, é elaborado também um novo Código de Processo Penal.

Em relação ao júri, o ministro Francisco Campos afirmava, em

1939, a substancial continuidade entre o projeto de novo Código

e o Decreto-Lei 167 de 1938:

Com ligeiros retoques, foram mantidos no corpo do projeto os

dispositivos do Decreto-Lei número 167, de 5 de janeiro último,

que regula a instituição do júri. Como atestam os aplausos

recebidos, de vários pontos do País, pelo governo da República, e

é notório, têm sido excelentes os resultados desse decreto

“A ELOQÜÊNCIA FARFALHANTE DA TRIBUNA DO JÚRI”:...

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

281

legislativo, que veio afeiçoar o tribunal popular ao ritmo das

instituições do Estado Novo. A aplicação da Justiça penal pelo

júri deixou de ser uma abdicação para ser uma delegação do

Estado, que se reserva o direito de ajustá-la à feição do interesse

social. Privado de sua antiga soberania, que redundava, na

prática, numa sistemática e alarmante indulgência para com os

réus, o júri está, agora, integrado na consciência de suas graves

responsabilidades e reabilitado na confiança geral. (CAMPOS

[1939], 2001: 123)

Os “ligeiros retoques” mencionados por Campos seriam

modificações que serviriam, segundo Hungria, para “afeiçoar o

tribunal popular ao sistema do novo Código Penal” (HUNGRIA,

1941: 17). Uma delas seria um aumento do tempo para os

debates (art. 68 do Decreto-Lei 167 modificado pelo art. 474 do

CPP); e outra seria aquela que

limita a função julgadora do Conselho de Sentença a afirmar ou

negar o fato criminoso e sua autoria, as circunstâncias

elementares ou qualificativas, a desclassificação do crime

eventualmente pleiteada e as causas excludentes de pena ou de

crime. Quando veredictum for no sentido da condenação, ao juiz

presidente do tribunal incumbe fixar a pena e impor medida de

segurança, lavrando sentença cumpridamente motivada. É

incontestável que semelhante tarefa não podia ser confiada à

justiça sentimental ou emotiva do tribunal popular (HUNGRIA,

1941: 17. Grifo meu)

A queda do Estado Novo e o advento da Constituição de

1946, porém, mudariam essa paisagem que Nelson Hungria não

só contemplava satisfeito, mas que também participara em

primeira pessoa para construir. Dessa vez, são aqueles

favoráveis ao tribunal do júri que avaliam positivamente as

mudanças: “A Constituição de 1946, obra do povo, por

intermédio de seus legítimos representantes, restaurou o júri

naquilo que ele tinha de mais essencial, a sua soberania”;

invocando a “tradição milenária do tribunal popular”, Alfredo

Albuquerque retoma a denúncia segundo a qual na omissão da

RICARDO SONTAG

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

282

Constituição de 1937 estava a intenção de abolir o júri e critica

as transformações trazidas pelo decreto-lei 167 de 1938:

Coisa assim tão velha não se pode extirpar facilmente, como o

tentou fazer a Carta Constitucional de 1937, dando lugar a

protestos, a que o Governo ditatorial teve de atender, sendo,

então, expedido o dec.-lei n° 167 de 1938. Mas este decreto,

desvirtuando a instituição milenar, pode-se dizer que o amputou

numa de suas características essenciais, a soberania de suas

decisões (ALBUQUERQUE, 1946: 405)

Na Constituição de 1946, o júri é regulado no capítulo

acerca das garantias individuais, e o parágrafo dedicado a ele

estabelece parâmetros mínimos a serem seguidos pela lei que o

regulamentaria em 1948:

Art. 141, § 28, CF 1946 - É mantida a instituição do júri, com a

organização que lhe der a lei, contanto que seja sempre ímpar o

número dos seus membros e garantido o sigilo das votações, a

plenitude da defesa do réu e a soberania dos veredictos. Será

obrigatoriamente da sua competência o julgamento dos crimes

dolosos contra a vida.

Ao ir além da simples menção ao júri, isto é, estabelecendo

diretrizes para a futura regulamentação, percebe-se claramente

a proteção que o texto constitucional pretendia atribuir ao

tribunal popular contra aquilo que era considerado ‘esvaziar’ a

instituição. Os dois pontos principais, neste aspecto, são a

menção à soberania dos veredictos e a garantia de um rol

mínimo de competência (os crimes dolosos contra a vida), que

são exatamente os dois flancos pelos quais o Estado Novo teria

‘esvaziado’ o júri. Lembremos do elogio de Hungria à limitação

da competência do júri e à relativização da soberania dos seus

veredictos na conferência de 1942.

O projeto de lei que regularia o júri é exatamente o Projeto

de Lei do Senado1 de 1946, apresentado pelo senador Olavo

Oliveira do Partido Social Progressista. Evidentemente, a

regulamentação o mais imediata possível do júri é uma questão

“A ELOQÜÊNCIA FARFALHANTE DA TRIBUNA DO JÚRI”:...

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

283

de adequado funcionamento da Justiça, mas, de qualquer forma,

tamanha presteza na apresentação do projeto de

regulamentação indica, também, a valência política simbólica do

tribunal popular no processo de reforma da herança institucional

da ditadura de Vargas.

