Descartes foi um pensador da era moderna período no qual floresciam

Descartes (1596-1650) foi enviado para o colégio interno aos oito anos de idade. Sendo o diretor um amigo da família, o jovem tinha um quarto próprio e podia acordar à hora que quisesse em geral em torno do meio-dia. Apesar disso, angariou todos os prêmios escolares. Acordar tarde foi um hábito que ele seguiu com rigor pelo resto de sua vida, mesmo quando, surpreendentemente, alistou-se no exército. Rigor e afirmações surpreendentes também foram marcas de seu pensamento. INTRODUÇÃO E RAÍZES DE SUAS IDÉIAS . . . . . . . . . . . Por volta do final do século XVI a filosofia estagnara. Foi Descartes quem lhe deu novo impulso. A filosofia teve início no século VI a.C. na Grécia antiga, e dois séculos mais tarde ingressou num período áureo com o advento de Sócrates, seguido por Platão e Aristóteles. Depois disso, por cerca de dois mil anos, nada aconteceu. Nada de original, pelo menos. Naturalmente, muitos filósofos ilustres surgiram durante esse período. No século III, o alexandrino Plotino sofisticou a filosofia de Platão, criando, nesse processo, o neoplatonismo. Santo Agostinho de Hipona, posteriormente, aperfeiçoou o neoplatonismo até que ele se tornasse aceitável pela teologia cristã. O sábio islâmico Averróis desenvolveu certas partes da filosofia de Aristóteles, enquanto Tomás de Aquino tornou-as aceitáveis para a teologia cristã. Essas quatro figuras díspares promoveram o progresso da filosofia, mas nenhuma delas produziu uma filosofia própria totalmente nova. Seu trabalho foi, em essência, de exegese, comentário e elaboração das filosofias de Platão e Aristóteles. Dessa forma, esses dois filósofos pagãos (e suas filosofias pagãs) tornaram-se pilares da Igreja cristã. Essa artimanha de exorcismo intelectual foi o principal fundamento da escolástica, nome conferido à atividade filosófica durante a Idade Média. A escolástica era a filosofia da Igreja e se orgulhava de sua falta de originalidade. Novas idéias filosóficas tinham como único resultado a heresia, a Inquisição e a morte na fogueira. As idéias de Platão e Aristóteles foram pouco a pouco sendo enterradas sob camadas de comentários cristãos teologicamente corretos até que a filosofia se esgotou. Em meados do século XV esse estágio moribundo estava instalado em quase todos os campos de atividade intelectual. A Igreja reinava suprema por todo o mundo medieval, mas as primeiras rachaduras começavam a surgir nesse vasto edifício de certeza intelectual. Por ironia, a principal fonte dessas rachaduras era o próprio mundo clássico que produzira Platão e Aristóteles. Grande parte da cultura que se perdera ou esquecera durante a Idade das Trevas começava a vir à luz, inspirando uma renascença (ou re-nascimento) do conhecimento humano. A Renascença trouxe com ela uma perspectiva nova. Seguiu-se a Reforma, que pôs um fim à hegemonia da Igreja. Contudo, mais de cem anos após esses acontecimentos terem transformado a Europa, a filosofia ainda permanecia paralisada no atoleiro da escolástica, situação que só teria fim com a chegada de Descartes, que formulou uma filosofia adequada à nova era. Rapidamente, ela se espalhou por toda a Europa e obteve a suprema recompensa de receber o nome de seu fundador: cartesianismo. VIDA E OBRA . . . . . . . . . . . Descartes jamais realizou qualquer trabalho útil em sua vida. Em ocasiões diversas, descreveu-se como soldado, matemático, pensador e cavalheiro, sendo esta última característica a que mais se aproximava de sua atitude perante a vida, assim como de sua condição social. Sua inclinação jovial para o ócio sem compromisso logo se transformou em rotina. Vivia de rendas pessoais, levantavase ao meio-dia e viajava quando tinha vontade. E era tudo. Sem dramas, sem esposa, sem grande sucesso (ou fracasso) público. No entanto, foi sem dúvida alguma o filósofo mais original surgido nos quinze séculos que se seguiram à morte de Aristóteles. René Descartes nasceu em 31 de março de 1596 na pequena cidade de La Haye, a aproximadamente 50 quilômetros ao sul de Tours. O lugar é conhecido hoje pelo nome de Descartes e o visitante ainda pode ver a casa onde ele nasceu, assim como a igreja de St. Georges, do século XII, onde foi batizado. René foi o quarto filho e sua mãe morreria de parto no ano seguinte. Seu pai, Joachim, era juiz da Alta Corte da Bretanha, que se reunia em Rennes, a 230 quilômetros de distância, o que significava que Joachim permanecia em casa menos da metade do ano. Logo ele se casou de novo e René foi criado na casa de uma das avós, onde se afeiçoou principalmente a sua babá, por quem manteve a maior estima e a quem sustentou até o dia de sua morte. Descartes teve uma infância solitária, seu isolamento foi acentuado por seu temperamento doentio, e ele rapidamente aprendeu a dispensar companhias. Desde seus primeiros anos, sabe-se que era introspectivo e reservado: uma criança de rosto pálido, de cabelos negros espessos e encaracolados e olhos grandes com olheiras, vagando pelo pomar de casaco preto e calças pelos joelhos, chapéu preto de abas largas na cabeça e um longo cachecol de lã no pescoço. Aos oito anos, foi enviado como interno a um colégio jesuíta recéminaugurado em La Flèche e destinado à educação dos nobres locais, que antes substituíam essa educação pela caça, pela falcoaria e por mornas homilias caseiras. O reitor do colégio era amigo da família Descartes, de maneira que ao frágil René foi dado um quarto individual e permissão para levantar-se quando quisesse. Como acontecia com a maioria dos que gozavam desse privilégio, Descartes se levantava por volta do meio-dia – hábito ao qual se apegou com rigor pelo resto de sua vida. Enquanto os outros alunos eram intimidados por jesuítas presunçosos e rancorosos, fanaticamente versados nos meandros da escolástica, o jovem e inteligente Descartes tinha chance de absorver o que lhe era ensinado em atmosfera mais relaxada, levantando-se a tempo para o almoço – seguido das aulas de equitação, esgrima e flauta, que ocupavam a tarde. Quando partiu, era evidente que aprendera muito mais do que qualquer outro na escola, parecendo haver recuperado por completo a saúde (a não ser por uma hipocondria persistente que cultivou com zelo por toda sua vida excepcionalmente saudável). No entanto, apesar de seu desempenho brilhante, Descartes mantinha atitude de profunda ambivalência com respeito à sua educação. Tudo lhe parecia, em grande parte, bobagem: um Aristóteles requentado, revestido de séculos de interpretações, a teologia sufocante de Aquino, que tinha respostas para tudo, mas que não respondia a nada – um pântano de metafísica. Nada do que aprendera parecia conter qualquer certeza – de qualquer espécie – a não ser a matemática, e numa vida vazia de certezas em relação a lar, família e contato social significativo, ele precisava de certeza no único campo em que se sentia em casa: o intelecto. Deixou a escola desencantado. Como Sócrates antes dele, estava convencido de que nada sabia. Mesmo a matemática só era capaz de proporcionar certezas impessoais. A única outra certeza que conhecia era Deus. Quando saiu de La Flèche, aos dezesseis anos, seu pai o enviou para estudar direito na Universidade de Poitiers. Joachim Descartes pretendia que René ocupasse algum cargo importante na área jurídica, como fizera seu irmão mais velho. Naqueles dias esses postos eram preenchidos, em larga escala, por meio do nepotismo – sistema