O que a geografia estuda yahoo

1Ambos os tradutores resolveram compartilhar os saberes do Maximilien Sorre, que é o último geógrafo clássico e quem dedicou maiores estudos para alimentação, juntamente com Josué de Castro.

2Maximilien Sorre nasceu em 16 de julho de 1880 em Rennes e faleceu no dia 10 de agosto de 1962, em Messigny-et-Vantoux. O geógrafo francês carregou e desenvolveu as instituições e as orientações, incialmente formuladas por Vidal de la Blache, durante a primeira metade do século XX. Produziu até sua morte, sendo sua última obra L'Homme sur la Terre Traité de géographie humaine, de 1961.

A Geografia da Alimentação

3“A escassez de materiais alimentares após a última guerra lembrou a atenção dos geógrafos a um importante capítulo de sua disciplina, o da alimentação1 Teria sido suficiente para eles seguirem a lição de Vidal de La Blache para os geógrafos franceses quando ele escreveu: “Entre as relações que ligam o homem a um certo meio, uma das mais tenazes é aquela que aparece estudando os meios de se alimentar; o vestuário e o armamento são muito mais propensos a serem modificados do que o regime alimentar pelo qual, empiricamente, os diferentes grupos suprem as necessidades do organismo, de acordo com os climas em que vivem”. Uma orientação fecunda estava contida nestas poucas linhas. Mas os eventos contemporâneos lançaram bruscamente uma luz sobre o assunto e nos deram outra consciência de sua importância.

Figura 2 O número das Annales de Géographie onde foi publicado o artigo

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4Certamente os geógrafos ainda sabiam que a fome, e seus cortejos de males, sempre acompanharam a história dos homens, e que ela fora a mola de suas ações. A história lhes conservava a lembrança das grandes fomes e eles não tinham necessidade de retroceder a muitas gerações anteriores para reencontrar o arrepio dos pavores causados pela ameaça da penúria. Os jornais traziam-lhes o eco dos sofrimentos infligidos aos grandes países por uma colheita ruim. Afinal, para grande parte da humanidade ocidental, essas coisas estavam distantes, como um pesadelo que desaparece. E de repente, essas realidades se tornaram próximas e familiares para nós novamente, porque passamos fome, porque vimos ao nosso entorno estranhas doenças que conhecíamos somente por descrições medicais, porque grupos inteiros carregam o estigma da desnutrição. A extensão do mal comoveu estudiosos e estadistas. O problema da alimentação se impôs a eles com uma urgência temível. Grandes organizações internacionais assumiram a tarefa de estudar seus dados e suas soluções, como a Organização Mundial para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Era o tempo em que os fisiologistas começaram a lançar as bases de uma nova ciência, a ciência da alimentação, possibilitada pelo progresso da ciência da energia biológica e da química biológica. Um imenso campo se abriu para suas investigações. Economistas e biologistas compreendiam finalmente que os problemas humanos não podem ser colocados somente em termos de produção e de troca, nem mesmo unicamente em termos de consumo, mas em termos de necessidades. As ciências do homem tornavam-se novamente humanas.

5A geografia humana participou desse movimento geral. Como dar ao ecúmeno uma imagem inteligível se não sabemos o que os homens comem e em qual medida eles podem satisfazer suas necessidades alimentares? A potência de trabalho dos grupos, mesmo sua resistência às doenças infecciosas depende em grande parte dessa satisfação. Uma economia que negligenciasse tais dados seria privada de base. Devemos, então, olhar a geografia da alimentação como um capítulo capital da geografia humana. Dispomos de uma documentação cuja massa está aumentando. As pesquisas realizadas pelas agências nacionais do tipo do nosso Institut National d’Hygiène, ou coletadas pelas organizações internacionais são oferecidas à nossa exploração. Procuraremos menos resumir o conteúdo desse estudo do que definir seu conceito central, mostrando o seu significado e finalmente identificando seu escopo geral e atual.

I

6Da mesma forma que propusemos para a geografia das doenças infecciosas uma noção central, a do complexo patogênico, também é preciso que encontremos para a geografia da alimentação um conceito geral, concreto, suscetível de dar apoio à análise geográfica, seja porque ela se atém aos grupos humanos localizados, seja porque ela se relaciona com outras noções geográficas. A noção de regime alimentar responde a essas exigências. Precisemos. Afastamos o significado médico do termo. Chamamos de regime alimentar de um grupo humano o conjunto dos alimentos ou preparações alimentícias graças ao qual ele sustenta a sua existência ao longo do ano. Essas combinações são por vezes referidas pelo nome do tipo de alimento que lhe serve como núcleo (regime carnívoro, regime lácteo etc.). Conceito concreto, e não teórico, que evidenciamos por observação direta, como todos os outros conceitos geográficos.

7Vidal de la Blache observa que os gregos tinham ficado chocados com as maneiras de se alimentar entre os povos2. Esses mediterrâneos consumidores de trigo, de azeite de oliva, de vinho, agricultores sedentários, haviam entrado em contato nos confins de seu domínio com os nômades que vivem do leite de seus cavales – os galactófagos –, com os pescadores, cujo peixe constituía o principal alimento – os ictiófagos. Suas lendas contavam-lhes dos comedores de lótus – os lotófagos. Mais seguramente ainda que a cor da pele ou da estatura, essas particularidades relacionadas aos recursos do meio ambiente e do gênero de vida pareciam ter sido retidos pelos geógrafos gregos como características étnicas. O uso do leite e da manteiga pelos homens além dos Alpes não atingirá menos os escritores latinos desde Plínio até os cronistas galo-romanos. Estes que falarão com repugnância ou com pavor desses grandes bárbaros com bigodes pingando manteigas ou uns ferozes cavaleiros que devoravam uma carne corrompida, endurecida entre a sela e o couro de seu cavalo. No nosso Ocidente, ao longo dos séculos, cada região desenvolveu ou consolidou seus hábitos alimentares. Eles fazem parte de uma descrição nacional. Pão preto e pão branco, o shibboleth, disse Goethe. Os povos falam com surpresa e escárnio da cozinha de seus vizinhos. Num mesmo país, as diferenças provinciais inspiram chacotas ofensivas transmitidas de geração em geração.