O autor deste projeto de lei, senador Olavo Oliveira,

criticava com eloqüência a disciplina anterior do tribunal do júri:

A Constituição de 10 de novembro de 1937, conservando a

competência privativa da União para legislar sôbre o direito

processual (art. 16, n° XVI), fez tábua rasa do Júri, como garantia

constitucional e como órgão do poder judiciário. E veio o Decreto-

lei n° 167, de 5 de janeiro de 1938, profundo golpe nos

tradicionais sentimentos democráticos do nosso país. A título de

regular a instituição do Júri, reduziu o velho e querido tribunal

popular a uma verdadeira ficção, submetendo as suas decisões à

reforma dos Tribunais de Justiça, que armou de autoridade para

absolver e condenar os acusados, contra os pronunciamentos dos

Conselhos de Sentença, no julgamento das apelações interpostas

das suas decisões (OLIVEIRA, 1949: 13)

A lei n° 263 de 1948 – resultado do PLS n° 1 de 1946 – para

salvaguardar a soberania do júri no caso da previsão do Código

de Processo de Penal de apelação por decisão manifestamente

contrária aos autos estabeleceu que a decisão do Tribunal de

togados só poderia determinar um novo julgamento pelo tribunal

popular. Quanto à competência, o seu art. 2° parágrafo 1°

aumentou as hipóteses do art. 74 do Código de Processo Penal:

as várias formas de aborto foram incluídas na esfera de

competência do júri, juntamente com o homicídio doloso,

‘induzimento, instigação e auxilio ao suicídio’ e infanticídio que

já eram de sua competência pela lei anterior.

É esse o novo contexto que Hungria encontra depois da

queda do Estado Novo quando publica na Revista Forense, em

1956, um artigo intitulado “A justiça dos jurados”. Entre as

lembranças das leis que outrora ele próprio ajudara a elaborar e

o novo desenho institucional da Constituição de 1946, Hungria

sentenciava:

RICARDO SONTAG

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

284

Foi em vão que o nosso Cód. Penal vigente cuidou de criar

obstáculos à proverbial frouxidão do tribunal popular. Valiam

eles ao tempo em que a lei substantiva e a lei adjetiva penais,

entrosadas em um sistema harmônico, que veio a ser rompido

pelo desgraçado art. 141 § 28, da Constituição de 46, se

completavam para a eficiência da repressão do crime.

(HUNGRIA, 1956: 10)

Em oposição ao legislador de 38 (do decreto-lei 167) e de 41

(do Código de Processo Penal), a Constituição de 1946 era

acusada de sucumbir aos interesses da categoria dos

advogados:

A reforma que em tão boa hora fôra realizada pelo legislador de

38 e 41 veio a ser anulada sumariamente por uma emenda de

afogadilho ao projeto de Constituição de 46, obtida pela cabala e

a pressão dos advogados criminais no Palácio Tiradentes.

(HUNGRIA, 1956: 11)

Para compreender a dimensão desta crítica, vale lembrar,

ainda, que a menção aos advogados criminais remete à velha

imagem negativa do advogado do júri que já aparecia na

conferência de Hungria publicada em 1943.

No novo clima de restauração da democracia, a influência

do fascismo torna-se um grave problema, e, para defender a

solução de outrora, esconjurar este argumento é ponto de

passagem obrigatório:

Afirmou-se, insidiosamente, que a revogada possibilidade de

alteração de meritis dos veredictos do júri pelo tribunal togado

(...) tinha cor fascista ou cheiro de Estado totalitário. Pura

invencionice, mero boato demagógico. O exemplo viera da

Inglaterra, pátria do júri (...). Foi a Inglaterra que teve a iniciativa,

nos tempos modernos, apesar do ferrenho conservantismo que a

caracteriza, da reformabilidade das decisões do júri pela Corte de

Justiça, chegando a admitir, ainda quando o recurso seja do

próprio réu, até mesmo a reformatio in pejus. (HUNGRIA, 1956:

11)

“A ELOQÜÊNCIA FARFALHANTE DA TRIBUNA DO JÚRI”:...

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

285

Entrando no cerne da argumentação de Hungria, tomemos

uma longa passagem como ponto de partida da análise:

Vivemos em um século em que a chave do progresso é a divisão

do trabalho e a especialização das funções. Na amplitude e

complexidade crescente dos dados da experiência científica, o

êxito de qualquer arte, oficio ou profissão esta condicionado ao

particularismo e tecnicismo de conhecimentos. O especialista e o

técnico são os procurados e escolhidos, porque só eles realizam o

ideal prático dos right men in the right places. A improvisação,

ainda que lastreada pela mais provida inteligência e o mais

equilibrado bom-senso, já não pode ter possibilidade de sucesso.

(...) Nenhum mister, por mais aparentemente fácil que seja,

dispensa preparo e treinagem singularizados. Pois bem; há um

setor da vida social que ainda se exime ao “imperativo

categórico” da convocação dos capazes, persistindo em

oficializar o “culto da incompetência”: é o da administração da

justiça penal, com a rotineira conservação do famigerado

Tribunal do Júri. (...) A justiça penal tornou-se, com os modernos

estudos biopsico-sociologicos do criminoso e do crime, uma

função que envolve a aprofundada pesquisa da alma humana (...).