responsável pela produção de aproximadamente o mesmo percentual de juízes grotescos e inadequados que o originado pelo sistema hoje em prática. Porém, depois de dois anos estudando direito, Descartes decidiu que já esgotara seu interesse no assunto. Nessa época, já tinha tomado posse de várias propriedades rurais pequenas, herdadas de sua mãe, que lhe asseguravam renda modesta – o suficiente para viver a seu bel-prazer. Assim, partiu para Paris “a fim de dedicar-se a suas idéias”, o que não agradou ao juiz Joachim. Os Descartes eram cavalheiros – deles não se esperava que passassem o tempo pensando. Nada podia fazer a esse respeito, no entanto: seu filho era agora um homem livre. Dois anos depois, Descartes se cansou da vida de solteiro rico em Paris. Embora se dedicasse a vasta gama de estudos e escrevesse alguns ensaios por diletantismo, envolvia-se cada vez mais com a vida social da capital, que achava absolutamente maçante. Essa reflexão não privilegiava a sociedade parisiense em moda na época. Descartes parece ter considerado qualquer vida social maçante e não se deu conta provavelmente do quanto essa sociedade em particular era de uma monotonia especial. Retirou-se para um endereço tranqüilo no Faubourg St. Germain, onde ninguém, absolutamente ninguém, ia visitar alguém, mesmo que este fosse alguém. Vivia em reclusão e continuava a dedicar-se a suas idéias em paz. Este seria seu estilo de vida favorito pelo resto de seus dias. Após fixar-se por alguns meses, no entanto, de repente decidia partir. Descartes parece ter sido conduzido por duas obsessões perfeitamente equilibradas: a solidão e as viagens. Como jamais se sentira próximo a seus semelhantes, não tinha vontade de viver em companhia deles. Como jamais tivera um lar verdadeiro, não tinha desejo de construir o seu próprio. Permaneceria para sempre irrequieto e solitário. Tudo isso faz com que a decisão seguinte de Descartes pareça ainda mais extraordinária. Resolveu alistar-se no exército. Em 1618 foi para a Holanda e se inscreveu como voluntário nas tropas do Príncipe de Orange, cujo exército protestante se preparava para defender as Províncias Unidas dos Países Baixos contra a Espanha católica, que desejava retomar suas antigas colônias. O que fizeram então os holandeses com esse recatado cavalheiro católico sem experiência militar, que apregoava ter praticado um pouco de esgrima e equitação na escola? É difícil avaliar. Na época Descartes não falava holandês e se apegava de forma resoluta à sua rotina de levantar-se ao meio-dia. Talvez ele simplesmente não fosse notado, sentado em sua tenda escrevendo um tratado sobre música ou coisa parecida. (Hoje em dia talvez fosse acusado de espionagem; mas naquele tempo os militares parecem ter estimado de forma correta a importância dos espiões e se dispunham a contratar qualquer recruta, independentemente de nacionalidade, fidelidade ou, até mesmo, da disposição de participar da rotina militar.) Sabemos com certeza que a vida no exército entediava Descartes; a seu ver havia “inércia e dispersão demais”. Significaria isso que havia oficiais que se levantavam ainda mais tarde do que ele? Se os espanhóis lançassem um ataque de surpresa pela manhã, tudo indica que poderiam ter encontrado a fazer-lhes oposição uma turba bêbada a caminho da cama, além de um oficial francês irado pedindo a todos que desistissem, já que ele próprio queria dormir. Uma tarde, depois de seu leve desjejum habitual, Descartes decidiu sair para um passeio restaurador pelas ruas de Breda e percebeu um cartaz afixado a um muro, exibindo, como era hábito na época, um problema matemático nãosolucionado e desafiando os transeuntes a resolvê-lo. Descartes não entendeu totalmente as instruções (afinal, elas estavam em holandês). Dirigiu-se ao cavalheiro holandês que se achava de pé ao seu lado e, com gentileza, pediu-lhe que traduzisse. O holandês ficou impressionado com o jovem e ignorante oficial francês, e disse que só traduziria o cartaz caso o francês estivesse disposto a se empenhar na solução do problema – e a trazê-la até ele. Na tarde seguinte o jovem oficial francês foi à casa do holandês, onde, para surpresa deste, ficou evidenciado que não apenas solucionara o problema, mas o fizera de modo extremamente brilhante. Segundo o primeiro biógrafo de Descartes, Adrien Baillet, foi assim que Descartes conheceu Isaac Beekman, o renomado filósofo e matemático holandês. Os dois se tornariam amigos íntimos, correspondendo-se com regularidade nas duas décadas seguintes (com algumas breves interrupções devidas a um conflito de temperamentos matemáticos). “Eu estava dormindo até que você me acordou”, Descartes escreveria a Beekman. Foi ele quem reacendeu o interesse de Descartes pela matemática e pela filosofia, que permanecera latente desde que deixara La Flèche. Após cerca de um ano no exército holandês, Descartes partiu em excursão de verão pela Alemanha e pelo Báltico. Decidiu então experimentar de novo a vida militar e viajou à pequena cidade de Neuburg, no sul da Alemanha, onde o exército de Maximiliano, duque da Baviera, estava acampado em seus quartéis de inverno, no braço superior do Danúbio. A vida militar ali parece ter sido ativa como sempre para Descartes – que descreve como se instalou em agradáveis dependências aquecidas, persistindo em seus hábitos de dormir dez horas por noite e de levantar-se ao meio-dia, consumindo as horas em que se mantinha acordado “comungando com meus próprios pensamentos”. A situação na Europa agravava-se, embora fosse difícil deduzi-lo da atitude de Descartes. Os bávaros haviam declarado guerra a Frederico V, eleitor palatino e rei protestante da Boêmia. Todo o continente mergulhava célere no longo e desastroso conflito que veio a ser conhecido como Guerra dos Trinta Anos. Essa guerra, cujas tendências inconstantes afetavam diversos países, desde a Suécia até a Itália, prosseguiria virtualmente até o fim da vida de Descartes, deixando imensas áreas da Europa, em especial na Alemanha, devastadas e desertas. O efeito dessa guerra, porém, parece ter sido mínimo sobre Descartes, mesmo quando ele estava no exército. Não se pode, entretanto, deixar de suspeitar que esse permanente quadro de incerteza política, conjugado a suas inseguranças psicológicas, tenha, de certa maneira, contribuído para a profunda necessidade interna de certeza que iria caracterizar toda a sua filosofia. Nesse ínterim, o inverno bávaro se instalou, e logo a neve se espalhava por toda parte, intensa, cortante e incessante. Descartes sentia tanto frio que passou a viver numa estufa, o que via de regra significava um pequeno quarto, aquecido por calefação central, encontrado com freqüência na Bavária. No entanto, Descartes de fato se descreve vivendo dans un poêle, que literalmente se traduz por “numa estufa”. Sentado um dia nessa estufa, Descartes teve uma visão. Não se tem uma idéia precisa do que ele viu, mas parece que essa revelação expressava uma imagem matemática do mundo, o que o convenceu de que o funcionamento de todo o universo podia ser descoberto mediante a aplicação de uma ciência matemática universal. Nessa noite, quando se deitou, teve três sonhos nítidos. No primeiro, achava-se lutando contra um vento avassalador, tentando descer a rua em direção à igreja de seu antigo colégio em La Flèche. Em determinado ponto, vira-se para cumprimentar alguém e o vento o arremessa contra a parede da igreja. Do meio do pátio, então, alguém lhe