8A descoberta do mundo, a partir do século XVI, amplia o campo de observação dos europeus. Das ilhas do Pacífico e das clareiras da floresta equatorial às costas geladas onde os inuítes se empanturram com a gordura dos animais marinhos, os viajantes encontram povos cujo cardápio está em harmonia com os recursos do meio ou as exigências do clima. A descrição do regime está incluída na descrição geográfica da mesma forma que estão as descrições do vestuário, da habitação, das ferramentas. Os filósofos se perguntarão se a razão da fecundidade das populações marítimas não está relacionada com o seu consumo de peixe. A intuição dos geógrafos gregos ganha cada vez mais um valor científico.

9Mas, para que o conceito de regime alimentar possa assumir toda sua importância, é preciso passar do estágio da simples descrição qualitativa para o das definições quantitativas, e essa só acontece com os progressos das ciências físicas e naturais, na era aberta pelos trabalhos de Lavoisier sobre as combustões. Estamos em um momento em que é permitido especificar os requisitos que deve satisfazer uma definição científica dos regimes alimentares. As descrições deixam de ser uma coleção de curiosidades ou um artigo de folclore.

10Para um geógrafo, o regime alimentar é relativo não ao indivíduo, mas a um grupo humano bem determinado e localizado. Conquanto seja um grupo de pessoas cujo grau de diferenciação social é baixo, não há dificuldade à primeira vista. Cada aldeia, cada tribo forma um conjunto homogêneo, cujos hábitos alimentares são uniformes. Ainda que se convenha verificar se as categorias que aparecem nessas sociedades, muito menos simples do que se pensa, têm, pelo menos em certos períodos, um regime especial. O embaraço aumenta nas sociedades onde há uma estratificação acentuada. Já com um padrão de vida apreciavelmente igual, os regimes urbanos podem diferir dos regimes rurais. Sobretudo a desigualdade de níveis de vida entre as classes pode introduzir fortes contrastes entre a alimentação dos ricos e a dos pobres. Sem dúvida, do ponto de vista qualitativo, primeiro discernimos muito bem o que se opõe aos hábitos tradicionais de todos os ingleses aos de todos os franceses, por exemplo. No entanto, para que a comparação seja válida, devemos estabelecê-la entre grupos sociais de nível equivalente em ambos os lados do Estreito. A menos que queira ter uma visão superficial e falsa, o geógrafo deve aqui olhar sob o prisma do sociólogo: em todo caso, circunscrever e delimitar claramente seus grupos.

11Dito isso, a definição do regime compreende o conjunto dos alimentos sólidos ou líquidos, de origem mineral, animal ou vegetal. Essa definição comporta uma enumeração com indicação das quantidades. Em seguida, uma reclassificação entre as três grandes categorias de princípios alimentares, os lipídios, os glucídios e os prótidos. Cada uma delas possui seu valor energético particular. Aplicando o princípio da isodinâmica, torna-se fácil calcular o valor energético de um regime. Tabelas internacionais fornecem a composição de muitos alimentos, partindo do número de calorias adquiridas a partir de seu consumo. Acordos internacionais também fixaram os padrões de energia necessários para ambos os sexos, em várias idades e nas principais situações (repouso, exercício moderado, exercício de força). Para evitar complicar essa apresentação, negligenciamos as dificuldades decorrentes das diferenças doutrinárias sobre as variações do metabolismo basal de acordo com as latitudes. A comparação dos valores encontrados com as normas dá uma primeira aproximação do valor energético do regime de um grupo; ela torna possível julgar se, dado seu gênero de vida, esse grupo está subnutrido ou não. Podemos também, conhecendo o peso das colheitas e sua equivalência em calorias, comparar os recursos da agricultura e da criação pecuarista com as necessidades. Esses métodos até agora parecem não ser familiares aos geógrafos, os quais, no entanto, deveriam ter grande interesse em adotá-los.

12O princípio da isodinâmica, contudo, não poderia ser aplicado com todo seu rigor. As três principais categorias de princípios alimentares não são intercambiáveis e a experiência comum, confirmada pelos trabalhos dos fisiologistas, mostra que elas devem ser representadas num regime normal segundo certas relações. Mais uma vez há padrões. Os geógrafos conhecem as consequências desagradáveis da insuficiência de alguns regimes em proteínas animais (China, Índias, florestas equatoriais...). O desequilíbrio das rações é ainda mais frequente do que a sua insuficiência absoluta.

13Há mais. O regime de todos os grupos humanos comporta, fora dos compostos orgânicos, substâncias minerais ou organominerais. Algumas são destinadas à construção ou renovação dos tecidos. Outras têm funções mais complexas e às vezes mal conhecidas, seja porque elas contribuem para a manutenção da constância química do sangue e dos humores, seja porque elas desempenham um papel de catalisador. Os efeitos da deficiência de cálcio ou de fosfato são claros. Será que criadores não aprenderam, há muito tempo, a reconhecer as raças do granito e as raças do calcário? A administração de iodo faz com que retroceda a anomalia como o bócio, cuja descrição incidiu no quadro clássico de muitas populações de montanha, mas que também foi encontrada nas populações das planícies. Os fisiologistas perceberam a ação de outros elementos minerais presentes no organismo em proporções infinitesimais. Uma menção especial entre os compostos minerais é devida ao cloreto de sódio, cujo papel nos aparece tão cedo nas grandes correntes de trocas da humanidade. As regiões salinas eram, muito antes da história, os pontos focais das primeiras rotas sobre nosso solo. As barras de sal tinham, até recentemente, um valor comparável ao dos metais preciosos no comércio africano. É possível que práticas estranhas nos lugares mais distantes, como a geofagia – talvez até a coprofagia – possam estar relacionadas à deficiência do regime em cloreto de sódio. O geógrafo deve, portanto, perguntar a si mesmo como os grupos humanos que ele descreve obtêm os elementos minerais necessários para o equilíbrio de sua dieta.

