Quais foram as religiões que registraram o maior número de denúncias de intolerância religiosa

A intolerância religiosa é o desrespeito ao direito das pessoas de manterem as suas crenças religiosas. Podemos considerar como atos intolerantes as ofensas pessoais por conta da religião ou as ofensas contra liturgias, cultos e outras religiões. Ações desse tipo, em suas formas mais graves, podem resultar em violência, como agressões físicas e depredação de templos.

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Histórico da intolerância religiosa

No início da era cristã, os adeptos do cristianismo foram perseguidos e mortos. A Igreja Católica, por sua vez, no auge de seu poder, que durou da alta Idade Média até o século XVII, também perseguiu, condenou e matou hereges (entre os quais estavam os adeptos de outras religiões). Para saber mais sobre, recomendamos a leitura deste texto: Inquisição.

Outro caso emblemático de intolerância na história foi o pensamento antissemita (sentimento de ódio direcionado aos povos hebraicos, como os judeus). A perseguição aos judeus ocorreu em muitos momentos da história, como a perseguição feita pelo Império Romano, que resultou na fuga e dispersão desse povo, bem como durante a Idade Média, em razão das diferenças entre católicos e judeus.

A intensificação da perseguição contra esses povos começou no século XIX e seu auge ocorreu durante o Terceiro Reich, na Alemanha nazista. A intolerância nazista resultou na morte de mais de seis milhões de judeus, e ideias desse cunho ideológico ainda perduram dentro de grupos isolados, apesar de a promoção e a propaganda nazista serem proibidas em vários países.

Ainda é possível falar de intolerância religiosa quando analisamos os desdobramentos dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, que foram o estopim para que o governo estadunidense, então comandado por George W. Bush, iniciasse uma ofensiva contra países do Oriente Médio chamada de guerra contra o terror.

Os alvos dessa guerra eram grupos terroristas liderados por radicais islâmicos (estima-se que 16% dos muçulmanos sejam adeptos da corrente xiita, a que promove interpretações radicais) e governos autoritários. Entretanto, o resultado da guerra ao terror e dos atentados terroristas foi a promoção de um pensamento estereotipado de que o islã promove o terrorismo, o que resultou em intolerância religiosa.

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Exemplos de práticas de intolerância religiosa

Boa parte dos que praticam atos ofensivos e intolerantes é composta por pessoas de maiorias religiosas e por aquelas que carregam interpretações fanáticas sobre seus escritos religiosos. Quando falamos em intolerância religiosa, não estamos falando apenas de agressões físicas e verbais. Também podemos identificar como atos intolerantes

  • a profanação pública de símbolos religiosos, com o objetivo de afetar pessoas daquela denominação;

  • a destruição de locais de culto;

  • a recusa à prestação de serviços nesses locais;

  • a restrição ao acesso a locais públicos ou coletivos por conta de fatores religiosos.

Lei sobre intolerância religiosa

O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 garante que o Estado brasileiro é laico, o que coaduna com o que está expresso na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Já a lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997, prevê punição para crimes de discriminação, ofensa e injúria praticados em virtude de raça, cor, etnia, procedência nacional ou religião.

A referida lei prevê punição de um a três anos de reclusão e aplicação de multa para quem praticar ou incitar qualquer ato discriminatório por motivo de, entre outros fatores, prática religiosa. Não há uma lei específica que criminalize apenas a intolerância religiosa, e, apesar das garantias constitucionais e da lei 9459/97, esse tipo de intolerância continua sendo praticado em nosso país.

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Intolerância religiosa e xenofobia

A religião é uma das maiores marcas de uma cultura nacional. Assim sendo, a intolerância religiosa é utilizada, muitas vezes, para atacar uma nação. Vemos, como exemplo, o ataque às religiões islâmicas como um ataque à cultura e à nacionalidade dos povos oriundos do Oriente Médio.

Atualmente, o preconceito contra muçulmanos oriundos de países árabes que sofrem com conflitos acontece no mundo ocidental, em especial na Europa e nos Estados Unidos. Uma das facetas de ataque a esses povos dá-se pelo ataque à religião.

O mundo vivenciou ataques terroristas comandados por islâmicos radicais de vertente xiita, como o ataque às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001 e os ataques comandados por células do Estado Islâmico a partir de 2015. Essas experiências isoladas (os xiitas compreendem, aproximadamente, 16% do total de islâmicos) fizeram com que se criasse um senso comum que aponta o islamismo como fonte de radicalismo religioso e terrorismo.