Já não pode deixar-se inspirar por sentimentalismos espúrios,

por ódios vingativos ou ditames de piedade. (...) A justiça penal

emocional cedeu o passo à justiça penal friamente analítica, ao

serviço do superior e exclusivo interesse da defesa social contra o

flagelo da criminalidade (HUNGRIA, 1956: 8).

O especialista contra o leigo; o sentimentalismo contra a

‘frieza analítica’; todos argumentos que lembram o positivismo

criminológico. De fato, nem sempre positivismo e tecnicismo

operam em binários opostos ou em rota de colisão. Muito embora

Hungria defendesse que a magistratura togada preveniria a

justiça penal tanto dos “ódios vingativos” quanto dos “ditames

de piedade”, a “defesa social” colocada como pedra de toque

empurra o seu pensamento menos na direção das garantias

individuais e mais nas necessidades da repressão estatal. Além

disso, a ‘defesa social’ é um dos laços que permitem tecnicismo

e positivismo encontrar-se no âmbito de reformas institucionais.

RICARDO SONTAG

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

286

Na seqüência da argumentação, Hungria insiste na crítica

à retórica tribunícia e ao despreparo dos jurados para não se

deixarem levar por ela (HUNGRIA, 1956: 9), e a ênfase na defesa

social faz com que ele se preocupe mais com a retórica dos

advogados de defesa, que falam por último e seriam, por isso,

mais capazes de conseguir uma absolvição:

O ‘monstro’ (...) descrito pela Promotoria Publica vai, aos poucos,

pelo “passe de mágica” da defesa insidiosa e eloqüente, sempre

a falar por último, adquirindo asas de anjo, véu de serafim,

auréola de santo, fardão de benemérito, e o resultado é sabido:

absolvição unânime e com louvor. (HUNGRIA, 1956: 9)

Ao discutir a distinção entre direito e fato, a obsessão pela

defesa social mais uma vez faz pender as críticas mais fortes à

retórica da defesa:

(...) ainda que fosse viável a distinção entre fato e direito, qual a

utilidade de reservar a apreciação daquele ao júri, se, ao fim de

oito horas de palavrório sonoro, o fato se apresenta à percepção e

ao espírito dos jurados inteiramente outro do que realmente

ocorreu, totalmente diverso do constante nos autos, não

passando, já então, de um “ente de razão” criado, artificialmente,

pela sofisteria e lances teatrais do defensor, que sempre merece

do júri mais crédito que o promotor, contra quem há a prevenção

de que somente acusa por dever funcional. (HUNGRIA, 1956: 11)

Contra o argumento do “povo distribuindo Justiça”,

Hungria procura reduzi-lo ao absurdo, e se pergunta por que não

se defende a participação popular em todos os assuntos de

administração do Estado? (HUNGRIA, 1956: 9). A única

conclusão possível, para Hungria, é que a manutenção do júri

deve-se unicamente ao interesse particularístico dos advogados

criminais e ao “coronelismo de aldeia”:

(...) o povo não se preocupa em que se lhe de, ou não, a

prerrogativa de julgar. O júri só lhe interessa como espetáculo,

como show, como tablado de rink (...). O ‘coronelismo’ de aldeia e

“A ELOQÜÊNCIA FARFALHANTE DA TRIBUNA DO JÚRI”:...

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

287

o unilateralismo interesseiro dos advogados criminais é que

bradam pela manutenção do júri soberano, para que não cessem

os seus proveitosos triunfos eleitorais ou profissionais

(HUNGRIA, 1956: 9).

Depois de destilar uma série de argumentos muito comuns

ao positivismo criminológico, Hungria retoma aquilo que

considerei anteriormente um pilar fundamental da

argumentação tecnicista contra o júri, isto é, a efetividade

judicial das leis penais: “O júri, na realidade prática, é a

anomalia de um sistema instituído e montado para violar

impunemente as leis, sem estar obrigado, sequer, a fundamentar

seus julgados.” (HUNGRIA, 1956: 10)

No texto mais antigo de Hungria, a articulação entre os

argumentos positivistas e tecnicistas é bem mais fraca porque

ainda era muito recente a memória dos usos tribunícios das

próprias teorias positivistas, no seio do mal fadado, segundo ele,

debate das escolas penais. Em 1956, essa memória já era mais

fraca, e Hungria pôde direcionar todas as suas energias contra

os argumentos “liberais”, utilizando todos os estratos

semânticos possíveis do “imaginário anti-júri”, incluindo aqueles

do positivismo criminológico.

Os argumentos fundados na autoridade da ciência e na

autoridade da lei convergem, ao final da estrada, na apologia do

especialista, do técnico, compreendidos em sentido genérico,

não necessariamente técnico no sentido mais particular do

tecnicismo jurídico-penal.