14Finalmente, há os compostos amino orgânicos, vitaminas cuja importância em todos os ciclos orgânicos; aparece-nos cada vez mais considerável. Vimos durante a última guerra como a deficiência dos regimes ressurgiu, juntamente com o edema da fome, uma doença como a pelagra, com formas agudas muitas vezes aterrorizantes. Todas as funções, do crescimento à reprodução, estão ligadas à presença de vitaminas. A lista está crescendo a cada dia. Certas peculiaridades dos regimes alimentares podem por um longo tempo parecer estranhas para nós, às vezes repugnantes. Tais como o consumo, pelos povos da floresta, como guloseimas, de lagartas ou de outros pratos similares. Não deixamos de nos impressionar com a frequência das práticas culinárias, como os molhos que acompanham o consumo de arroz na Ásia das monções e os que aumentam a suavidade do milhete na África negra. Eles são semelhantes, e essa generalidade dificilmente pode ser atribuída à necessidade de um suplemento energético, nem à necessidade de excitar o apetite – embora essa última explicação não seja sem valor. Devemos voltar-nos para o lado das vitaminas para encontrar a razão das práticas que parecem inexplicáveis. O instinto dos povos primitivos é um guia seguro para elas. A descrição de um regime alimentar, portanto, inclui necessariamente a enumeração das vitaminas que acompanham os alimentos de base.

15A menção das vitaminas chama atenção sobre as preparações submetidas pelos alimentos brutos. De fato, essas substâncias se encontram desigualmente distribuídas no organismo animal ou vegetal. O fato de esburgar um grão de trigo ou um arroz, descascar uma fruta, priva-os de uma parte de sua virtude. O polimento do arroz está na origem desta doença tão difundida no Extremo Oriente, o beribéri. Desde a demonstração feita por Eijkmann, não hesitamos mais sobre a natureza dela: o beribéri não é uma doença infecciosa, mas uma doença de carência específica dos países onde o arroz esburgado forma a base da alimentação. O excesso de peneiragem também diminui o valor nutricional do trigo. Além disso, o cozimento destrói os princípios ativos de certas matérias, se o cozimento as torna mais digeríveis. Um regime normal inclui uma proporção adequada de alimentos crus. Isso significa que um estudo sobre os regimes envolve mais do que a análise das matérias-primas. Ele abrange também a análise das preparações. Uma ótima cozinha é uma marca de refinamento cultural, não apenas nas classes ricas, mas na massa da nação. Isso já seria suficiente para reter o geógrafo. Mas ficou claro que essa geografia da culinária pode reivindicar mais títulos científicos.

16Enfim, a definição dos regimes alimentares abrange a totalidade dos alimentos absorvidos durante um ano, ou seja, durante o ciclo climático elementar. Esse requisito exige algumas explicações para um geógrafo. Na maioria dos grupos humanos, a alimentação é distribuída de forma muito desigual ao longo do ano, a tal ponto que seríamos tentados a falar de uma sucessão de regimes em vez de um regime. Entre muitos povos de caçadores ou de pescadores, o ano foi um longo período de restrições, interrompido por curtas patuscadas. Entre a maioria dos agricultores primitivos, a regularidade é maior. Contudo, as reservas abrigadas em celeiros raramente são suficientes para assegurar a quantidade necessária de alimentos na entressafra; entre duas colheitas, muitas vezes, há um período de escassez nas semanas que precedem à ceifa. Mesmo em nosso país, no final do século XVIII, pelo menos nas regiões mais pobres, apenas a ajuda entre os camponeses permitia que os menos afortunados não morressem de fome nesses momentos de entressafra. Por outro lado, há dias de vida generosa e de banquetes quando, depois de um jejum mais ou menos prolongado, empanturram-se com avidez. Dias de captura feliz, festas solenes anunciadas pelos sinos, também dias de trabalho duro, nos quais a abundância de cardápios é essencial para manter o esforço, dias de colheita, dias de debulhamento. Ficaríamos tentados a pensar que essas são oportunidades excepcionais e que não há necessidade de considerá-las. É visível, no entanto, pela importância das provisões colocadas em reservas, que seria um erro. Os sociólogos holandeses notaram que as festas celebradas com grandes refeições são muito comuns em Java, por não serem um evento regular do regime alimentar. Devemos, todavia, tomar a precaução, sempre que esses consumos extraordinários acompanharem grandes trabalhos, de considerar o excepcional desgaste fisiológico como contrapartida.

17Nosso objetivo não é fazer uma classificação ou um mapa dos regimes alimentares. Esboçamos uma descrição em Les Fondements biologiques de la géographie humaine. Queremos resumir aqui para os geógrafos as técnicas do estudo dos regimes. Durante suas pesquisas regionais, eles podem, conhecendo essas técnicas, trazer uma colaboração útil ao trabalho comum. Pensamos, acima de tudo, que essas indicações provavelmente ajudá-los-ão na exploração dos dados coletados por especialistas. E, finalmente, eles sugerem algumas reflexões sobre o interesse geográfico dos regimes.

II

18Quando pesquisamos o que determina o interesse geográfico dos regimes alimentares, aparecem-nos inicialmente como as expressões do meio geográfico por duas razões: as possibilidades do meio determinam a composição e a quantidade de alimentos disponíveis para o grupo, e as propriedades do meio climático determinam as exigências alimentares dos seres humanos. São essas as duas primeiras relações que parecem tão evidentes que não necessitam de demonstração.