grita que um amigo seu tem um melão que gostaria de lhe dar. No sonho seguinte Descartes encontra-se tomado de terror e ouve “um barulho como o estampido de um relâmpago”, após o que a escuridão de seu quarto se enche com miríades de faíscas. O último sonho é menos claro: nele vê um dicionário e um livro de poesia sobre sua mesa; seguem-se a isso alguns daqueles acontecimentos quase sempre inconseqüentes e altamente simbólicos que jamais deixam de ser o deleite do sonhador e o tédio de todos os outros. Descartes decide então (no sonho) interpretar esses acontecimentos. Essa interpretação poderia ter-nos dado uma visão profunda do juízo que fazia dele mesmo, mas infelizmente, nesse ponto, seu biógrafo Baillet torna-se bastante confuso. Os incidentes desse dia de inverno e da noite seguinte (11 de novembro de 1619) teriam um efeito profundo e duradouro sobre Descartes. Ele acreditava que a visão e os sonhos que a ela se seguiram tinham-lhe revelado a vocação que recebera de Deus. Eles dariam a Descartes a confiança de que necessitava em sua vocação, assim como a crença na correção de suas descobertas nem sempre apoiadas em argumentos. Não fosse essa experiência e o brilhante diletante talvez não tivesse se dado conta de sua vocação. É irônico que Descartes, o grande racionalista, tivesse se inspirado em uma visão mística e em alguns sonhos bastante irracionais - e esse aspecto de seu pensamento é com freqüência negligenciado nos liceus franceses, onde o grande herói e hipnófilo gaulês é ainda considerado um modelo racionalista. Desnecessário dizer, os sonhos de Descartes suscitaram ampla gama de explicações. Segundo o filósofo e astrônomo holandês Huygens, que mais tarde iria se corresponder com ele, esses sonhos decorreriam de um superaquecimento de seu cérebro, devido ao tempo passado na estufa. Outros sugeriram indigestão, excesso de trabalho, falta de sono (sic), crise mística ou a possibilidade de ter recentemente aderido aos rosa-cruzes. O melão, ao qual se alude no primeiro sonho, parece ter divertido bastante os leitores da biografia de Descartes no século XVIII. Com o advento da era psicanalítica, porém, tornou-se assunto bem mais sério. Não vejo razão para entrar em detalhes nesse aspecto - basta dizer que, de acordo com um de seus comentadores, Freud deu “uma interpretação bastante gratuita do melão”. Em conseqüência de sua visão e dos sonhos subseqüentes, Descartes prometeu que daí por diante dedicaria sua vida aos estudos intelectuais e que também faria uma peregrinação de agradecimento ao santuário de Nossa Senhora de Loreto na Itália. Por essa razão fica-se bastante surpreso quando se sabe que continuou perambulando sem objetivo pela Europa por mais cinco anos antes de conseguir chegar a Loreto, e ainda mais dois antes de começar a trabalhar. Há poucos detalhes precisos sobre Descartes durante esse período de sete anos de “vida errante”, como ele próprio dizia. Provavelmente se alistou no exército imperial húngaro, mas a Guerra dos Trinta Anos tinha nesse momento começado a sério e o oficial-cavalheiro Descartes parece não ter sido muito impetuoso no serviço ativo. Sabe-se que, após deixar o exército, ele viajou pela França, Itália, Alemanha, Holanda, Dinamarca e Polônia - sempre passando ao largo das regiões onde a guerra estava sendo travada por membros mais dedicados de sua profissão. Não que Descartes fosse capaz de evitar de todo a violência. Em visita a uma das ilhas Frísias (possivelmente Schiermonnikoog), alugou um barco para levá-lo a terra firme. Os marinheiros o tomaram por um rico comerciante francês e planejaram assaltá-lo. Enquanto Descartes, de pé no convés, observava o litoral da ilha distanciar-se através do mar cinzento, os marinheiros puxavam as cordas e conspiravam entre si em holandês. Tramaram golpeá-lo na cabeça, atirá-lo ao mar e saquear o ouro que tinham a certeza de estar escondido em sua mala. Infelizmente para eles, o passageiro havia por essa época adquirido, durante suas viagens, algum conhecimento de holandês. Os desafortunados ilhéus tiveram de defrontar-se com o impetuoso cavalheiro-oficial Descartes brandindo sua espada, e rapidamente recuaram. Em certo momento, provavelmente em 1623, Descartes voltou para casa, em La Haye, e vendeu todos os seus bens. Os títulos adquiridos com o produto da venda lhe garantiriam um bom rendimento pelo resto da vida. Poder-se-ia pensar que durante essa viagem ele tivesse visitado a família - o que está longe de ser verdadeiro. Descartes, na realidade, jamais se indispôs com a família, mas manteve-se profundamente desligado dela. A despeito de sua liberdade de perambular pela Europa à vontade, não se preocupou em voltar para casa para o casamento de seu irmão ou de sua irmã e nem ao menos visitou o pai em seu leito de morte. Chegando ao final desse período, Descartes passava cada vez mais tempo em Paris, onde se encontrou com um antigo colega de escola de La Flèche, Marin Mersenne, que aderira à Igreja e se tornara um respeitado erudito, em contato com os mais requintados filósofos e matemáticos da Europa. De sua cela em Paris, correspondia-se com personalidades como Pascal, Fermat e Gassendi. A cela de Mersenne transformou-se numa espécie de ponto focal das últimas tendências do pensamento matemático, científico e filosófico. Era o tipo de amigo de que Descartes necessitava, e ele se corresponderia com Mersenne pelo resto de sua vida, enviando-lhe manuscritos e submetendo-lhe idéias - tanto para conferir sua validade quanto para determinar se entravam em conflito com os ensinamentos da Igreja. Descartes passava a maior parte do tempo em Paris trancado em seu quarto, estudando, mas de vez em quando alguns amigos o visitavam para discutir idéias e, em outras ocasiões, até se deixava convencer a sair para compromissos mais formais. Uma anedota dá conta de sua presença na casa do núncio apostólico quando um físico chamado Chandoux fez uma palestra apresentando sua “nova filosofia”. No final da palestra Descartes procedeu à demolição dessa nova filosofia com o auxílio de alguns rigorosos raciocínios matemáticos, para os quais Chandoux não tinha resposta. (Chandoux se encontraria em situação semelhante três anos mais tarde, quando foi obrigado a se defender contra uma acusação de ter falsificado algo mais palpável do que idéias filosóficas e terminou na forca.) Após acompanhar os hábeis argumentos de Descartes, o cardeal de Bérulle chamou-o e aconselhou-o a dedicar toda a sua vida à filosofia. Por alguma razão, isso pareceu operar o milagre. Visões e sonhos podem ter instilado confiança em Descartes, mas foi necessário o enfoque racional para fazê-lo decidir-se pela ação. Em 1628, retirou-se para o norte da França para viver em reclusão e dedicar-se tão-somente a pensar. Infelizmente, porém, seus amigos parisienses continuaram a visitá-lo, o que o fez recolher-se ainda mais, partindo para viver em isolamento na Holanda, onde se estabeleceu por mais de duas décadas, até o ano anterior à sua morte. “Estabelecer-se”, no entanto, é um termo bastante relativo quando se trata de Descartes. Sabe-se que, durante os quinze primeiros anos de sua permanência na Holanda, mudou-se de casa pelo menos dezoito vezes - e, mesmo assim, quando a rotina instituída tornava-se excessiva para ele, freqüentemente viajava ao estrangeiro. Apenas o padre Mersenne mantinha o endereço dele atualizado, mas pelo menos seu retiro permanecia resguardado. Todo esse constante deslocamento