Muitas vezes, quem promove esse tipo de pensamento estereotipado e preconceituoso é, também, um radical religioso. O objetivo maior da disseminação desse tipo de pensamento é o afastamento de estrangeiros do próprio território nacional.

Intolerância religiosa no Brasil

Quais foram as religiões que registraram o maior número de denúncias de intolerância religiosa
Praticantes do candomblé em celebração tradicional do Dia de Iemanjá.

A intolerância religiosa manifesta-se no Brasil diariamente. Vivenciamos constantes ataques contra templos, profanação de imagens religiosas, ofensas contra pessoas e discriminação no tratamento em locais públicos e estabelecimentos privados.

Em geral, as vítimas da intolerância religiosa no Brasil são adeptas de religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda. Nosso país é composto por uma maioria católica (cerca de 64,4% da população), que registra apenas 1,8% das denúncias de intolerância religiosa.

Os protestantes (cerca de 22,2% da população) registram apenas 3,8% das denúncias. Já os praticantes de religiões de matriz africana (aproximadamente 1,6% da população, número que inclui todas as denominações originárias dos povos africanos que vieram para o Brasil, à força, para servirem de mão de obra escrava) registram 25% das denúncias de intolerância religiosa.|1|

A agência de notícias Brasil de Fato promoveu uma matéria (sobre a intolerância religiosa cometida contra adeptos de religiões de matriz africana no Brasil) intitulada “Terreiros: entre a intolerância religiosa e a resistência diária”. O depoimento marcante da mãe de santo Iyá Imim Efun Lade expõe a vivência do racismo com base na discriminação e nos atos de ofensa motivados pela religião:

'A partir do momento em que o negro começa a fazer o exercício da sua religiosidade, aquilo é demonizado, e essa demonização cresce ao longo da História, simplesmente por ser uma religião preta. Simplesmente por representar a ancestralidade do povo preto.' O relato de Iyá Imim Efun Lade, mulher, negra e sacerdotisa do Candomblé, representa uma realidade vivenciada por diferentes pessoas que seguem religiões de matriz africana no Brasil. O depoimento deixa claro que a intolerância e o racismo caminham juntos no país.|2|

Dados sobre a intolerância religiosa

No Brasil, existe um serviço gratuito que recebe denúncias de intolerância religiosa e encaminha-as para os órgãos competentes, o Disque 100. Nesse canal, as vítimas de crimes motivados por fatores religiosos, inclusive quando praticados por funcionários públicos, podem denunciar abusos, ofensas, discriminação e violência cometidos em decorrência da religião.

No biênio ocorrido entre 2015 e 2017, uma denúncia de intolerância religiosa foi feita a cada 15 horas, apontou o extinto Ministério dos Direitos Humanos. A maior parte dos casos ocorreu em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.|3| Outros dados:

  • 33,9% das ocorrências deram-se dentro de casa;

  • 25% dos agressores são identificados como homens brancos;

  • 25% das denúncias foram feitas por praticantes de religiões, como o candomblé e a umbanda, de matriz africana (1,6% da população brasileira).

Notas

|1|  Clique aqui e confira a matéria “A intolerância religiosa não vai calar nossos tambores”, da Revista Carta Capital.

|2| BERNARDES, J. E.; MOREIRA, J. Terreiros: entre a intolerância religiosa e a resistência diária. In: Brasil de Fato. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2018/11/14/terreiros-entre-a-intolerancia-religiosa-e-a-resistencia-diaria/. Acessado em 23/05/2019.

|3|  Clique aqui e confira os dados expostos por reportagem da Revista Veja.

[FOTO1]"Axé é uma palavra que quer dizer força, luta, vitória", explica Mãe Marinalva, adepta da umbanda e do candomblé. Ela tem um terreiro em Santa Maria e faz parte da população do Distrito Federal que sofre ataques simplesmente por suas crenças, e ;precisa de muito axé; para ter liberdade na . Só 0,2% dos moradores da capital seguem religiões de matrizes afro-brasileiras, segundo dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Porém, um levantamento com dados da delegacia especializada no DF mostrou que 59,42% dos crimes de intolerância, somando todas as religiões, têm esses grupos como alvos (leia Para saber mais). Para especialistas, os números evidenciam o preconceito contra seguidores da umbanda e do candomblé.