19O regime dos povos da Oceania reflete a riqueza dos recursos vegetais dos arquipélagos e a fertilidade dos mares que os banham. O coqueiro, a fruta-pão e o taro fornecem a base de sua alimentação vegetal. Eles evocam aos nossos olhos toda uma paisagem natural. Os grandes cereais da civilização, o trigo, o milho e o arroz cobrem cada um áreas consideráveis do planeta. Mas suas formas originais foram ligadas a condições muito mais localizadas. Talvez seja principalmente quando examinamos as fontes de gorduras animais e vegetais que vemos melhor como certos elementos do regime alimentar evocam todo um quadro geográfico. Eu disse o essencial sobre esse assunto em um artigo anterior3. Esse mesmo consumo de gorduras entre os povos das regiões árticas evidencia o vínculo existente entre o regime alimentar e as necessidades da termogênese. Finalmente, a natureza e a ração das proteínas animais também refletem as propriedades do meio. Mas já observamos a esse respeito que nem sempre os recursos e as necessidades se equilibram. Os povos da floresta da zona equatorial têm regimes muitas vezes desequilibrados pela insuficiência de proteínas animais. Não podemos então ver os regimes alimentares como a expressão de uma adaptação perfeita. Os grupos humanos vivem, em um estado de natureza e até em um nível mais alto de cultura, à margem das possibilidades com mais frequência do que pensamos. De outro lado, numa mesma zona climática, pecuaristas e agricultores subsistem lado a lado, praticando regimes diferentes (Fulas no meio das populações agrícolas do Sudão). De uma forma geral, há nessas regiões marginais de estepes possiblidades diversas e também tipos de alimentações diferentes. Tudo isso convida o observador a desconfiar das interpretações muito simplistas. Se, entre os primitivos, o regime alimentar oferece um reflexo do meio, direta ou indiretamente, muito rapidamente, outras influências intervêm. Tanto mais entre as pessoas civilizadas. O regime alimentar é o elemento mais característico e menos simples do gênero de vida com o habitat. Portanto, sofre a ação de todos os outros elementos que entram na definição do gênero de vida.

20E, incialmente, o regime alimentar reflete fielmente o conjunto de crenças do grupo, tanto por suas proibições quanto por seus aspectos positivos. Muitas vezes, os homens não usam para se nutrir tudo o que a natureza põe à disposição deles em seu entorno. Eles se abstêm de certos produtos ou os racionam durante um período do ano. Não é porque as necessidades deles são menores. Nem é porque o consumo deste ou daquele alimento em um clima quente representaria um inconveniente. Já se abusou dessas explicações racionalistas. Se houver um acordo entre o costume e a utilidade, o acaso é o único responsável por isso. Na verdade, o costume é baseado em um conjunto de concepções, algumas das quais são hoje pouco inteligíveis.

21As relações entre os costumes alimentares e as religiões representam um capítulo bem conhecido da etnografia: um dos quais o interesse geográfico é o mais sensível4. A crença em uma relação mística entre um animal e uma planta ou um grupo humano se encontra na origem de várias interdições alimentares. A proibição permanece mesmo quando a lembrança de seu motivo já desapareceu há muito tempo. Em um grau mais alto, a crença nas reencarnações, o respeito por tudo o que vive têm consequências análogas. Às vezes, a proibição cobre uma grande categoria de alimentos. O brâmane se abstém de comer carne, embora pratique a pecuária e consuma leite e manteiga clarificada. A pobreza do regime em proteínas animais afeta o vigor da população. Não conseguiríamos parar de enumerar a série de alimentos considerados impuros, seja por grupos muito pequenos, seja por imensas comunidades religiosas – a carne de porco entre muçulmanos, por exemplo. Por outro lado, crenças analógicas tornam recomendável o consumo de certos órgãos animais considerados nobres. A antropofagia ritual, tão difícil de explicar, sem dúvida se relaciona com concepções dessa ordem.

22A maioria das religiões impõe a seus fiéis períodos de purificação acompanhados de jejuns ou de abstinências. É, na Igreja Católica, a quaresma com seu jejum de quarenta dias, a abstinência de carne da sexta-feira, do sábado, as vigílias. Se, na Igreja Romana, as prescrições religiosas se tornaram menos rígidas ao longo do tempo, elas conservaram até nossa época um grande rigor na Igreja Ortodoxa. Não faz muito tempo que nos Bálcãs a interdição de comer carne durava 206 dias por ano. Não podemos falar sobre a Quaresma dos cristãos sem mencionar o Grande Jejum dos Judeus, o Ramadã dos Muçulmanos. Essas proibições tiveram como corolários nos países cristãos o desenvolvimento do consumo de peixe e, consequentemente, o das indústrias de conservas, secagem, salga e defumação. Relações precoces foram estabelecidas entre as regiões costeiras e o interior. A pesca fluvial também teve sua contribuição. O papel dos peixes de água doce na constituição dos regimes alimentares forneceria um assunto de estudos muito interessante. Estamos assaz informados sobre as populações primitivas da floresta equatorial e sobre os moradores de rios do Extremo Oriente; mesmo na Europa Oriental. Ainda teríamos muito a aprender sobre esse assunto concernente à Europa Ocidental.