Apesar disso, a distinção entre essas duas séries de

argumentos não é inócua, pois, de outro modo, não seria possível

dar a devida consideração aos diferentes contextos históricos

pressupostos por Hungria. O primeiro é composto pela

preocupação com: a) os usos tribunícios do positivismo

criminológico; b) a afirmação do tecnicismo jurídico-penal; c) os

“malefícios” do próprio debate das escolas penais; d) as

disputas de espaço entre magistrados e médicos no campo

jurídico-penal, onde o positivismo criminológico tendia a

aumentar o espaço destes últimos (ALVAREZ, 1996; RIBEIRO

RICARDO SONTAG

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

288

FILHO, 1994). Além, é claro, da contraposição em relação aos

argumentos “demo-liberais” a favor do júri. Já o segundo

contexto no qual se move o texto de 1956 é assaz diferente, pois,

embora os argumentos sejam fundamentalmente os mesmos e

redutíveis a um mesmo esquema teórico, a própria repetição

também chama a atenção do historiador, interessado na

singularidade dos acontecimentos.

O próprio texto traz as marcas das mudanças que merecem

ser destacadas. A começar pelo uso mais despreocupado de

argumentos muito característicos do positivismo criminológico

para atacar o júri. Este é o sinal mais eloqüente de que, para

Hungria, o contexto já não é mais aquele do embate contra os

usos tribunícios do positivismo criminológico ou do confronto

contra o debate das escolas penais. Interpõe-se, entre a

conferência de 1942 e o texto de 1956, a queda do Estado Novo,

o advento da Constituição de 1946. Neste novo ambiente, o

decreto-lei 167 de 1938 já não é mais o ponto de partida para

uma etapa superior da ciência do direito penal no Brasil, mas a

recordação de uma evolução interrompida e caluniada por

aqueles que a consideraram fruto de uma concepção fascista. O

art. 141 § 28 da Constituição de 1946 (e a sua respectiva lei de

regulamentação) é o alvo privilegiado - quase exclusivo, se

compararmos com os diversos alvos atingidos por Hungria na

conferência de 1942.

Nos dois textos há o claro tom polêmico e arguto que

marcou aqueles que conheceram Nelson Hungria

9

, mas o

segundo é muito mais melancólico, por assim dizer.

Evidentemente, porque as transformações no direito positivo

não acompanharam as suas convicções como outrora, mas

também porque o embate contra uma norma positivada, para um

tecnicista como Hungria, é particularmente difícil, pois o coloca

no limite (talvez além) daquilo que ele próprio considera o papel

essencial de um jurista. Basta lembrar dos ataques que o mesmo

Hungria lançava contra aqueles que criticavam excessivamente

o Código Penal de 1890, pouco contribuindo para a sua pratica

aplicação e traindo os seus deveres como juristas.

“A ELOQÜÊNCIA FARFALHANTE DA TRIBUNA DO JÚRI”:...

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

289

Na medida em que o tecnicismo de Hungria procurou

afastar a “crítica” do coração da ciência do direito penal,

reduzindo-o a “meras sugestões ao legislador”, epifenômeno da

dogmática, a altissonante crítica de Hungria, em 1956, ao

referido artigo da Constituição de 1946, adquire esse traço

melancólico, pela marginalidade que este brado teoricamente

ocupa em seu esquema de pensamento.

Ainda a respeito do que revela essa oposição de Hungria à

nova disciplina do júri em relação ao seu pensamento jurídico,

além da “melancolia”, vem à tona o “arquivo escondido” do

tecnicismo. As críticas de Nelson Hungria ao júri não provém de

uma simples posição política pessoal, mas são conseqüências

extraídas da sua concepção de direito. Ou seja, Hungria não

pede licença ao “jurídico” para falar de “política” quando critica

o júri tal qual estava positivado em 1956. Esse é o instante em

que o seu tecnicismo descola-se daquilo que deveria ser a sua

necessária base legislativa, e, como sistema transformado em

modelo, possibilita que o jurista Hungria possa opor-se à

legislação positiva.

Em relação ao júri depois da queda do Estado Novo, não há

um mínimo denominador comum (político) entre o sistema

transformado em modelo de política legislativa e a disciplina

positiva do instituto em questão, de modo que o embate a partir

do “arquivo escondido” de Hungria redundou na forte oposição

do artigo de 1956. Muito embora o tecnicismo seja bastante

dúctil – particularmente na tentativa de sempre acompanhar a

legislação positiva – a nova disciplina do júri chocava com

alguns princípios básicos do pensamento jurídico de Hungria.

O objetivo fundamental do tecnicismo, não só na versão de

Nelson Hungria, era colaborar com os juízes para uma adequada

aplicação da norma positivada, conseqüentemente, um jurado,

que não tem o conhecimento da ciência jurídica, correria sempre

o risco de não aplicá-la corretamente, elidindo a sua efetividade

judicial, bem como a defesa social colocada como objetivo

político final de todo o sistema penal. É nesse sentido que a

nova disciplina do júri, retomando princípios daquilo que

Hungria considerava um anacrônico e indesejável liberalismo,

RICARDO SONTAG

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

290

perturbava as bases mais profundas do tipo de saber jurídico

que ele advogava; bases que adquiriam, nessas condições,

algum valor prescritivo, muito embora se tratasse, agora, de um

embate contra a lei positiva: em tese, o limite do tecnicismo.