O dia a dia de quem escolheu seguir uma religião de matriz africana é de luta. Mãe Marinalva conta que a ignorância traz danos irreparáveis. "Perdi emprego por ser de religião de matriz africana, isso é um absurdo, mostra o preconceito. Somos agredidos até por pessoas que se dizem religiosas, mas não têm escrúpulo nem amor ao próximo. Isso é demonstração de que não nos conhecem", lamentou. Ela acredita que há muito desconhecimento da população sobre as práticas e tradições da umbanda e do candomblé, o que acaba gerando conflitos. "A Prainha foi depredada, os terreiros estão sofrendo ataques. Ou seja, convivemos com muitas rejeições da sociedade. Às vezes, passa carro de som de igreja de outra religião na frente do meu terreiro só para nos agredir verbalmente, dizendo que ali mora satanás. Quem faz isso são pessoas que leem a Bíblia e não entendem nada", reclama Mãe Marinalva

A capital tem quase de 400 terreiros, de acordo com a Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e Entorno. Os locais sagrados acumulam histórias de apedrejamentos, incêndios e outras ações de vandalismo. Em 2015, por exemplo, o templo Axé Oyá Bagan, conhecido como Casa da Mãe Baiana, pegou fogo durante a madrugada. A perícia não identificou causas criminosas, mas a pressão popular, à época, levou à criação da Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin). Hoje, Mãe Baiana comemora os avanços da luta contra a intolerância, mas ainda acredita que Brasília tem muito o que fazer para combater o preconceito.

Compreender

"A ignorância dói, machuca e mata", alerta Mãe Baiana. Ela se transformou em um dos símbolos em defesa das religiões de matrizes afro-brasileiras no DF. Agora, atua na promoção da diversidade religiosa na Subsecretaria de Política de Direitos Humanos e de Igualdade Racial, da Secretaria de Justiça do GDF. "Vivemos em um Estado laico, mas a gente sabe que só é laico para alguns grupos religiosos. Outros, ficam de fora. Temos o racismo religioso, convivemos com a violência religiosa. Isso é muito triste", avalia.

Para Mãe Baiana, Brasília avançou no enfrentamento da intolerância, principalmente por meio da Coordenação de Diversidade Religiosa, o que mudou um pouco o cenário, até então, caótico. "Entre 2015 e 2017, tivemos muitos crimes de intolerância religiosa no DF. Terreiros foram queimados, alvejados por tiro de revólver calibre 12, pai e mãe de santos agredidos, e isso se espalhou no Brasil." Apesar da preocupação, ela vê caminhos sendo trilhados e acredita que a conscientização e a educação podem mudar essas situações pouco a pouco.

Minorias

Entidades de religiões afro-brasileiras tentam entender o preconceito que sofrem enquanto batalham para demonstrar aos intolerantes que a fraternidade é símbolo do credo. Rafael Moreira, presidente da Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e do Entorno, lembra que a depredação da Praça dos Orixás é sintomática. "Temos cinco estátuas danificadas na Prainha há quase três anos. A de Oxalá foi incendiada no ano-novo de 2015 e, até hoje, está queimada. Esse vandalismo deixa claro que nossa religião não é aceita por todos. Mas não entendo o preconceito, porque nós não impomos nada a ninguém, não saímos na rua pregando. Pelo contrário, fazemos ações sociais nas ruas, dando sopa, acolhendo pessoas necessitadas e transmitindo amor", diz ele.

Os principais problemas enfrentados pelos religiosos são discriminação, difamação e intolerância religiosa. Entre agressores verbais e físicos, surpreende a participação de membros de outras religiões, que deveriam pregar o oposto, segundo Rafael. Para ele, esses ataques são resultado do racismo estrutural do Brasil. "A intolerância ocorre devido ao fato de que as religiões são comandadas por negros, pessoas que passam por outras situações de discriminação. Mas a nossa religião é a que mais acolhe, sejam negros, brancos, LGBTs, heterossexuais, seja lá quem for. Convido qualquer pessoa de bem a conhecer um terreiro de umbanda e de candomblé. Em nenhum momento, ela vai ver as coisas absurdas que são ditas."

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Praça dos Orixás

Conhecida como prainha, o local é patrimônio tombado da capital, mas sofre com o abandono e a depredação. A Secretaria de Cultura informou que "foi realizado um estudo acerca das obras e esculturas na Praça dos Orixás, a fim de identificar as intervenções necessárias no local". A pasta promete esforços para que as melhorias sejam realizadas na comemoração dos 60 anos de Brasília. Até lá, há planejamentos para valorização do espaço: "O GDF organiza atividades como a realização de uma festa no réveillon, respeitando as tradições da área", informou a secretaria em nota oficial.

