A linguagem regional popular na obra de patativa do assaré

O POETA DA ROÇA – Patativa do Assaré

Sou fio das mata, cantô da mão grossa,

Trabaio na roça, de inverno e de estio

A minha chupana é tapada de barro

Só fumo cigarro de paia de mio.

Sou poeta das brenha, não faço pape

De argum menestré, ou errante canto

Que veve vagando, com sua viola,

Cantando, pachola, à procura de amo.

Na tenho sabença, pois nunca estudei,

Apenas eu sei o nome assina.

Meu pai, coitadinho! Vivia sem cobre,

E o fio do pobre não pode estuda.

Meu verso rastêro, singelo e sem graça,

Não entra na praça, no rico salão,

Meu só entra no campo e na roça,

Nas pobre paioça, da serra ao sertão.

Só canto o buliço da vida apertada,

Da lida apertada, da roça e dos eito

E às veis, rescordando a feliz mocidade,

Canto uma sôdade que mora em meu peito.

Eu canto o cabôco com suas caçada,

Nas noite assombrada que tudo apavora,

Por dentro da mata, com tanta corage

Topando a visage chamada caipora.

Eu canto o vaquêro vestido de coro,

Brigando com o tôro no mato fechado,

Que pega na ponta do brabo novio,

Ganhando lugio do dono do gado.

Eu canto o mendigo de sujo farrapo,

Coberto de trapo e mochila na mão,

Que chora pedindo o socorro dos home,

E tomba de fome, sem terra e sem pão,

E assim, sem cobiça dos cofre luzente,

Eu vivo contente e feliz com a sorte,

Morando no campo, sem vê a cidade

Cantando a verdade das coisas do Norte.

Primeira escuta do texto gravado: 3 minutos

Identifiquei que se trata de um poeta já maduro. Na escuta de texto oral, além do elemento linguístico, são decisivos outros elementos não-verbais, como o tom de voz, a respiração, que me permitiram reconhecer um enunciador já idoso, e o ritmo e a sonoridade das palavras que me ajudaram a perceber que se trata de um poema recitado. Estamos falando, pois, de Antonio Gonçalves da Silva, mais conhecido como PATATIVA DO ASSARÉ, poeta e cantor cearense, falecido em 2002. Ele tem vários livros publicados, inúmeros folhetos de cordel e poemas publicados em jornais e revistas. É tão grande o reconhecimento de seus escritos pela crítica, que tem estudiosos até na Universidade Sorbonne, na França. “Patativa” porque se compara o autor à Ave de Belo Canto, e Assaré  por causa do município de origem do poeta.  

No texto, há a recriação da fala típica do brasileiro do meio rural, e isso eu identifiquei por causa da pronúncia de certas palavras que me ajuda a identificar o enunciador ao seu meio e também por causa da menção explícita à roça, “trabaio na roça”, ele diz.

A região retratada é o Nordeste, percebo isso pelo sotaque característico do cearense, ainda que, no final, ele diga “Cantando a verdade das coisa do Norte”. Isso acontece por causa do costume de algumas pessoas mais simples dividirem o Brasil em duas grandes regiões, Sul e Norte apenas.

Agora eu posso entender por que existem vários fatores determinando a forma de expressão do texto: além do fator geográfico (região nordeste, meio rural), há a determinação do fator histórico (fala de uma pessoa já idosa, que emprega termos que um jovem da mesma região talvez não empregasse), do fator sociológico (Patativa é um homem simples, de origem humilde, suas escolhas linguísticas talvez fossem diferentes se fosse uma mulher nas mesmas condições), do fator ideológico (eu noto uma crítica no texto, apesar de seu lirismo, e essa crítica é mais contundente na fala autêntica do caboclo) e do fator contextual (a recitação foi gravada para eternizar a poesia popular de Patativa; a situação de uso, portanto, pedia as escolhas feitas pelo enunciador).