Os últimos anos de vida de Hungria teriam sido marcados

por alguns repensamentos. Segundo René Ariel Dotti, Nelson

Hungria teria revisto, parcialmente, a “sentença de maldição

lançada contra o júri, admitindo a grandeza dos debates do

tribunal popular” (DOTTI, 2003: 218-219). O marco dessa virada

seria a carta-prefácio de Hungria ao segundo volume do livro

“Os Grandes Processos do Júri” de Carlos Araújo de Lima.

Segundo Hungria, esse livro encerraria um “notável trabalho de

fixação da “poeira de ouro” da eloqüência que vocês, oradores

do tribunal popular, espalham perdulariamente ao vento”

(HUNGRIA [1953] 1996: vii). Sublinhemos, porém: Hungria refere-

se à “poeira de ouro”; o próprio livro pretende trazer os grandes

processos do júri. Naquela época, o livro “Comentários ao

Código Penal” de Nelson Hungria já era famosíssimo, tanto é

que era muito citado também nos debates do júri, e a carta

termina fazendo referência a esse fato: “sinto-me tão

envaidecido com isso que chego quase a me reconciliar com o

tribunal do povo...” (HUNGRIA [1953], 1996: vii. Grifo meu). O

“quase” desta penúltima frase da carta deve ser enfatizado,

pois, em comparação com a grandeza da “sentença de

maldição”, com o vínculo bastante estreito entre as críticas ao

júri e a concepção de direito de Hungria, o tom positivo que ele

adota em relação ao tribunal popular na referida carta-prefácio

deve ser bem sopesado. Além disso, uma questão factual: a

altissonante crítica do artigo “A justiça dos jurados” é de 1956,

enquanto a carta-prefácio é de 1953, logo, essas palavras mais

mansas não bloquearam os duros golpes de três anos depois.

Portanto, na conclusão de Dotti, devemos sublinhar com força a

palavra ‘parcialmente’.

Onze anos antes da carta-prefácio encontramos, ainda,

outra esfumatura interessante do pensamento de Hungria. É

preciso lê-la ao contrário, porém, pois ele se refere ao magistrado

“A ELOQÜÊNCIA FARFALHANTE DA TRIBUNA DO JÚRI”:...

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

291

togado. No seu discurso de posse como desembargador do

Tribunal do Distrito Federal, Hungria afirmou que

ao juiz não se faz mister inteligência privilegiada ou farta

munição de cultura. O que lhe é necessário, antes de tudo, é o

espírito de ponderação, o ritmo psíquico, o equilíbrio moral, numa

palavra: o bom senso. (...) O bom senso, o avisado e lhano bom

senso dispensa os raciocínios sutis e os arabescos da dialética

(...) Os complexos tratados de sabedoria jurídica e psicologia

judiciária não valem por certo, as sentenças de Sancho Pansa na

ilha da Barataria (HUNGRIA, 1944: 572)

Essas críticas de Nelson Hungria a determinados erros dos

juízes togados não podem senão lembrar o modelo por

antonomásia de justiça penal: o júri. Exatamente o júri era

defendido por ser lugar do bom senso em oposição ao

mecanicismo formalista do juiz togado; exatamente os tratados

de psicologia judiciária eram invocados pelos positivistas como

razão primeira para não confiar a juizes leigos a justiça penal.

Porém, as críticas de Hungria ao “juiz técnico-apriorístico”, ao

“juiz-burocrata” (HUNGRIA, 1944: 573), devem ser bem

compreendidas. O contexto, em 1944, é bastante favorável: o júri

parece controlado através das mudanças introduzidas pelo

decreto-lei de 1938, e, posteriormente, pelo Código de Processo

Penal de 1941. Criticar certo tipo de postura da magistratura

togada arriscando a aproximar-se do júri parece não preocupar,

tanto é que esse problema não aparece no discurso de Hungria.

Além disso, ele não exclui a necessidade de conhecimentos

técnicos por parte do juiz. O bom senso não substitui a técnica,

mas opera como salutar limite, principalmente em relação ao juiz

no exercício do seu trabalho que é prático, e não teórico, em

última instância. Nas palavras de Hungria,

longe de mim afirmar que o juiz não deve ilustrar-se, consultando

a lição doutrinária e pondo-se em dia com a evolução jurídica;

mas, se ele se deixa seduzir demasiadamente pelo teorismo, vai

dar no carrascal das subtilitates juris e das abstrações inânes,

distanciando-se do solo firme dos fatos, para aplicar, não a

RICARDO SONTAG

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autêntica justiça (...) mas um direito cerebrino e inumano

(HUNGRIA, 1944: 573)

A questão, para Hungria, é claramente quantitativa: se a

apreciação da personalidade do criminoso não é adequada para

o júri porque demanda saberes especializados, o juiz togado

também não pode exagerar; se a doutrina jurídica é passagem

obrigatória para um magistrado, não se pode exagerar nem

mesmo aqui, pois seu compromisso é com a lei e com a prática

administração da justiça penal. Aliás, a própria doutrina jurídica

não pode exagerar: ainda dentro de uma perspectiva tecnicista,

Hungria criticava os “excessos da lógica formal”, que trairiam,

também, os objetivos práticos da concepção de saber jurídico do

próprio tecnicismo (HUNGRIA, 1940; 1942; 1949).