23Vemos regiões onde um regime alimentar altamente especializado tem negligenciado oportunidades importantes do meio sem que as concepções religiosas possam ser desafiadas. Sion observando os recursos escassos dos chineses em sua fauna verifica que eles comem apenas carne de porco e de aves de criação, e que nenhum laticínio entra em sua alimentação. “É ainda mais surpreendente que a região onde a nação chinesa se cristalizou, nas planícies da Terra Amarela, tenha frequentemente uma vocação pastoral”. J. Sion supõe que o gênero de vida agrícola se formou por uma concentração de esforço em planícies de dimensões reduzidas. Especialização estreita desconhecida de outros povos e que resulta em um regime alimentar violentamente oposto ao dos pastores nômades vizinhos. Neste caso, não é mais a religião, mas todo o peso milenar de um gênero de vida tradicional que pesa na balança. O fenômeno não é único.

24Se o regime alimentar nem sempre está de acordo com as virtualidades do meio, isso não é devido apenas às técnicas de produção tradicionais do grupo humano, mas também à sua estrutura econômica e social. Durante o período entre as duas guerras, os países da Europa danubiana eram, em geral, países agrícolas que produziam cereais, trigo e milho. Eles demandavam à Europa Ocidental produtos manufaturados e, para pagar por eles, comercializaram parte de sua colheita, a melhor. Eles vendiam seu trigo e consumiam seu milho. Conhecemos as consequências do consumo muito exclusivo de milho, se não for corrigido de maneira adequada. Outro exemplo, muito mais perto de nós. Durante muito tempo, na maior parte do interior da França, os produtos secundários da fazenda, os produtos do curral, não foram utilizados na fazenda. Exceto na época da colheita, eles eram vendidos nos mercados urbanos próximos. Seu preço nem sempre fazia parte da contabilidade geral da fazenda. Passava-se pelo caixote do agricultor. Portanto, esses são produtos de alto valor alimentar, como ovos que não foram incluídos no regime do produtor.

25Entendemos aqui o quanto essa noção, à qual éramos tentados a conferir certa constância, pode ser contingente, uma vez que ela varia de acordo com todas as características do grupo ao qual está ligada. As mudanças no padrão de vida na França rural no decorrer dos últimos cinquenta anos concentraram-se principalmente nos regimes alimentares, e essas mudanças foram profundas. Na década de 1880, o camponês francês em geral se alimentava como seus ancestrais. A introdução da batata no século XVIII, nas regiões mais pobres, evitara a ameaça de fome. Mas nem a carne nem o açúcar foram mais proeminentes do que no passado nos cardápios. E sempre continuava a regra de vender para o exterior tudo o que era vendável, ou seja, tudo o que era produto de qualidade. A evolução se precipitou, sobretudo, após o final da Primeira Guerra Mundial. Uma transformação psicológica do campesinato francês e as dificuldades trazidas para a circulação de produtos agrícolas entre 1940 e 1945 aceleraram-na também. O cardápio dos agricultores foi enriquecido com alimentos vendidos anteriormente nos mercados urbanos. Revolução profunda. As pessoas que planejam falam sobre o aumento dos rendimentos agrícolas. Eles calculam as quantidades comercializáveis disponíveis para exportação. Mas esses cálculos não devem negligenciar as variações desse fator sobre o qual temos tão pouco controle, o autoconsumo. Seu aumento expressa a ascensão do mundo rural a um padrão de vida superior.

26Os regimes alimentares urbanos sofreram transformações e, por imitação, essas mudanças tenderam a ter um impacto sobre os regimes rurais. Uma das causas dessas mudanças reside na ideia de que os homens influenciam um regime, além das considerações religiosas. Nos Estados Unidos, um tipo de superstição de prescrições científicas as substitui. Em quase todos os lugares, o aumento dos padrões de vida se exprime, na primeira etapa, pelo aumento do consumo de pão branco; na segunda etapa, pelo de alimentos de carne, acompanhado pelo de açúcar. Então vemos o consumo de carne declinar depois do de cereais ricos; os produtos lácteos e as frutas ocupam mais espaço. Outras causas são encontradas nos gêneros de vida. O ritmo da vida moderna nos meios industriais é pouco favorável para as longas e eruditas preparações culinárias, orgulho de nossos velhos países. As conservas – a propósito, perfeitas – invadem os menus. Como esse tipo de alimento seria empobrecido em vitaminas, forçar-se-á a participação das frutas. Melhor ainda, corrigir-se-á a deficiência pela adição de vitaminas industrialmente preparadas. Os homens hoje não sentem o paradoxo dessas combinações. Tudo isso só foi possível pelos progressos dos relacionamentos e dos setores de refrigeração. O mundo inteiro é usado para encher a mesa dos habitantes de Nova York, de Londres ou de Paris. Os regimes de bananas sobrecarregam o estoque do comerciante nas quatro estações do subúrbio. O peixe fresco e sem sal chega a todas as mesas.

27O significado geográfico desse conceito de regime alimentar agora nos aparece em plena luz e vemos sua conexão com todos os capítulos da geografia humana.

III

28O estudo dos regimes alimentares requer pesquisas extensas, realizadas com todos os recursos estatísticos; tanto para a pesquisa de correlação quanto para a análise fatorial. Uma lista exaustiva e crítica de todos os trabalhos realizados nesta área não foi elaborada. Os geógrafos às vezes ficam confusos para saber o que foi feito. Existe, no entanto, uma massa bastante grande de observações realizadas nas diferentes zonas climáticas. Elas são de valor desigual. Mas as investigações em andamento geralmente atendem aos requisitos da ciência moderna da alimentação. É preciso desejar que elas levem a uma revisão das normas de acordo com as latitudes – digamos, numa outra linguagem, uma solução para o problema do metabolismo basal. As autoridades competentes entenderam a necessidade de uma revisão prévia dos resultados obtidos, dispersos em publicações pouco acessíveis, quando eles são publicados, pois esses trabalhos permanecem frequentemente inéditos e ninguém sabe onde obtê-los. Nosso objetivo nem mesmo é o de esboçar uma pesquisa desse tipo. Limitar-nos-emos a dar uma breve ideia do que foi feito nessa ordem no território da França metropolitana desde alguns anos.