Agora, vamos às palavras anotadas que são típicas do nordeste, que não são usuais em nossa região:

             Brenha (mata fechada)

             Pachola (vaidoso)

             Lida (trabalho)

             Eito (roça, plantação)

             Visagem (fantasma, visão sobrenatural)

             Caipora (ente fantástico, da mitologia tupi: morador do mato)

Agora, os exemplos de frases que não obedecem às normas de concordância da linguagem escrita, mas identificam o enunciador ao seu meio:

“Sou fio das mata” ( e não filho das matas)

 “Sou poeta das brenha”

 “Nas pobre paioça”

 “Da roça e dos eito”

 “Com suas caçada”

 “Socorro dos home”

 “Dos cofre luzente”

Quanto às palavras que são conhecidas aqui em nossa região, em nosso meio urbano, no texto são pronunciadas de um modo característico, identificando o falante ao meio rural e à região nordeste, eu posso registrar:

“Fio” (e não filho)

 “Trabaio”

 “Paia”

 “Paper”

 “Argum”

 “Véve”

 “Paioça”

 “Às veis”

 “Nuviu”

 “Lugiu”

 “Vaquêro”

 “Cabôco”

E, finalmente, quanto ao assunto, o texto é principalmente lírico, porque se manifestam estados emocionais, embora se perceba uma crítica social. No texto, se canta a vida sofrida, valente, de muito trabalho e pouca instrução do caboclo, do vaqueiro e dos mendigos nordestinos. O eu lírico apresenta-se como um caboclo pobre, sem instrução, cantor das coisas de sua terra e, apesar de sua condição, se diz feliz.

Vamos a uma segunda escuta do texto gravado, agora com a transcrição em mãos: 3 minutos

A abordagem provou que é possível propor um trabalho com a variedade linguística sem demonstrar preconceito ou discriminação. Reforça-se também a idéia de que Patativa do Assaré eleva a variedade linguística a um patamar artístico, literário, pela autenticidade, vigor e legitimidade de sua linguagem.

Marli Savelli de Campos 

Poeta popular

Patativa do Assaré (1909-2002) foi um poeta e repentista brasileiro, um dos principais representantes da arte popular nordestina do século XX. Com uma linguagem simples, porém poética, retratava a vida sofrida e árida do povo do sertão. Projetou-se nacionalmente com o poema "Triste Partida" em 1964, musicado e gravado por Luiz Gonzaga. Seus livros, traduzidos em vários idiomas, foram tema de estudos na Sorbonne, na cadeira de Literatura Popular Universal.

Infância e Adolescência

Patativa do Assaré (Antônio Gonçalves da Silva) nasceu no sítio Serra de Santana, pequena propriedade rural, no município de Assaré, no Sul do Ceará. Foi o segundo dos cinco filhos dos agricultores Pedro Gonçalves da Silva e Maria Pereira da Silva.

Com seis anos, perdeu a visão do olho direito em consequência do sarampo. Órfão de pai aos oito anos de idade teve que trabalhar no cultivo da terra, ao lado do irmão mais velho, para sustentar a família.

Com a idade de 12 anos, Patativa do Assaré frequentou uma escola durante quatro meses onde aprendeu um pouco da leitura e se tornou apaixonado pela poesia. Com 13 anos começou a fazer pequenos versos. Com 16 anos comprou uma viola e logo começou a fazer repentes com os motes que lhe eram apresentados.

O Apelido de Patativa do Assaré

Descoberto pelo jornalista cearense José Carvalho de Brito, Patativa publicou seus textos no jornal Correio do Ceará. O apelido de Patativa surgiu porque suas poesias eram comparadas com a beleza do canto dessa ave nativa da Chapada do Araripe.

Com vinte anos, Patativa do Assaré começou a viajar por várias cidades do Nordeste e diversas vezes se apresentou na Rádio Araripe. Viajou para o Pará em companhia de um parente José Alexandre Montoril, que lá morava.

Patativa passou cinco meses cantando ao som da viola em companhia dos cantadores locais. Nessa época, incorpora o Assaré ao seu nome. Patativa do Assaré que foi casado com D. Belinha, teve nove filhos.