é atribuído ao gosto de Descartes pela solidão, mas parece falar de alguma inquietação mais profunda. Em meio a viagens, ou mesmo mudando-se de domicílio, não se pode evitar o conhecimento de pessoas novas - ainda que de forma superficial e ligeira. Esse movimento sem fim sugere que a solidão de Descartes não era totalmente auto-suficiente. Solitário sim, mas era-lhe impossível estabelecer contato com as pessoas a não ser da maneira mais trivial. Descartes sempre teve criados e parece ter sido bastante bem-apessoado. Os retratos que possuímos dele revelam um cavalheiro de rosto pálido, emoldurado pela peruca negra esvoaçante característica da época, no qual ressaltavam o bigode e a barba pontiaguda que lhe conferiam um certo charme melancólico. Conta-se que se vestia bem, com elegantes calças até o joelho, meias negras de seda e sapatos de fivela de prata. Tinha o hábito de, em qualquer época, usar um lenço de seda no pescoço, para proteger-se do frio. Quando saía usava um casaco pesado com um cachecol de lã e portava sempre a espada. Diz-se que era suscetível a mínimas variações de temperatura, que ele dizia afetarem a “fraqueza herdada” de seu peito. No entanto, durante anos viajou por toda a Europa, da Itália à Escandinávia, e o país que finalmente escolheu para viver foi a Holanda notória pela chuva, pelo nevoeiro e pela neve, que um visitante francês contemporâneo descreveu como “quatro meses de inverno seguidos de oito meses de frio”. A Holanda tinha, no entanto, uma grande vantagem: ela era, no século XVII, a zona franca do pensamento europeu. Ao contrário de outras nações, ali não se tinha que pagar pelas idéias que se tivesse. Os tolerantes holandeses já se haviam liberado de temas onerosos como a Inquisição, a heresia, a roda e a cremação na fogueira - perigosas insígnias com que eram condecorados os pensadores nas demais partes da Europa. Dos quatro grandes pensadores que formularam filosofias originais no século XVII, nada menos que três - Descartes, Spinoza e Locke – viveram por algum tempo na Holanda. (O outro, Leibniz, viveu do outro lado da fronteira, em Hannover, e visitou a Holanda muitas vezes.) Em parte devido à sua atmosfera liberal, a Holanda tornou-se também um próspero centro da indústria gráfica, e lá foram impressas obras de pensadores audaciosos como Galileu e Hobbes. Durante esse período, idéias novas floresciam na Holanda como em nenhuma outra parte da Europa. Descartes deu início a esse período produtivo de sua vida com grandes esperanças. Em decorrência da visão que tivera na estufa bávara, concebera uma ciência universal capaz de abarcar todo o conhecimento humano e que levaria à verdade pelo uso da razão. Esse novo método era, no entanto, muito mais do que apenas revolucionário. (A razão tinha desempenhado papel bastante secundário nas ciências e nas alquimias da Idade Média.) Descartes imaginou um sistema que não apenas englobaria todo o conhecimento, mas também o unificaria. Esse sistema seria isento de todos os preconceitos e hipóteses, baseando-se unicamente na certeza. Começara por princípios básicos, evidentes por si mesmos, e se desenvolveria a partir deles. Descartes previu vantagens extraordinárias que poderiam derivar desse sistema. Confiante, antecipou que, quando o novo método fosse aplicado à medicina, seria capaz de desacelerar o processo de envelhecimento. (Descartes persistia nesse sonho. Dez anos mais tarde, escreveria ao erudito alemão Huygens que - apesar de sua precária condição física - esperava viver até bem mais de cem anos, embora na última década de vida tenha revisto essa estimativa, subtraindolhe alguns anos.) Descartes começou a escrever um tratado sobre Regras para a Direção do Espírito. Para descobrir a ciência universal, teríamos inicialmente de adotar um método adequado de reflexão, que consistia na adoção de duas regras de operação mental: intuição e dedução. Definia intuição como “a concepção inequívoca de um espírito claro e formado exclusivamente pela luz da razão”, e dedução como a “necessária inferência a partir de outros fatos tidos como certos”. O celebrado método de Descartes – que veio a ser conhecido como método cartesiano – baseava-se na aplicação correta dessas duas regras de pensamento. Descartes ganhava reputação como pensador em ampla gama de assuntos filosóficos e científicos. Em março de 1629, o papa e alguns cardeais superiores começaram a observar OVNIs no céu de Roma. Quando o sol se punha, aparecia um halo solar com manchas de luz brilhante na órbita. Cartas foram enviadas a Descartes e a vários outros destacados pensadores, pedindo sua opinião a respeito dessas visões. Descartes ficou de tal forma intrigado que, durante algum tempo, abandonou a reflexão filosófica para se concentrar nesse assunto. Tinha suas suspeitas sobre a causa dos fenômenos, mas só se comprometeu vários anos mais tarde, época em que já havia escrito um tratado completo sobre o tema. (Nesse ínterim, uma fonte do Vaticano divulgara uma explicação própria: os fenômenos eram causados por anjos que promoviam mudanças nos cenários celestiais, preparando-se para o Segundo Advento.) Descartes sugeriu que as luzes no céu eram causadas por meteoros. Infelizmente os cientistas modernos ofereceram uma explicação que parece ainda menos plausível que a do Vaticano: os fenômenos, agora chamados parélios, seriam provocados pelo sol brilhando “através de uma nuvem fina formada de cristais de gelo de forma hexagonal que caem com os eixos principais em sentido vertical”. Danças de cristais na atmosfera são consideradas hoje em dia mais prováveis do que anjos, e explicações simplistas como a de Descartes tornam-se motivo de escárnio. Nesse, como em muitos outros aspectos, Descartes viveu durante um período curto e possivelmente ímpar do pensamento humano. As novas explicações apresentadas pelos espíritos científicos e filosóficos mais apurados desse período eram, em muitos casos, tanto plausíveis quanto compreensíveis, além de tenderem a ser racionais e simples em sua concepção geral - com o objetivo de deixar espaço para a contemplação de mistérios fundamentais. É pouco provável que a humanidade volte a experimentar novamente uma era como essa. Doravante seria cada vez mais impossível compreender a verdade a não ser no campo de conhecimento cada vez mais limitado que cada um fosse capaz de dominar. Doravante estávamos destinados a saber cada vez mais sobre cada vez menos. Após estabelecer as regras para o funcionamento do espírito, Descartes passou a se ocupar do mundo exterior. Nos três anos seguintes, escreveu um Tratado sobre o universo, expondo suas idéias sobre um imenso leque de assuntos científicos, incluindo meteoros, dioptria e geometria. A fim de prosseguir seus estudos em anatomia, passou a visitar o matadouro local, retornando para casa com várias espécies escondidas sob a capa, de maneira que pudesse dissecálas secretamente. Em conseqüência desse trabalho, Descartes deu origem ao estudo de embriologia. (Segundo a lenda, numa dessas visitas ao abatedouro, Descartes notou um jovem corpulento desenhando a carcaça sem pele de um boi e perguntou-lhe por que escolhera aquele tema. “Sua filosofia arrebata nossas almas”, respondeu o artista. “Em meus quadros, eu as devolverei, mesmo aos animais mortos.” Diz-se que o jovem artista teria sido Rembrandt.) Após três longos anos de trabalho concentrado, Descartes se preparou para enviar o manuscrito de seu Tratado sobre o universo ao