29Substituindo o esforço considerável do serviço de investigação da Société d'Hygiène alimentaire5, a seção Nutrition de l’Institut National d'Hygiène realiza desde 1946 pesquisas sobre a alimentação, em acordo com o Institut National des Statisques et Études économiques6. Seus resultados são publicados no seu Bulletin. Os documentos se referem a grandes cidades francesas (Paris, Lyon, Marselha, Saint-Étienne, Estrasburgo) e complexos rurais. No geral, o consumo está um pouco superior às normas, que varia segundo os períodos com as mudanças no custo de vida e sofre a incidência de fatores sociais e econômicos. Obviamente, são esses fatores humanos que mais interessam ao higienista. Mas uma comparação cuidadosa das tabelas publicadas revela, tanto entre aglomerações urbanas quanto entre agrupamentos rurais, diferenças qualitativas e quantitativas que podemos bem qualificar como geográficas. Especialmente no caso dos regimes rurais, no qual vemos se refletir muitas peculiaridades dos gêneros de vida. Doze regiões elementares foram selecionadas: região de Dinan-Fougères, leste da Bretanha, países da Mayenne, oeste da Normandia, Bocage vendéen, região Marais Breton e Poitevin, país de Nantes, país de Anjou, montanhas de Lyonnais, maciço de Pilat, planícies da Borgonha. « Em quase todos os lugares, o consumo de calorias e prótidos totais estava próximo das normas, mas os diferentes tipos nutricionais se opunham aos consumos muito variáveis de proteínas animais e outros elementos nutricionais ». Essas variações foram devidas às taxas de consumo de leite, laticínios (manteiga e queijo), carne e bacon. Foi feita uma tentativa de aproximar os tipos alimentares de diferentes tipos agrícolas e econômicos. É bastante decepcionante. A comparação dos mapas mal permite detectar correlações satisfatórias. Isso se deve em parte à fraqueza das estatísticas de produção e à sua apresentação na estrutura departamental. Mas há outra coisa: a influência dos hábitos familiares tradicionais. Suspeito que as tradições alimentares não acompanhem o mesmo ritmo da economia. Essa hipótese foi sugerida pelos autores das próprias pesquisas.

30Seja como for, esses trabalhos fazem desejar que as investigações sejam continuadas e multiplicadas sob a direção do mesmo serviço. Seus autores não deixaram de notar que eles só podiam trazer pesquisas amostrais. Sem dúvida, outros tipos de alimentos estão representados na França. A base geográfica parece muito estreita para poder determinar as regiões de alimentação. No entanto, esse é o nosso objetivo. Por outro lado, haverá um esforço a ser feito no campo da expressão cartográfica, no qual não fomos além do estágio da representação analítica.

IV

31Não esperamos o resultado desses trabalhos para abordarmos o problema da alimentação de outras maneiras. Quando a Liga das Nações o colocou em sua agenda em 1928, as primeiras investigações de sua Organização de Higiene revelaram um fato aterrorizante. Mais de dois terços da humanidade viviam em um estado permanente de subalimentação. Ou eles estavam sob a ameaça de fome, ou sua contagem de calorias, abaixo dos padrões, mal lhes permitia viver, ou seu regime era desequilibrado, ou insuficiente em alimentos minerais e, principalmente, em alimentos de reserva. Aqueles que não foram condenados à morte sofriam de doenças de deficiência com resultados frequentemente fatais ou ofereciam uma resistência reduzida ao ataque de germes infecciosos. Em suma, todos os graus ou todos os efeitos colaterais da fome. Estamos acostumados a pensar apenas nas formas mais dramáticas de inanição: as formas embrionárias podem, no final, reivindicar mais vítimas.

32As pesquisas realizadas pela FAO desde 1946 confirmaram essa avaliação. Elas também destacaram as desigualdades na distribuição de materiais alimentares. Deficiência geral: a alimentação de apenas um terço dos homens excede 2.750 calorias por dia, mantendo a ração de metade deles abaixo de 2.250. Desigualdade de regimes: um terço dos habitantes da Terra, na Europa e na América do Norte, dispõe de três quartos dos alimentos; o consumo diário de proteínas animais varia de 12g no Japão a 61g na Nova Zelândia; o consumo de carne e de peixe na Grã-Bretanha variava de 1 a 2, de acordo com grupos sociais, o de leite de 1 a 6; André Mayer, que me forneceu esses números, conclui: “A desigualdade perante a morte é, portanto, primeiro a desigualdade perante a doença e depois a desigualdade perante a fome e a desnutrição”.

33Surpreendido pelo silêncio que envolveu essas questões por um longo tempo, Josué de Castro procurou os motivos dessa proibição7. Ele a atribui aos preconceitos morais de uma civilização racionalista que oculta sua face diante das manifestações de um instinto primário, combinados com preconceitos econômicos todo-poderosos. Livre de seu complexo de consciência pesada, o mundo está agora enfrentando o problema da fome. Pensaremos com Josué de Castro que o melhor método para estudar um fenômeno tão universal e multifacetado é o método geográfico: é o único capaz de encontrar as conexões locais e as condições, se o que dissemos sobre os regimes alimentares estiver correto. Onde o estatístico fornece uma abordagem, o geógrafo vai ao cerne da realidade. A fome é um fenômeno de ordem ecológica: a manifestação de um desequilíbrio entre o grupo e seu meio físico e social. Mas também tem conexões distantes: a fome é um fato regional com implicações universais e, portanto, geográfico.

