O amicus curiae pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas

ALGUMAS ANOTAÇÕES ACERCA DA PARTICPAÇÃO INTERVENTIVA DO AMICUS CURIAE NO PROCESSO

Introdução

                                    A figura técnica do amicus curiae, ou amigo da Corte, está assim prevista no Código de Processo Civil (CPC):

Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação.

§ 1º A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos, ressalvadas a oposição de embargos de declaração e a hipótese do § 3º.

§ 2º Caberá ao juiz ou ao relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do amicus curiae.

§ 3º O amicus curiae pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas.

                                   Apenas um artigo e três parágrafos tratam da matéria, aparentemente simples, mas na verdade bastante complexa quando do exame de casos concretos em que sua intervenção é requerida ou requisitada, a demandar análise de requisitos objetivos e subjetivos de sua eventual admissibilidade, não obstante previsões em normas esparsas, como as Leis nºs 4.726/65 (Junta Comercial); 6.385/76 (CVM); 8.906/94 (EOAB); 9.868/99 (ADI); 9.882/99 (ADPF); 10.250/2001 (JEF); 11.417/2006 (Súmulas Vinculantes) e 12.529/2011 (CADE), além dos regimentos dos tribunais, todos, porém, com a mesma finalidade processual e institucional.

                                   Cuida-se de uma das modalidades interventivas de terceiro que é admitida nos processos com eficácia erga omnes em seus julgados, consoante se observa das matérias elencadas nas normas acima citadas, não como parte, senão para fornecer elementos instrutórios como colaborador, de prova ou jurídicos, capazes de viabilizar uma solução adequada em causas revestidas de complexidade específica, trazendo para a Corte elementos que possam contribuir no incremento da qualidade da prestação jurisdicional. 

                                   São muitas questões que devemos observar não só para a admissão interventiva, que pode ser múltipla, quanto para o processamento subsequente e os demais efeitos decorrentes do julgado, e ainda quanto à fase recursal e de cumprimento. Vejamos.

1. Competência

                                   Logo na cabeça do art. 138 do CPC, observamos que o requerimento pode ser direcionado ao “juiz ou o relator”.

                                    O requerimento interventivo pode se dar tanto perante o juízo originário, nas ações de competência isolada do juízo de primeiro grau, quanto perante o relator da ação originária ou do recurso, nos tribunais ordinários ou excepcionais (STJ e STF).

                                   Da leitura do § 1º do mencionado art. 138 do CPC, vê-se que a “intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência”, ou seja, caso aquele que venha a ingressar no feito nessa qualidade eventualmente tenha foro privilegiado, a competência permanecerá no juiz natural da causa, que seguirá perante o mesmo juízo então competente.

2. Momento do ingresso

                                   Na instância primeira o pedido de ingresso pode ser requerido a qualquer tempo, até mesmo para seguir intervindo como agente auxiliar na via recursal, havendo, buscando maior eficácia informativa no julgamento subsequente, porém quanto antes for feito o pedido interventivo, mais condições terá esse colaborador de prestar informações de importância técnica e/ou jurídica ao julgador, como forma de legitimar socialmente a decisão decorrente.

                                   Já perante os tribunais, o requerimento deve ser formalizado a qualquer tempo antes de pautado o processo ou iniciado o seu julgamento, consoante decidido pelo STJ na QO no REsp nº 1.152.218/RS, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, DJe 9/10/2014, permitindo que a Corte disponha de elementos informativos possíveis e necessários à resolução da controvérsia.

3. Participação no processo

                                   Conforme lição do Min. Villas Bôas Cuevas, do STJ, na PET no REsp nº 1.870.834/SP, de 28/04/2021, “para a admissão de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada como amicus curiae, devem ser sopesadas a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda, a repercussão social da controvérsia, a pertinência temática (correspondência entre a finalidade institucional da entidade e o objeto da lide) e a representatividade adequada do interessado”.


                                   Nesse prisma, deferida a intervenção do amicus curiae, pessoa, órgão ou entidade, não só nas ações controladoras da constitucionalidade das normas, como também em toda aquela com repercussão geral que superem os meros direitos subjetivos dos litigantes, “de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se”, inclusive do Ministério Público, poderão, por simples petição e através de advogado devidamente habilitado (STF, ADPF 180/SP), apresentar memoriais, prestar informações que o juízo o requisitar ou que entender pertinentes, como também poderá realizar sustentação oral, se assim o recomendar a natureza da causa.