O tema do júri vai aparecer novamente na famosa

campanha de Hungria, em 1959, contra a pena capital imposta a

Caryl Chessman, no Estado da Califórnia, EUA. Segundo Nelson

Hungria, Chessman teria sido vitima do excesso de rigor de um

júri “composto quase exclusivamente de mulheres,

tiroidianamente emotivas e aprioristicamente inclinadas à

vingança dos imputados assaltos contra moças indefesas”.

Tendo se defendido sozinho, “alheio aos truques tribunícios”,

Chessman teria capitulado diante do “terrivelmente hábil

promotor Miller Leavy” (HUNGRIA apud DOTTI, 2003: 234)

10

.

Extraindo ensinamentos contra aqueles que pretendiam

reintroduzir a pena capital no direito penal brasileiro e

criticando, mais uma vez, o júri, Hungria afirmava:

Quando se tem conhecimento de casos como o de Chessman,

que, em virtude de certos indícios e uma confissão que ele insiste

em declarar extorquida pela violência, foi condenado à pena

última pela justiça emocional do júri

, sempre disposta a atirar, do

alto da varanda de Pilatos, bodes expiatórios à multidão sedenta

de vingança, é que se vê como estão distanciados da verdadeira

solução do problema da grande criminalidade esses que, entre

nós, presentemente, insistem em querer introduzir o assassínio

oficial entre as sanções do nosso Código Penal comum.

(HUNGRIA apud DOTTI, 2003: 229. Grifo meu)

“A ELOQÜÊNCIA FARFALHANTE DA TRIBUNA DO JÚRI”:...

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

293

Além do uso do velho estereótipo da emotividade feminina,

vale sublinhar alguns outros aspectos que têm interesse para o

desenvolvimento do tema deste artigo: entre os “ódios

vingativos” e os “ditames de piedade” que afligiriam o júri, aqui

a preocupação recai, naturalmente, nos ‘ódios vingativos’; a

“sentença de maldição” contra o júri é reafirmada, mais uma

vez, quatro anos depois das palavras mais mansas da carta-

prefácio citada anteriormente.

Embora a questão da pena de morte no pensamento de

Nelson Hungria não seja o objeto deste trabalho, ela deve ser

considerada aqui, por um momento, em relação ao que foi dito

sobre o “arquivo escondido” do tecnicismo, isto é, da sua

capacidade de, em alguns momentos, transformar-se de modelo

descritivo a modelo prescritivo em relação à legislação positiva.

Uma campanha contra a pena de morte, em um primeiro

momento, poderia parecer mais um desses momentos, já que

encontramos, no caso, um jurista tecnicista colocando em

suspenso, por assim dizer, a sua função primordial de colaborar

na correta aplicação judicial das normas positivas, em nome de

um empenho cívico. No caso das críticas ao júri, porém, este

empenho provinha claramente da sua concepção de direito

tecnicista, do seu modelo de método jurídico. No caso da pena

de morte, esse vínculo já não é tão claro - se existe é muito mais

frágil em comparação com a questão do júri. O lugar dos juristas,

a especificidade do ‘jurídico’ e do seu saber não são ameaçados

pela permanência ou não da pena de morte no ordenamento

jurídico.

Evidentemente, a discordância do jurista em relação a

determinadas soluções do ordenamento jurídico é prevista pelo

esquema tecnicista. Depois da exegese da norma já posta,

depois da reconstrução dogmática do sistema existente, sucede,

é verdade, a terceira fase: a crítica

11

. Crítica, porém, que em

comparação com o momento da “reconstrução dogmática do

sistema” é claramente marginal: não passa de “meras sugestões

ao legislador” (HUNGRIA, 1942: 8). O caso da pena de morte e o

embate contra o júri mostram, porém, que essa crítica pode

adquirir tons diferenciados. A diferença, aqui, é o vínculo mais

RICARDO SONTAG

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

294

ou menos estreito com a própria concepção de direito tecnicista.

É melhor dizer, portanto, que o tecnicismo enquanto tal

transforma-se em modelo prescritivo muito mais no caso do júri.

* * *

As críticas de Nelson Hungria ao tribunal popular, aos

descaminhos que os advogados do júri teriam imprimido na

cultura jurídico-penal brasileira, são parte integrante do

contexto histórico marcado pelo forte embate contra o chamado

“bacharelismo liberal”. Um embate que pode ser compreendido,

também, dentro do esquema da passagem do paradigma do

“jurista eloqüente” para o “jurista cientista”, que, no Brasil,

remonta às últimas décadas do séc. XIX e atravessa toda a

Primeira República. Literatos como Monteiro Lobato ([1919]

1964), Lima Barreto ([1923] 2001) e Oswald de Andrade ([1924]

1978) também participaram, nesse período, da construção do

sentido negativo do termo “bacharelismo”. Ao longo da Primeira

República, na esfera política, o bacharel “passa a dividir espaços

com outras elites de natureza cada vez mais tecnocrática”

(SILVA, 2005: 17; GOMES, 1994) e a ciência jurídica elaborava as

suas respostas: entre elas encontramos o positivismo

criminológico e o tecnicismo jurídico-penal.