34Não faltam surpresas: o hemisfério ocidental surge como uma das principais áreas de desnutrição do globo. O flagelo não está estritamente localizado. Ele está distribuído por toda parte, embora sua intensidade e suas causas sejam muito variáveis. Na América Latina, dois terços da população vivem em estado de fome crônica; de acordo com a estimativa de J. de Castro, em três quartos do total (Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Chile, norte e extremo sul da Argentina, metade oriental do Paraguai e metade norte do Brasil) o regime é insuficiente, desequilibrado, mais ou menos deficiente em proteínas, sais minerais e vitaminas. No nordeste do Brasil, país da cana-de-açúcar, a ração cai abaixo de 1.700 calorias. O número cai abaixo de 1.200 na Bolívia. O problema é se a redução do metabolismo basal não diminuiria a abrangência desses números. Mas a má composição das rações é mais grave do que sua insuficiência energética. Seu desequilíbrio ainda é perceptível nos países mais favorecidos. Esse estado de fome crônica não é atribuído nem à sobrecarga demográfica de um continente, cuja densidade geral permanece baixa, nem às causas naturais. É o legado do passado colonial, de uma exploração mercantil do solo americano. O ciclo do ouro, o ciclo do açúcar, o ciclo das pedras preciosas, o ciclo do café, o ciclo da borracha e o ciclo do petróleo sobrepuseram seus efeitos há quatro séculos e meio. Mas na América Central e nas Antilhas, a história pré-colombiana também intervém. Essa apatia, essa melancolia tão frequentemente observada entre os comedores ameríndios de milho em planaltos, Jourdanet viu nela os efeitos da altitude; elas não são o produto da fome entre os povos submetidos a um regime feudal severo muito antes da chegada de Cortez? No mundo caribenho, cada ilha teve sua evolução. À primeira vista, a América do Norte parecia escapar da dura lei da fome. Não faltam deficiências alimentares. As pesquisas apontam insuficiências no regime em áreas urbanas. A fome real, rara, realmente se manifesta apenas nas Antilhas Inglesas e nas plantações do sul dos Estados Unidos. No Solid South, no começo do século XX, a pelagra raptava 4.000 pessoas por ano. Em 1938, o número de casos chegava a 100.000. Em 1940, a mortalidade ainda era de 2.113. A correlação entre a mortalidade pelagrosa e flutuações no mercado de algodão é notável.

35Mais carregada de homens do que qualquer outro continente, a Ásia, por excelência, é a terra da fome. Na China, uma formidável concentração agrícola, a mais considerável do mundo, aperta-se nos vales entre 10 e 15% da superfície, as encostas desmatadas sendo abandonadas à erosão. Para a fome crônica, a deficiência de proteínas animais, e de cálcio e de ferro adicionam seus efeitos. O raquitismo e a anemia, agravada pelos estragos de parasitas intestinais, debilitam a população. O uso de excrementos humanos como única fonte de esterco mantém a infestação: mas, se o fertilizante humano não fosse usado, os homens morreriam de fome em vez de morrer de anemia. O beribéri e a pelagra são predominantes entre os consumidores de arroz descascado. A expectativa de vida na China não excede 34 anos. Doença antiga: de acordo com os compiladores, de 620 a 1620, 203 fomes graves foram relatadas em uma província ou outra, incluindo pelo menos 15 acompanhadas de episódios de antropofagia. A seca é geralmente responsável pelo flagelo, depois as inundações, seguidas dos gafanhotos e, às vezes, também dos terremotos e dos tufões. Mas a ação dessas calamidades seria menos aterrorizante sem a redução de áreas cultivadas e a pobreza da técnica. Porque J. de Castro acredita que a sobrecarga demográfica não é uma causa, mas um efeito: a miséria, excitando fisiologicamente a sexualidade, estimula a taxa de natalidade. Este argumento parecerá questionável. Em grande parte da Índia, a insuficiência quantitativa dos regimes é agravada por uma insuficiência qualitativa devido a proibições religiosas. Deveríamos ver a origem da diferença de tamanho entre quase todos os grupos hindus e muçulmanos em Punjab? A mortalidade infantil é talvez até mais alta do que na China, apesar de um consumo de leite ligeiramente maior. Novamente, o mal é muito antigo e está piorando. Josué de Castro, que se recusa a questionar a falta de controle de natalidade, fez uma dura acusação contra a administração inglesa. Ela não fez nada para mudar a estrutura social que, mesmo na ausência de calamidades naturais, promoveria o desenvolvimento da fome. Ela estava estritamente interessada no lucro máximo, sem preocupação romântica com a vida indiana. Seus grandiosos planos de irrigação teriam sido elaborados apenas para aumentar o volume de produtos exploráveis. Reconhecemos as acusações usuais contra a colonização e a economia de plantation de tipo capitalista. Essa maneira de escrever a história é verdadeiramente muito simplista. Permanece certo que a Índia vive sob a ameaça permanente de fome e que a má alimentação de suas massas as torna mais sensíveis aos estragos da malária. A situação do Japão, quase tão dramática, foi explicada muito bem pela cadeia de circunstâncias políticas há um século.

36A fome também é um antigo flagelo africano. Dois mil anos antes de Abraão, um faraó lamenta a desgraça de seu povo, porque durante sete anos a inundação do Nilo não ocorreu. A ameaça, sempre presente, assume várias formas. Se essa ameaça é devida a ações naturais, devemos reconhecer que, desde tempos imemoriais, os homens têm uma grande parcela de responsabilidade por isso. Desde a abolição do comércio de escravos, tão tardia, a exploração colonial nem sempre foi tão atenta quanto deveria ter sido em seu próprio interesse às necessidades das populações africanas. Quando adquirimos uma consciência mais clara das relações corretas entre as culturas alimentares e as culturas industriais, muitas vezes colocamos o problema em termos de quantidade. Aconteceu em todos os lugares e não apenas na África. Mas parece muito fácil, como o faz J. de Castro, ao invocar a beleza do tipo dos criadores de Maasai ou dos nômades do Saara e ao colocá-la em relação ao seu regime, quando conhecemos as verdadeiras relações dos criadores e dos agricultores. Com esta correção, veremos como certo que os defeitos do regime alimentar, quaisquer que sejam suas causas, pesam arduamente sobre a humanidade africana. A disseminação da pelagra na África austral fornece uma dura confirmação. A Europa parece ter entendido a necessidade de restaurar a humanidade africana: é um problema alimentar.