                                   De se registrar que a admissão só deverá ser deferida quando os conhecimentos do interventor, técnico e/ou jurídico, puderem refletir no julgamento, de modo a priorizar o interesse social coletivo ou difuso, de determinado grupo ou classe interessada, que se denomina pertinência temática, caracterizando sua representatividade adequada para a causa.

                                   Essa modalidade interventiva, que tem por finalidade colaborar subjetivamente e de forma neutra, sem interesse jurídico, com uma decisão mais acertada, e não se confunde com aquelas denominadas intervenções de terceiro típicas (assistência, em defesa de interesse comum, ou chamamento ao processo e denunciação da lide, na busca de direito de regresso), nas quais os terceiros poderão defender diretamente seus direitos subjetivos, já que o amicus curiae não se torna parte no processo, senão mero colaborador, nem se confunde com a atuação do Ministério Público como fiscal da lei, cuja função institucional é, ao final, opinar pelo acolhimento de tal ou qual tese em julgamento, nas quais já sopesados os elementos colacionados aos autos.

                                   Os limites dessa participação devem ser estipulados pelo juízo competente, nos termos do § 2º do art. 138 do CPC, em especial para evitar o uso indevido do instituto, causando eventuais tumultos e previsível demora no julgamento do processo, intimando o interventor, apenas quando convocado, para que, em 15 (quinze) dias, apresente os elementos capazes de influenciar no aprimoramento da decisão judicial.

                                   Assim, a admissão do interventor no processo ou recurso é, portanto, pautada no princípio da utilidade processual, no exame de sua possível contribuição, de forma que deve ser indeferida a intervenção se a possível apresentação desses supostos elementos de colaboração já não mais guardem relevância fática ou jurídica úteis para a solução do processo ou incidente.

4. Legitimação recursal

                                   O § 1º do art. 138 do CPC estipula que essa modalidade interventiva não autoriza a interposição de recursos quando admitida de ofício ou a requerimento, ressalvadas a oposição de embargos de declaração e a hipótese do § 3º, ou seja, poderá ainda recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas do qual participar (art. 983 do CPC), mas também da decisão que indefere o pedido de intervenção, adequando-se o agravo de instrumento, no primeiro grau; o agravo interno diante de decisões monocráticas de relatores perante os tribunais, ou o recurso especial, diante de decisão colegiada dos tribunais estaduais ou tribunais federais.

5. Coisa julgada e cumprimento

                                   Como não figura como parte no processo ou recurso que intervém, o amicus curiae, ao menos em regra, não se submete aos efeitos da autoridade da coisa julgada material, previstos no art. 506 do CPC, excetuando-se eventuais efeitos erga omnes que possam atingir o espectro dos seus direitos subjetivos.

                                   Também pelo fato de não ser parte no processo, não terá o amicus curiae legitimidade para requerer eventual cumprimento da decisão objeto do julgado, o que deve ser requerido oportunamente por quem em tese legitimado, como também, por óbvia decorrência, seus advogados constituídos não fazem jus ao recebimento de honorários sucumbenciais.

Conclusões

                                   Como se observa, é de grande importância a atuação do amicus curiae legitimado na tarefa hermenêutica, ao levar à Corte elementos, informações e esclarecimentos específicos possivelmente ainda não agitados pelas partes ou mesmo não visualizadas pelo julgador singular ou colegiado competente no processo ou recurso analisado, colaborando sensivelmente na formação de um resultado interpretativo mais adequado das leis e da própria Constituição, como lei maior.

                                   Essa participação especializada viabiliza um efetivo debate sobre todos os pontos de vista em questão, como também possibilita diversas valorações em busca de um consenso ao menos majoritário sobre a questão posta, legitimando ao máximo as decisões judiciais com eficácia multiplicadora, concretizando primordialmente diversos princípios constitucionais e processuais, como o efetivo acesso à jurisdição e o contraditório, a isonomia e a cooperação.

Por:

Ricardo de Oliveira Paes Barreto

Mestre e Doutor em Direito Processual pela FDR-UFPE

Desembargador do TJPE