O tribunal popular, no âmbito dessas transformações,

aparece como um grave problema. O tribunal do júri e o

advogado do júri acabam se transformando, no imaginário de

muitos juristas, como lugares de reprodução da velha e

indesejada retórica típica do bacharelismo liberal do Império.

Roberto Lyra, na época, já indicava que existiam críticas ao

júri do ponto de vista “técnico-científico” e “técnico-jurídico”. De

fato, na conferência de Hungria de 1942 essa diferenciação é

relevante, pois, a série de argumentos fundados na autoridade

da lei, isto é, na necessidade de garantir a efetiva aplicação da

norma positivada (algo que o júri não seria capaz de fazer em

virtude da incapacidade dos jurados de resistirem à retórica dos

“A ELOQÜÊNCIA FARFALHANTE DA TRIBUNA DO JÚRI”:...

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

295

advogados), são lançados também contra o positivismo

criminológico, acusado de, no final, contribuir para a reprodução

da retórica enganadora do júri forçando a aplicação de

orientações não adotadas pelo ordenamento jurídico.

Os argumentos fundados na autoridade da ciência e na

autoridade da lei convergem, ao final da estrada, na apologia do

especialista, do técnico, compreendidos em sentido genérico,

não necessariamente técnico no sentido mais particular do

tecnicismo jurídico-penal. É o que acontece no artigo de 1956 de

Hungria “A Justiça dos jurados”.

Apesar disso, a distinção entre essas duas séries de

argumentos também é importante para dar a devida

consideração aos diferentes contextos históricos pressupostos

por Hungria. O primeiro é composto pela preocupação com: a) os

usos tribunícios do positivismo criminológico; b) a afirmação do

tecnicismo jurídico-penal; c) os “malefícios” do próprio debate

das escolas penais; d) as disputas de espaço entre magistrados

e médicos no processo penal, onde o positivismo criminológico

tendia a aumentar o espaço destes últimos. Além, é claro, da

contraposição em relação aos argumentos “demo-liberais” a

favor do júri.

Já o segundo contexto com o qual dialoga o texto de 1956

de Hungria já não é mais aquele do embate contra os usos

tribunícios do positivismo criminológico ou do confronto contra o

debate das escolas penais. Interpõe-se, entre a conferência de

1942 e o texto de 1956, a queda do Estado Novo, o advento da

Constituição de 1946. Neste novo ambiente, o decreto-lei 167 de

1938 já não é mais o ponto de partida para uma etapa superior

da ciência do direito penal no Brasil, mas a recordação de uma

evolução interrompida e caluniada por aqueles que a

consideraram fruto de uma concepção fascista. O art. 141 § 28 da

Constituição de 1946 (e a sua respectiva lei de regulamentação)

é o alvo privilegiado - quase exclusivo, se compararmos com os

diversos alvos atingidos por Hungria na conferência de 1942. Os

argumentos da série “autoridade da ciência” e “autoridade da

lei” convergem na crítica ao que Hungria considerava um

anacrônico “demo-liberalismo”.

RICARDO SONTAG

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

296

A forte crítica de Hungria ao júri, enfim, aparece como a

amarração final de um pensamento que buscava a maior

coerência possível entre as concepções de código/lei, saber

jurídico e aplicação da lei. Uma determinada forma de conceber

a relação entre esses três elementos que marca, ainda hoje, a

postura considerada “tradicional” frente ao direito.

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Abstract: This article aims to explore the issue of the jury in

Nelson Hungria’s thought considering the historical context of

the transformations suffered by the criminal law institutions

during the “Estado Novo” (particularly the laws on the jury

and the criminal code – 1940 - and criminal procedure code -

1941) to the post scriptum of the process with the changes

brought by the Constitution of 1946 and the law 268 of 1947

and his later writings. The key aspect to be considered in this

process is the (in)distinction used by Hungria of the

arguments of the criminal-legal technicism in relation to those

of criminological positivism depending on historical context.

Keywords: Law history; Estado Novo; Jury; Nelson Hungria.

RICARDO SONTAG

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

300

NOTAS

1

Um esboço com esse objetivo, do ponto de vista da história do

pensamento jurídico, em: MARTINELLI, Thiago. O Tribunal do Júri no

Estado Novo – Reflexões acerca de um instituto jurídico amado e

odiado. In: 1 MOSTRA DE PESQUISA (CAXIF/UFSC), 2007. Anais…

Porto Alegre: Editora Dom Quixote, 2007. Digital.

2

Para um quadro bastante completo acerca do júri no contexto da

afirmação do modelo moderno de direito, cf. PADOA-SCHIOPPA,

Antonio. La giuria penale in Francia: dai ‘philosophes’ alla Costituente.

PADOA-SCHIOPPA, Antonio. La giuria penale in Francia: dai

‘philosophes’ alla Costituente. Milano: LEL, 1994.

3

Para evitar confusão terminológica, esclareçamos desde já que o

termo “positivismo criminológico”, aqui, não se confunde com

“positivismo jurídico”. Positivismo criminológico quer se referir,

especificamente, à tradição de Cesare Lombroso e de Enrico Ferri; aos

estudos de “antropologia criminal”, “sociologia criminal”,

“biopsicopatologia criminal”, etc., que floresceram na esteira desses

dois “pais fundadores”. O termo, em verdade, é usado em sentido

bastante amplo e sem debruçar-se nas possíveis diferenciações.