padre Mersenne, a fim de que fosse publicado em Paris. Notícias extraordinárias chegaram então, inesperadamente, de Roma. Galileu havia sido acusado de heresia, levado ao tribunal da Inquisição e forçado a declarar que “abjurava, amaldiçoava e abominava” seus trabalhos científicos, referindo-se mais especificamente à sua crença na teoria de Copérnico de que a Terra se movia em torno do Sol. Descartes de pronto pediu a seu amigo Beekman uma cópia do trabalho de Galileu e verificou, para seu espanto, que muitas das conclusões a que Galileu chegara eram iguais às suas. Sem uma palavra a ninguém, pôs de lado seu Tratado sobre o universo e voltou seu pensamento para assuntos menos controversos. (Essa obra não foi publicada senão alguns anos após a morte de Descartes, e apenas em parte.) A vida de Descartes foi dilacerada por dicotomias. Ele desejava paz e solidão, porém seu isolamento o levou ao trabalho obsessivo. Como pensador original e ousado, prometeu “seguir meus pensamentos aonde quer que me conduzam”; no entanto, como homem jurou “obedecer às leis do meu país, aderir à religião de meus pais e seguir o exemplo dos homens mais sábios que encontrar”. Estava convencido de que o que escrevera no Tratado sobre o universo estava correto, não obstante acreditar também firmemente no Deus da Igreja. Descartes tinha sido acusado de covardia, de ser ateu secretamente e de nem ao menos se conhecer, apesar de suas meditações introspectivas. Nenhuma dessas acusações se sustenta. Descartes pode não ter sido feito da matéria-prima dos mártires, mas isso não o torna um covarde. Estava convencido de que, sem abrir mão de qualquer de seus dogmas escolásticos, a Igreja, ainda assim, poderia se aproximar de suas conclusões. Seu autoconhecimento intelectual era mais profundo do que o de qualquer filósofo desde Sócrates, mesmo que contivesse, de uma perspectiva psicológica, alguns pontos obscuros. A grande dicotomia, contudo, que incomodava Descartes repousava em sua filosofia. Considerava que o mundo se constituía de dois tipos de substância espírito e matéria. O espírito era inextenso e indivisível. A matéria era extensa e divisível, e obedecia às leis da física. Isso significava que nosso espírito incorpóreo estava alojado em um corpo mecânico. Como podia o espírito, que não tinha extensão, interagir com um corpo que podia apenas obedecer às leis mecânicas da ciência? Descartes jamais resolveu esse problema de forma satisfatória - o que, de forma bem estranha, reflete as dicotomias psicológicas que o incomodavam no cotidiano. No entanto, como sempre, tentou arduamente encontrar uma resposta. Segundo Descartes, o espírito e o corpo interagem na glândula pineal (um órgão obscuro próximo à base do crânio, cuja função precisa permanece indefinida até hoje). Infelizmente, perdeu-se bastante nesse ponto: a questão não era tanto onde interagiam, mas como. Nessa época, um raro elemento humano entra na vida de Descartes. Ele mantém um romance com uma jovem de nome Hélène, possivelmente uma de suas criadas. Dessa ligação nasce uma filha, a quem dá o nome de Francine. Depois do nascimento de Francine, Hélène passa a viver com a criança numa casa vizinha, mas o visita com regularidade. Quando há outras pessoas presentes, Descartes faz Francine passar por sua sobrinha. É difícil, a partir desses fatos, saber ao certo o tipo de relação que mantinha com Hélène. Mas é fácil conjeturar. Pobre Hélène - que idéia terá feito desse excêntrico de classe alta? Que terá ela registrado quando olhou fixamente para aquelas olheiras, aquele olhar abstrato? Hélène pode não ter conseguido sensibilizar Descartes, mas Francine certamente o fez. Sem qualquer artifício, foi até ele e ele correspondeu. (Não tanto que tivesse sido rejeitado na infância: simplesmente não tinha ninguém, a não ser a velha ama com seu amor rude.) Apesar de tentar fazer Francine passar por sobrinha, logo começou a amar a filha, o que se transformou numa experiência emocional ímpar em sua vida. Descartes estava então escrevendo aquela que é hoje considerada sua obra mais original, o Discurso do método. Por ironia, o corpo dessa obra se constituía de prudentes excertos pinçados de seu Tratado sobre o universo, abrangendo idéias que iriam modificar a face da matemática e promover vários avanços revolucionários na ciência. Nessa obra Descartes lançou os fundamentos da geometria analítica moderna e introduziu as coordenadas (mais tarde denominadas, por Leibniz, coordenadas cartesianas); na óptica, propôs a Lei da Difração e articulou uma explicação para o arco-íris; e também articulou uma teoria científica racional para explicar o tempo (que, assim como as teorias meteorológicas modernas, só é derrotada pela irracionalidade mesma desse fenômeno). No entanto, a melhor parte do Discurso do método é de longe a relativamente curta introdução, que esboça as idéias essenciais de seu pensamento, que mudariam o curso da filosofia. Numa ruptura ainda mais revolucionária com a tradição, Descartes transforma essas idéias em compreensíveis e legíveis. Como é possível transmitir idéias filosóficas profundamente originais com suficiente clareza para que qualquer outra pessoa de fato possa entendê-las? Esse problema não derrotou apenas a mim e você, mas também a maioria dos grandes espíritos da filosofia. Platão quebrou o tabu expondo sua filosofia em diálogos em jantares festivos. Nietzsche pensou que o houvesse quebrado compondo a mais brilhante, sutil e enérgica prosa jamais escrita na Alemanha, mas essa megalomania transformou-se em mera mania. Wittgenstein tentou contornar o problema levando em conta a fugaz concentração na era da TV e escrevendo notáveis observações de duas linhas, mas viu-se sem espaço para fundamentá-las com argumentos filosóficos. Descartes conseguiu superar esse problema com um método mais simples e mais óbvio. Em prosa autobiográfica cristalina, ele descreve como desenvolve seu pensamento e as idéias que lhe ocorrem durante esse processo. Quando se lê Descartes, experimenta-se o que é ser um grande espírito formulando uma filosofia original. Sua descrição é tão repleta de artifícios que chega-se a pensar que é fácil - parece não ser diferente da maneira comum de pensar. Passo a passo, de maneira racional, chegamos com ele à conclusão. Descartes começa por levar-nos de volta à Bavária coberta de neve e à época de sua visão. “O inverno se instalou e encontrei-me num lugar onde não havia ninguém que me pudesse interessar. Na época, isento de cuidados ou paixões, decidi passar meus dias numa estufa, onde podia estar só com meus pensamentos.” Em prosa surpreendentemente cheia de frescor, ele vai adiante descrevendo como nos é possível, por meio de uma dúvida persistente e obsessiva, destruir toda a nossa crença na estrutura do mundo que nos rodeia. Nenhuma certeza permanece. Todo o universo, nossa própria individualidade, mesmo nossa própria existência, tudo poderia ser um sonho. Não há meios de saber qualquer coisa com certeza. Exceto uma coisa. Não importa quanto eu possa estar enganado em minhas idéias sobre mim mesmo e sobre o mundo, há apenas uma coisa que não se pode negar. Estou pensando. Apenas isto prova a mim mesmo minha existência. Na mais famosa observação feita na filosofia, Descartes conclui: “Cogito, ergo sum” (Penso, logo existo). Após estabelecer sua única certeza fundamental, Descartes começa a reconstruir, sobre esse fundamento, tudo aquilo de que duvidara. O mundo, as verdades