Primeiro Livro de Poesias

Entre 1930 e 1955, Patativa permanece na Serra de Santana, quando compõe a maior parte de sua poesia. Nessa época, passa a declamar seus poemas na Rádio Araripe, quando é ouvido pelo filólogo José Arraes, que o ajuda na publicação de seu primeiro livro, “Inspiração Nordestina” (1956), onde reuniu vários de seus poemas.

Triste Partida

Mesmo com um linguajar rude falado pelo sertanejo, crivado de erros e mutilações, a poesia de Patativa do Assaré teve projeção por todo o Brasil com a gravação de "Triste Partida" (1964), pelo cantor Luiz Gonzaga:

Setembro passou Oitubro e Novembro Já tamo em Dezembro Meu Deus, que é de nós, Meu Deus, meu Deus Assim fala o pobre Do seco Nordeste Com medo da peste

Da fome feroz. (...)

A poesia de Patativa do Assaré traz uma visão crítica da dura realidade social do povo sertanejo o que lhe valeu o título de “Poeta Social”. Um exemplo é o poema “Brasi de Cima e Brasi de Baixo:

Meu compadre Zé Fulô, Meu amigo e companheiro, Faz quage um ano que eu tou Neste Rio de Janeiro; Eu saí do Cariri Maginando que isto aqui Era uma terra de sorte, Mas fique sabendo tu Que a miséra aqui no Su É esta mesma do Norte. Tudo o que procuro acho, Eu pude vê neste crima, Que tem o Brasi de Baxo E tem tem o Brasi de Cima. Brasi de Baxo, coitado! É um pobre abandonado; O de Cima tem cartaz, Um do ôtro é bem deferente; Brasi de Cima é pra frente,

Brasi de Baxo é pra trás. (...)

Mesmo longe dos grandes centro, Patativa estava sempre atento com os fatos políticos do país, a política também foi tema de sua obra. Durante o regime militar, ele criticou os militares e chegou a ser perseguido. Participou da campanha das Diretas Já, e em 1984 publicou o poema "Inleição Direta 84".

Patativa do Assaré publicou inúmeros folhetos de cordel, viu seus poemas serem publicados em jornais e revista. Suas poesias foram reunidas em diversos livros, entre eles: “Cantos da Patativa” (1966), “Canta lá Que Eu Canto Cá” (1978), “Aqui Tem Coisa” (1994), entre outros. Com a produção de Fagner, gravou o LP “Poemas e Canções” (1979). Em 1981 lançou o LP  "A Terra é Naturá".

Últimos Anos

Ao completar 85 anos, Patativa do Assaré foi homenageado com o LP "Patativa do Assaré - 85 Anos de Poesia" (1994), com participação das duplas de repentistas Ivanildo Vila Nova e Geraldo Amâncio e Otacílio Batista e Oliveira de Panelas.

Os livros de Patativa do Assaré foram traduzidos em diversos idiomas e seus poemas tornaram-se temas de estudo na Sorbonne, na cadeira da Literatura Popular Universal, sob a regência do Professor Raymond Cantel.

Patativa do Assaré, sem audição e totalmente cego desde o final dos anos 90, faleceu em consequência de falência múltipla dos órgãos, em sua casa em Assaré, Ceará, no dia 8 de julho de 2002.

  • A Festa da Natureza
  • ABC do Nordeste Flagelado
  • Aos Poetas Clássicos
  • A Terra dos Posseiros de Deus
  • A Terra é Naturá
  • A Triste Partida
  • Cabra da Peste
  • Caboclo Roceiro
  • Cante Lá, Que Eu Canto Cá
  • Casinha de Palha
  • Dois Quadros
  • Eu Quero
  • Flores Murchas
  • Inspiração Nordestina
  • Lamento Nordestino
  • Linguagem dos Óio
  • Mãe Preta
  • Nordestino Sim, Nordestino Não
  • O Burro
  • O Peixe
  • O Poeta da Roça
  • O Sabiá e o Gavião
  • O Vaqueiro
  • Triste Partida
  • Vaca Estrela e Boi Fubá