37Esse problema, a Europa deve resolver por conta própria. Ela viu a urgência antes da última guerra. O quadro da situação alimentar antes de 1939 é bastante sombrio. Parte da Europa mediterrânea parecia condenada à escassez crônica. Terras de secano na Península Ibérica, onde o regime de latifúndio sobrepõe seus efeitos às calamidades naturais, a guerra civil para piorar a situação – em um único ano, registra-se em Madri 30.000 casos de pelagra –; latifúndios da Itália meridional, onde a crise agrária é permanente; países da Europa Oriental, onde, por tanto tempo, o sistema de grande propriedade teve efeitos desastrosos, onde um proletariado rural miserável estava dominado por doenças de deficiência, pelagra, xeroftalmia e raquitismo. Nessas últimas regiões, as grandes crises que abalaram o mundo entre as duas guerras ressoaram em um mundo agrícola, que tinha que exportar seus produtos para obter artigos manufaturados. A Alemanha de 1937 se aproveitou disso para melhorar seu regime alimentar. Os únicos países favorecidos foram a França, a Grã-Bretanha e os países escandinavos. Mais uma vez, entre os últimos, a Dinamarca, tendo comercializado a produção de manteiga em um grau alto demais, viu um aumento nas afecções oculares. Em 1936, Lord Boyd Orr concluía em um relatório que 50% da população inglesa sofria de falhas no regime alimentar, 10% porque não tinham dinheiro necessário para comprar uma quantidade suficiente de alimentos, 20% porque seu cardápio carecia de alimentos protetores, 20% por causa de deficiências em vitaminas e minerais. Esses resultados recebidos com descrença foram confirmados por pesquisas nos anos seguintes. Desde 1940, a guerra espalhou o flagelo. Somente os soldados no campo foram preservados: outra morte os esperava. As formas mais agudas de fome e doenças por deficiência renasceram em povos que se autodenominavam civilizados. A situação só melhorou lenta e desigualmente após a libertação, comprometida por condições climáticas adversas.

38A fome é de fato um fenômeno muito geral, mas suas manifestações regionais obedecem a regras complexas. O jogo das causas naturais está frequentemente na sua origem, mas é sempre exercido em uma estrutura humana. As adversidades climáticas podem destruir as colheitas em vastas áreas. Há anos em que o frio é excepcionalmente rigoroso, mas também há sequências de anos secos ou chuvosos. A fome ocorre então, ainda mais inevitavelmente, já que as variações nas superfícies semeadas refletem fielmente as oscilações do mercado de grãos, mas com um atraso constante. É fatal se os distúrbios proibirem a compensação entre os países produtores quando os adiamentos forem insuficientes ou inexistentes. A cessação do comércio também traz o desgaste dos solos nos países constrangidos a se satisfazer e favorece as futuras fomes. Para eliminar a ameaça, seria preciso haver um excedente constante disponível através da extensão de culturas alimentares e do aprimoramento das técnicas. Os obstáculos à sua constituição regional estão na comercialização de produtos básicos, carnes ou cereais, substituídos, no consumo local, por produtos de valor nutricional inferior (milho em vez de trigo) e na alocação das terras agrícolas às culturas industriais (economia de plantation), limitação do cultivo dos melhores solos, em técnicas inferiores, finalmente à diferença que mencionamos entre a produção e o mercado. É certo que o regime dos latifúndios e a economia de plantation capitalistas ajudaram a remover alguns desses obstáculos, dependendo da região. Mas os países de minifúndios também os conheciam, e da mesma forma a cultura indígena antes da chegada dos europeus. Também é certo que o estado de congestionamento demográfico mantido em certas regiões prolíficas pelos impedimentos trazidos à emigração piorou sua situação de maneira insuperável. Finalmente, uma organização humana dos mercados representa uma condição essencial para a eliminação das fomes.

39Os fatores propriamente humanos, demográficos, técnicos, econômicos, políticos e sociais desempenham um papel considerável no desenrolar dos processos que mencionamos ao lado de fatores naturais. Isso é suficiente para descartar a ideia de um jogo automático desses últimos, e para admitir que a humanidade pode sair vitoriosa de sua luta milenar contra a fome.

V – Conclusão

40Todo estudo desse gênero tende a ir além de si mesmo, pelo simples fato de que o status demográfico é uma das variáveis. O aumento do número de homens não seria suficiente para perturbar o equilíbrio alimentar alcançado pela melhoria das condições gerais da produção agrícola8? E a limitação previsível do estoque de alimentos não impõe um limite próximo ou distante à multiplicação dos homens? Se não admitimos mais a fórmula de Malthus hoje, outros adotam suas ideias de uma forma mais moderna. Eles se deparam com aqueles que, como Josué de Castro, têm uma fé ilimitada nos progressos da técnica humana, apesar dos efeitos, talvez irreversíveis, de desperdícios anteriores. Todos estão felizes em extrapolar. Parece-me difícil descartar a ideia de um limite. Eu ficaria feliz em pensar, com os especialistas da FAO, que estamos assaz longe. Apesar das feridas que nossa ignorância, nossa previsão, nossa ganância infligiram-na, a Terra poderia fazer viver em condições normais aqueles que ela carrega, e até mesmo uma humanidade mais numerosa, desde que cada um tivesse acesso a suas riquezas. É no reconhecimento dos equilíbrios regionais que o geógrafo pode dar aos responsáveis uma ajuda preciosa”.


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