da matemática, a neve compulsória do inverno bávaro - tudo retorna numa certeza fria, purificado pelo período de exílio passado no território imaginário da dúvida, porém mais indubitável do que nunca, agora que tudo se assenta sobre um fundamento de que não se pode duvidar. Depois de ter a coragem de duvidar do universo como um todo, Descartes, de forma característica, escolheu publicar sua obra sob pseudônimo. Publicou-a também em francês, na esperança de alcançar um público maior. Desejava evitar controvérsias com a Igreja e contava fazê-lo apelando a pessoas interessadas nas novas ciências. Surpreendentemente, quase deu certo. Quase. Logo se soube quem era o autor do Discurso do método, mas a princípio era maior o interesse em suas teorias matemáticas e científicas. Os matemáticos ficaram primeiro fascinados, depois sentiram-se ofendidos. Para a maioria de nós, a única coisa certa em matemática é que ela ou está correta ou incorreta. Esse enfoque ingênuo nos retira de imediato do campo da verdadeira matemática. No nível do gênio, a objetividade infantil do certo e errado dá lugar a uma atitude mais criteriosa e combativa. A agressividade aumenta (em progressão geométrica) na mesma medida em que se depara com o incontestável. Após ler as novas teorias matemáticas de Descartes e reconhecer sua profunda originalidade, todos os grandes matemáticos da época logo passaram a alvejá-lo. Gassendi, Pascal, Insen, Fermat, um por um, todos entraram na contenda. Essas controvérsias estão bem acima da compreensão de simples mortais. Os que pensam de maneira diversa talvez considerem instrutiva a velha história do Último Teorema de Fermat, segundo o qual não há números inteiros acima de um, de modo a tornar verdadeira a seguinte expressão: Xn + Yn = Zn Pouco antes de morrer, Fermat escreveu na margem, ao lado dessa fórmula: “Descobri uma forma verdadeiramente admirável de provar isso, mas não há espaço para escrevê-la aqui.” A despeito de reiteradas tentativas por parte de muitos dos mais respeitados matemáticos dos últimos três séculos, ninguém conseguiu ainda provar ou contradizer o Último Teorema de Fermat. Alguns dizem que não pode de forma alguma ser verdadeiro. Outros afirmam que deve ser. Alguns estão convencidos de que Fermat estava blefando, enquanto outros sustentam que ele não ousou tentar prová-lo. A matemática começa na certeza e termina assim. A filosofia, por outro lado, começa e termina assim. Quando se diz de alguém que tem uma atitude filosófica, pode-se ter a certeza de que não é filósofo. Isso, Descartes descobriu logo. Depois dos matemáticos, era a vez dos filósofos entrarem na contenda. Imediatamente Descartes achou-se em dificuldades com a Igreja. Se era possível duvidar de tudo, a não ser do fato de que se está pensando, onde fica Deus? Descartes teve sorte em não se envolver em dificuldades maiores e de ter os amigos mobilizados para defendê-lo - e mais sorte ainda teve de estar morando na Holanda. Ou melhor, deslocando-se na Holanda. Em 1638, pela décima-quinta vez desde que fixara residência nas Províncias Unidas dos Países Baixos, Descartes mudou-se de casa novamente - agora para Amersfoot, nas imediações da antiga cidade universitária de Utrecht. Sua filha Francine tinha então cinco anos, e ele planejava enviá-la à França a fim de que se tornasse “uma senhora elegante”. Inesperadamente, porém, Francine adoeceu e morreu. Descartes ficou arrasado. Esse foi o golpe mais duro que sofreria em toda sua vida e, segundo seu biógrafo Baillet, “chorou por sua filha com uma ternura que mostrava que a idéia de eternidade pode ser dissipada pela dor do momento”. A tragédia se deu na ocasião em que Descartes dava os retoques finais em s u a s Meditações, em geral considerada sua obra-prima. Embora não tão imediatamente fascinante quanto o Discurso do método, tem a mesma felicidade de estilo, e o francês em que se expressa é um modelo de pensamento abstrato. (Descartes, de forma galante, declarou que a havia escrito com o objetivo de tornar as idéias abstratas excitantes para as mulheres.) Mas dessa vez tomou a precaução de enviar o manuscrito ao padre Mersenne em Paris, pedindo-lhe que o fizesse circular, a fim de que pudesse saber “a opinião dos sábios”. Desejava a aprovação dos eruditos e dos jesuítas para seu novo tratado filosófico - que consistia numa elaboração das idéias expostas no Discurso do método. Dessa vez, propôs um roteiro de dúvidas ainda mais abrangente. Imaginou que o universo inteiro, mesmo as verdades da geometria e a camisola de inverno que usava quando se sentava à beira do fogo, podia ser obra de um ser maligno invisível cujo objetivo seria iludi-lo. (Alguns psicólogos, transbordando confiança, identificaram o anti-herói dessa fantasia com o juiz Joachim Descartes.) Uma vez mais as construções ambíguas da mente de Descartes chegam ao mesmo ponto incontestável. E é sobre esse princípio de certeza fundamental, evidente por si mesmo, que ele de novo reconstrói o universo. Chega ao ponto de provar a existência de Deus - com argumentos usados anteriormente por santo Anselmo e são Tomás de Aquino mais de quatro séculos antes –, ao que parece para fazer a Igreja se sentir mais à vontade. Apesar de esse processo de dúvida cartesiana não ser original estritamente falando, na época era assim considerado. As dúvidas e a conclusão de santo Agostinho, de semelhança notável, formuladas doze séculos antes, não eram centrais em seu pensamento e tinham sido totalmente ignoradas. Mais próximo da época de Descartes, no entanto, e de maneira mais interessante, o filósofo português Francisco Sanches, propusera, quase com exatidão, o mesmo roteiro abrangente de dúvidas em seu surpreendente tratado Quod nihil scitur (Por que nada se pode saber), publicado em 1581. Felizmente para Sanches, seu tratado atraiu pouca atenção, ou ele poderia ter acabado como um grande mártir filosófico aos trinta e um anos, ao invés de morrer em confortável obscuridade em Toulouse, na avançada idade de setenta e três anos. Descartes não ambicionava o martírio e, embora possuísse muitas qualificações para a obscuridade (em outras circunstâncias, sua indolência teria sido suficiente), tampouco parecia possuir ambições nesse sentido. Ele queria ser ouvido, mas também queria ser aceito. Estava totalmente convencido de que estava certo, mas queria que a Igreja também se convencesse. Dessa forma, seguindo instruções suas, o padre Mersenne enviou o manuscrito das Meditações para luminares da cena intelectual européia como Gassendi, Hobbes e Arnauld, que responderam expondo suas objeções às teorias ali apresentadas. Essas objeções irritaram Descartes, induzido depois a acrescentar suas respostas - e as Meditações foram finalmente publicadas de forma completa, com as objeções e a réplica do autor. A publicação das Meditações provocou, inevitavelmente, um furor ainda pior. Os jesuítas, de forma correta, entenderam que a dúvida cartesiana e o Cogito, ergo sum determinavam o fim da filosofia escolástica e de são Tomás de Aquino. Mas dessa vez, pior ainda para Descartes, a controvérsia transbordou até a Holanda. O reitor da Universidade de Utrecht acusou Descartes de ateísmo. Comparou-o, engenhosamente, a Vanini, acusado de haver expressamente exibido provas frágeis e ineficazes da existência de Deus. (Vanini morrera queimado na fogueira em Toulouse, em 1619 - observado talvez, do meio da multidão, por um velho obscuro professor português resmungando