Anotemos desde já, porém, uma diferença interna relativa ao objeto

deste artigo: aquela entre o positivismo criminológico anti-júri (Viveiros

de Castro, por exemplo), e o positivismo criminológico pró- júri

(Evaristo de Moraes e Roberto Lyra, por exemplo). Mas aprofundar essa

estrada já seria uma pesquisa autônoma. Ainda sobre a terminologia, o

positivismo criminológico aparece nas fontes, às vezes, como “nova

escola penal”. Nova em relação ao “classicismo” da tradição cujo pater

sempre referenciado é Francesco Carrara. O “debate das escolas”

seria, então, entre “classicismo” e “positivismo criminológico”. Um

esquema muito simplificante, é evidente, mas como o objeto deste

artigo não são as escolas penais do séc. XIX, não valeria a pena

aprofundar-se nesse aspecto. Embora tecnicistas como Hungria

apareçam, às vezes, como herdeiros do “classicismo”, e, já que

estamos, agora, no objeto especifico deste artigo, vale uma

diferenciação para evitar a confusão entre tempos históricos distintos:

o tecnicismo, aqui, não é tomado como sinônimo de classicismo, já que

tanto na Itália, com Vincenzo Manzini e Arturo Rocco, p. e.

(SBRICCOLI, 1990), como no Brasil com Nelson Hungria, a pretensão é

“A ELOQÜÊNCIA FARFALHANTE DA TRIBUNA DO JÚRI”:...

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

301

de superar o próprio debate das escolas. A expressão “positivismo

jurídico” em sentido estrito (isto é, como uma qualificação da ciência

do direito, e não só como um direito fundado em normas estatais

positivadas) poderia ser identificado com o tecnicismo, mas, como o

termo praticamente não aparece nas fontes consultadas para esse

artigo e como ele pode ter sentidos muito diversos dependendo do

filósofo do direito de referência, preferi, aqui, usar somente a expressão

‘tecnicismo’.

4

Sobre essas transformações na ciência do direito penal, cf.

SBRICCOLI, Mario. La penalistica civile. Teorie e ideologie del diritto

penale nell’Italia Unita. In: COSTA, Pietro et al. Stato e Cultura

Giuridica in Italia dall’Unità alla Repubblica. Roma: Laterza, 1990. Para

o caso brasileiro, com especial atenção a Nelson Hungria, permito-me

reenviar ao que já pude escrever em SONTAG, Ricardo. Código e

Técnica. A codificação penal de 1940 e a construção da identidade do

penalista. Brasil (1930-1945). Florianópolis, 2007. Monografia

(Graduação em História) – UDESC. Orientador(es): Maria Teresa Santos

Cunha; Airton Cerqueira-Leite Seelaender.

5

Tradução Mônica Sol Glik. No original: “Admitamos por un momento

la paradoja de colocar en el siglo XIX – el siglo de difusion social de las

letras, el siglo de la linotipia y las revistas; sì, el siglo de la ley escrita y

del Estado un remoto entendimiento que todavía agota en la tarea del

ius dicere el momento decisivo de la creación jurídica.”

6

Tradução Mônica Sol Glik. No original: “Desde el punto de vista que

ahora se adopta el paradigma oratório-forense implica además elevar a

la vieja abogacía desde su actual condición de mera profesión jurídica

(entre otras no menos deseables y dignas) a la categoría ontológica

donde reina solitario el jurista perfecto.”

7

No original, em italiano: “intorno a quel nuovo paradigma del giurista

universitario che progressivamente subordina a sé ogni altra possibile

immagine del lavoro giuridico.”

8

No original: “(...) il maggior tecnicismo assunto dal nuovo codice

penale doveva rendere vieppiù intollerabile qualsiasi intervento di

profani”.

9

René Ariel Dotti, por exemplo, cita a saudação de Evandro Lins e Silva

quando da aposentadoria de Nelson Hungria no Supremo Tribunal

Federal onde era mencionada a “veemência da linguagem”, as

qualidades de polemista exímio com “eloqüência faiscante e dialética

contundente” do ministro (DOTTI, 2003: 205)

RICARDO SONTAG

HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009

302

10

O texto é reproduzido na integra por René Ariel Dotti, trata-se da

prolusão de Nelson Hungria no Centro Acadêmico da faculdade de

Direito da Universidade de São Paulo em maio de 1959 intitulado “Um

condenado à morte”.

11

Essa terceira fase (“crítica”), de fato, é bastante trascurada por

Hungria nos seus textos metodológicos, muito embora existam

referências esparsas acerca da existência desse momento ao longo da

argumentação. De qualquer forma, essas três fases que constituem a

dogmática jurídica tecnicista (1. exegese; 2. reconstrução dogmática do

sistema ou dogmática em sentido estrito; e 3. crítica) é claramente

delineada pelo expoente do tecnicismo italiano Arturo Rocco (1910),

que é de onde Hungria empresta esse esquema, bem como a

“domesticação” e marginalização do momento “crítico” e “reformista”

da ciência do direito penal.

Artigo recebido em 08/2009. Aprovado em 10/2009.