Depoimentos

Pai Adaildo
"Em 2013, fui vítima de discriminação na Câmara de Vereadores do Novo Gama. Eu adotei um garoto de 11 anos, e um vereador se levantou na tribuna para falar que era inadmissível um menor de idade morar em um centro de macumba. Essa é só uma das situações de intolerância, pois também sofremos ataques de outras religiões só por vestirmos nossas roupas tradicionais."
Pai Eduardo
"Quando tinha sessões no nosso terreiro do Itapoã, a gente ouvia pedras batendo na casa. E o terreiro foi incendiado três meses atrás. Só fiquei com a roupa do corpo."

Mãe Beth
"Tenho uma associação no meu terreiro e fui ao cartório registrar, mas sofri muito preconceito. Eles não me atenderam bem nem a minha solicitação no dia e nem depois de meses. Eu tive que bater o pé e me impor para lidar com isso."

Pai César
"Um vizinho nos ameaçou e tentou atirar objetos em mim, me chamando de macumbeiro. Atacaram o carro de uma senhora que frequentava o terreiro, jogaram água em outros amigos que entravam na casa, sem contar as agressões verbais"

A pesquisa, realizada por Cynthia Cristina de Carvalho, delegada-adjunta da Decrin, utilizou como base crimes registrados na delegacia especializada entre janeiro de 2016, quando foi criada, até setembro de 2019. O levantamento é preliminar, pois levou em conta ocorrências que tiveram no campo ;natureza; os termos ;discriminação religiosa ou preconceito de raça ou cor; e ;injúria preconceituosa;. Outras ocorrências podem ter ficado de fora, por terem sido registradas com outros termos no campo principal. Mas a análise evidencia a discriminação contra religiosos da umbanda e do candomblé, vítimas de 41 crimes no período, de um total de 69. Grupos evangélicos foram os que estiveram em segundo lugar como alvos na quantidade de ocorrências, com 10.

Três perguntas para Cynthia Cristina de Carvalho, delegada-adjunta da Decrin

1. Como funciona a atuação da Decrin?

A Decrin é resultado de pressões da sociedade civil para a existência de uma delegacia especializada na investigação de crimes de intolerância, motivada por um possível incêndio criminoso em um templo de uma religião afrodescendente no Distrito Federal. Embora originalmente a Decrin tenha sido criada em razão de um crime de intolerância religiosa, a delegacia atua em cinco grandes pautas diferentes, abrangendo pessoas em situação de vulnerabilidade. Atendemos idosos, pessoas com deficiência, crimes de intolerância em razão da raça, cor, etnia ou origem, crimes de intolerância em razão da religião e crimes de intolerância em razão da orientação sexual ou identidade de gênero. Por isso, além do trabalho policial no sentido da repressão por meio da investigação dos crimes de intolerância, também temos o dever de atuar na prevenção dessas modalidades delitivas.

2. Quais são os principais crimes de intolerância religiosa? E por que eles ainda ocorrem com frequência?

Nós observamos muito em ocorrências pessoas que querem ofender utilizando termos como macumbeiro, em discussões. Também existem conflitos que envolvem disputas por território, brigas por conta de vestimentas tradicionais. As religiões de origem africana sofrem mais depreciação do que as demais no Distrito Federal. Os templos de umbanda e candomblé, por exemplo, são alvo de muitas reclamações. As pessoas falam que são locais com muito barulho, mas temos templos de outras religiões que também emitem muito som e não são denunciados. Isso é uma forma de preconceito, acredito, como socióloga. Tudo está relacionado a conceitos antigos, lá do tempo da escravidão, quando se tinha a visão de que a população negra era desvalorizada. Desde então, tudo o que está relacionado a essa população vem sendo considerado algo inferior por quem ainda tem uma visão ultrapassada.

3. Há um aumento gradual no número de crimes ou os números se mantém?

Cada vez mais as pessoas sabem que existe uma delegacia especializada para atender conflitos de qualquer tipo de religião, então acaba que o número de ocorrências pode aumentar. Mas temos que levar em consideração vários fatores para analisar isso. Um deles, por exemplo, é que estamos fazendo a um bom tempo um trabalho de conscientização para mostrar que é crime. Antes, as pessoas achavam que as intolerâncias não eram crime e acabavam não registrando boletim de ocorrência. Não quer dizer que a intolerância está aumentando, quer dizer que as pessoas estão procurando a polícia para denunciar. Para diminuir os crimes, devemos fazer um trabalho de desconstrução. É um trabalho do Estado, das escolas, da cultura e da imprensa, por exemplo, que estamos realizando.