para si mesmo: “Se não fosse pela graça de Deus…”) Ao ataque do reitor da Universidade de Utrecht contra Descartes, seguiram-se outros por parte de diversas personalidades holandesas importantes, acusando-o de heresia. Naqueles dias ateísmo era uma coisa, mas heresia era tema realmente sério. Felizmente o embaixador francês interveio a favor de Descartes e a celeuma arrefeceu, embora por algum tempo ainda fosse proibido mencionar seu nome e suas obras, contra ou a favor, dentro dos limites da Universidade de Utrecht. Essa proibição foi finalmente tornada sem efeito depois que o departamento de matemática reclamou que assim seria impossível desenvolver estudos de geometria. Descartes era agora célebre em toda a Europa, sua fama se estendendo de tal forma além dos limites do mundo intelectual que era reconhecido até mesmo pela realeza. Ao ler um de seus livros, a jovem rainha Cristina da Suécia ficou tão impressionada que decidiu convidá-lo para visitar a corte. Descartes deveria ir a Estocolmo ensinar-lhe filosofia. Os longos e duros anos de levantar-se tarde e de meditação cavalheiresca começavam, então, a exigir de Descartes algum tributo. Embora tivesse apenas cinqüenta e três anos, não se mudava havia quatro anos e vivia nesse momento numa pequena propriedade em Egmond-Binnen, trinta e dois quilômetros ao norte de Amsterdam, perto do mar. Fazia suas meditações sentado em seu escritório octagonal que dava para um belo e antigo jardim. De vez em quando viajava a Paris, onde discutia suas idéias com velhos companheiros de escaramuças intelectuais como Gassendi, Pascal, Hobbes e Arnauld. A perspectiva de uma longa viagem para o norte, para “a terra de ursos entre rochas e gelo” (como ele denominava a Suécia) não o atraía. Mas a rainha Cristina era obstinada e decidida. Aos vinte e três anos apenas, já deixara sua marca no reino. Com não mais de um metro e meio, tinha ombros largos e treinava como um soldado. Dizia-se que conseguia cavalgar durante dez horas sem demonstrar cansaço (embora se fique curioso a respeito do cavalo). Quando subiu ao trono, prometeu transformar sua capital, a úmida Veneza do norte, na Paris intelectual do norte. Porém, a despeito de seus grandes esforços, ela ainda permanecia, de forma inequívoca, a Estocolmo do norte. Descartes era sua grande chance, e ela estava determinada a não deixá-lo escapar. Para reforçar o convite, enviou um marechal e um barco de guerra para transportá-lo. Mas Descartes recusou, embora da maneira mais elegante, entregando ao marechal uma carta lisonjeira em que descrevia como “Sua Majestade foi criada à imagem de Deus num grau superior ao do restante da humanidade”, mas rogava ser dispensado de “se aquecer aos raios de sol de sua gloriosa presença”. Cristina bateu o pé, a corte teve um mau dia, ela galopou em seu cavalo horas a fio - e outro barco da esquadra foi enviado à Holanda. Descartes, que derrotara os espíritos mais sofisticados da Europa em batalhas intelectuais, foi finalmente forçado a admitir a derrota. Partiu para Estocolmo em outubro de 1649, onde foi recebido em cerimônia cinco estrelas pela rainha Cristina. Seguiram-se duas audiências pessoais com Sua Majestade, que demonstrou ter assimilado muito pouco do estudo de suas obras; e então a rainha decidiu que havia outros assuntos a reclamar sua atenção. A Descartes foi concedida vida amena durante seis semanas, enquanto o duro inverno sueco se instalava. Seria o pior em sessenta anos: a cidade cercada de gelo por seis meses, trevas ao meio-dia e, para além dos subúrbios, ursos uivando sob os ventos gélidos da Aurora Boreal. Preocupada com o espírito brilhante que se desperdiçava em sua capital, Cristina encomendou a Descartes um trabalho totalmente novo. Com relutância, o filósofo começou a compor versos a serem musicados para um balé chamado “O nascimento da paz”, que Cristina queria ver encenado em seu aniversário. Descartes deve ter sido excelente em musicais, já que, terminado o primeiro, foi posto a trabalhar numa comédia sobre dois príncipes que se acreditavam pastores. (Infelizmente, não consegui encontrar referência a esses trabalhos nas obras reunidas de Descartes - apenas seu comentário mal-humorado: “aqui os pensamentos dos homens congelam durante os meses de inverno”.) Em meados de janeiro, então, Cristina decidiu que era hora de iniciar seus estudos de filosofia. Descartes foi devidamente intimado e informado de que a rainha teria três aulas por semana, começando às cinco horas da manhã. Nem no exército Descartes se levantara da cama antes das onze. O choque de despertar às quatro da manhã no mais intenso inverno escandinavo para cuidar de sua toalete com requinte francês à hora do lobo - seguida de rápida e acidentada viagem de trenó, pelas ruas congeladas, por entre rajadas cortantes do Ártico… Não, é inútil até mesmo tentar imaginar como Descartes se sentia. Em duas semanas pegou um resfriado que logo se transformou em pneumonia. Uma semana mais tarde, começou a delirar e morreu em 11 de fevereiro de 1650. Um dos maiores intelectuais da Europa tinha sido sacrificado ao capricho da realeza. Como católico, na Suécia protestante, esse homem profundamente religioso não pôde ser enterrado em solo sagrado - e teve de ser sepultado no cemitério destinado a crianças não batizadas. Treze anos após sua morte, a Igreja católica prestou homenagem à memória de Descartes, colocando todas as suas obras em seu Índex de livros proibidos (garantindo assim que continuassem a ser lidas pelos anos futuros). Mais tarde, ainda no século XVII, o corpo de Descartes foi trasladado para Paris, onde foi novamente enterrado. Durante a Revolução, propôs-se que fosse mais uma vez exumado e colocado no Panteão, ao lado de outros grandes pensadores franceses. A proposta foi levada à Assembléia Nacional, cujos membros, em atitude pouco comum, dividiram-se em correntes científicas. Os que aprovavam a concepção mecânico-cartesiana do universo tinham como opositores os adeptos da nova teoria newtoniana da gravidade. Descartes propusera a Teoria dos Vórtices para explicar o funcionamento do universo. Sua teoria sustentava que o movimento de uma partícula afetava o movimento de todas as outras partículas no universo como um todo. Isso se fazia através de uma série de vórtices interligados – que englobava tudo, desde o sistema solar e as estrelas até as partículas mais ínfimas. (Isso teria, naturalmente, redundado num sistema de complexidade diabólica, como só um matemático poderia conceber. No entanto, chama a atenção para um tema de razoável interesse na evolução do pensamento humano. A teoria de Descartes tem uma ligeira semelhança tanto com a hélice dupla do DNA quanto com a Teoria da Supercorda das partículas fundamentais. Da mesma forma, em sua longa busca por uma força que pudesse interagir entre o espírito e o corpo, Descartes buscava algo semelhante às ondas de rádio ou à eletricidade. Segundo o moderno pensador Jean de Mandeville, esses fatos evidenciam a possibilidade de que a compreensão humana evolua de acordo com certas linhas conceituais, de modo quase independente de seu objeto.) No momento da votação na Assembléia Nacional Francesa, os newtonianos conseguiram reunir apoio suficiente para derrotar os cartesianos. A gravidade vencera. Descartes teria de ser enterrado em algum outro lugar. Antigamente a verdade fora terreno da teologia, agora ela entrara no campo da democracia, onde Descartes tampouco se adequava. Coerentemente, ele se acha enterrado na igreja de St. Germain des Prés, no coração do Quartier Latin em Paris, onde sua tradição de pensador que duvida e de amante do sono se mantém firme até hoje. POSFÁCIO . . . . . . . . . . . Antes de Descartes, a filosofia estava adormecida. A era moderna da filosofia começa com ele. A partir dessa época, a primazia do indivíduo e a análise da consciência humana tornaram-se fundamentais para a filosofia. De uma forma ou de outra, permaneceu assim até tempos mais ou menos recentes. Somente com o advento da análise lógica, a primazia do indivíduo e a análise da consciência humana foram suplantadas pela primazia do dicionário e pela análise de seu conteúdo. Uma vez mais, a filosofia precisa de um Descartes para despertá-la. CITAÇÕES-CHAVE . . . . . . . . . . . Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazerme de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. Meditações, I: abertura E, como a multidão de leis fornece amiúde escusas aos vícios, de modo que um Estado é bem melhor dirigido quando, tendo embora muito poucas, são estritamente cumpridas; assim, em vez desse grande número de preceitos de que se compõe a Lógica, julguei que me bastariam os quatro seguintes, desde que tomasse a firme e constante resolução de não deixar uma só vez de observá-los. O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida. O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros. E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir. Discurso do método, parte II Essas longas cadeias de razões, todas simples e fáceis, de que os geômetras costumam servir-se para chegar às suas mais difíceis demonstrações, haviam-me dado ocasião de imaginar que todas as coisas possíveis de cair sob o conhecimento dos homens seguem-se umas às outras da mesma maneira e que, contanto que nos abstenhamos somente de aceitar por verdadeira qualquer que não o seja, e que guardemos sempre a ordem necessária para deduzi-las umas das outras, não pode haver quaisquer tão afastadas a que não se chegue por fim, nem tão ocultas que não se descubram. E não me foi muito penoso procurar por quais devia começar, pois já sabia que havia de ser pelas mais simples e pelas mais fáceis de conhecer. Discurso do método, parte II Mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei que era necessário (…) e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável. Assim, porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, porque há homens que se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples matérias de geometria, e cometem aí paralogismos, rejeitei como falsas, julgando que estava sujeito a falhar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até então por demonstrações. E enfim, considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que procurava. Discurso do método, parte IV Para começar, pois, este exame, noto aqui, primeiramente, que há grande diferença entre espírito e corpo, pelo fato de ser o corpo, por sua própria natureza, sempre divisível e o espírito inteiramente indivisível. Pois, com efeito, quando considero meu espírito, isto é, eu mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa que pensa, não posso aí distinguir partes algumas, mas me concebo como uma coisa única e inteira. E, conquanto, o espírito todo pareça estar unido ao corpo todo, todavia um pé, um braço ou qualquer outra parte estando separada do meu corpo, é certo que nem por isso haverá aí algo de subtraído a meu espírito. E as faculdades de querer, sentir, conceber etc. não podem propriamente ser chamadas suas partes: pois o mesmo espírito emprega-se todo em querer e também todo em sentir, em conceber etc. Mas ocorre exatamente o contrário com as coisas corpóreas ou extensas: pois não há uma sequer que eu não faça facilmente em pedaços por meu pensamento, que meu espírito não divida mui facilmente em muitas partes e, por conseguinte, que eu não reconheça ser divisível. Meditações, 6 O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm. E não é verossímil que todos se enganem a tal respeito; mas isso antes testemunha que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; e, destarde, que a diversidade de nossas opiniões não provém do fato de serem uns mais racionais do que outros, mas somente de conduzirmos nossos pensamentos por vias diversas e não considerarmos as mesmas coisas. Pois não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores vícios, tanto quanto das maiores virtudes, e os que só andam muito lentamente podem avançar muito mais, se seguirem sempre o caminho reto, do que aqueles que correm e dele se distanciam. Discurso do método, parte I (Citações extraídas de Descartes, trad. J. Guinsburg e Bento Prado Júnior, col. Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1983.) CRONOLOGIA DE DATAS SIGNIFICATIVAS DA FILOSOFIA . . . . . . . . . . . séc. VIa. C. Início da filosofia ocidental com Tales de Mileto. fim do séc. VIa. Morte de Pitágoras. C. 399 a.C. Sócrates condenado à morte em Atenas. c.387 a.C. Platão funda a Academia em Atenas, a primeira universidade. 335 a.C. Aristóteles funda o Liceu em Atenas, escola rival da Academia. 324 d.C. O imperador Constantino muda a capital do Império Romano para Bizâncio. 400 d.C. Santo Agostinho escreve as Confissões. A filosofia é absorvida pela teologia cristã. 410 d.C. Roma é saqueada pelos visigodos. 529 d.C. O fechamento da Academia em Atenas, pelo imperador Justiniano, marca o fim da era greco-romana e o início da Idade das Trevas. meados do séc. Tomás de Aquino escreve seus comentários sobre Aristóteles. Era da escolástica. XIII 1453 Queda de Bizâncio para os turcos, fim do Império Bizantino. 1492 Colombo chega à América. Renascimento em Florença e renovação do interesse pela aprendizagem do grego. 1543 Copérnico publica De revolutionibus orbium caelestium (Sobre as revoluções dos orbes celestes), provando matematicamente que a Terra gira em torno do Sol. 1633 Galileu é forçado pela Igreja a abjurar a teoria heliocêntrica do universo. 1641 Descartes publica as Meditações, início da filosofia moderna. 1677 A morte de Spinoza permite a publicação da Ética. 1687 Newton publica os Principia, introduzindo o conceito de gravidade. 1689 Locke publica o Ensaio sobre o entendimento humano. Início do empirismo. 1710 Berkeley publica os Princípios do conhecimento humano, levando o empirismo a novos extremos. 1716 Morte de Leibniz. 1739-40 Hume publica o Tratado sobre a natureza humana, conduzindo o empirismo a seus limites lógicos. 1781 Kant, despertado de seu “sono dogmático” por Hume, publica a Crítica da razão pura. Início da grande era da metafísica alemã. 1807 Hegel publica A fenomenologia do espírito: apogeu da metafísica alemã. 1818 Schopenhauer publica O mundo como vontade e representação, introduzindo a filosofia indiana na metafísica alemã. 1889 Nietzsche, após declarar que “Deus está morto”, sucumbe à loucura em Turim. 1921 Wittgenstein publica o Tractatus logicophilosophicus, advogando a “solução final” para os década de 1920 problemas da filosofia. O Círculo de Viena apresenta o positivismo lógico. 1927 Heidegger publica Sein und Zeit (Ser e tempo), anunciando a ruptura entre a filosofia analítica e a continental. 1943 Sartre publica L’être et le néant (O ser e o nada), avançando no pensamento de Heidegger e instigando o surgimento do existencialismo. 1953

Publicação póstuma de Investigações filosóficas, de Wittgenstein. Auge da análise lingüística.