O que acontece se testemunha de Jeová recebe sangue

03/01/2015 17h31 - Atualizado em 03/01/2015 17h31

Justiça autorizou o uso da força policial para salvar a vida da mulher.
Paciente teve complicações no parto na maternidade Pró-Matre, em Vitória.

A paciente que se recusou a realizar uma transfusão de sangue após ter complicações no parto já está passando pelo procedimento, na Maternidade Pró-Matre, em Vitória. De acordo com o diretor técnico do hospital, Hélcio Campos, a mulher começou a receber o sangue por volta das 16h15 deste sábado (3). Um dos irmãos está no quarto para acompanhá-la. A diretoria também informou que não houve tumulto e não foi preciso utilizar a força policial.

Para garantir que a transfusão acontecesse, a maternidade solicitou o auxílio da Polícia Militar. O diretor Hélcio informou que a transfusão deveria ter iniciado por volta das 11 horas da manhã deste sábado, mas a família teria dito que realizaria a transferência da mulher. Como até as 14 horas nenhuma ambulância tinha chegado para levá-la, a maternidade solicitou novamente as bolsas ao banco de sangue, que chegaram por volta das 15h30. Ainda segundo o profissional, quatro bolsas foram solicitadas ao Banco de Sangue.

O que acontece se testemunha de Jeová recebe sangue
Pró-Matre de Vitória chama a PM para garantir transfusão em paciente (Foto: Caíque Verli/ A Gazeta)

"Ela desmaiou duas vezes pela manhã, está no oxigênio e colocamos um soro", explicou Hélcio, que também explicou que não tem nada contra a religião da jovem e dos familiares dela, mas que precisa salvar vidas. "É uma questão de vida ou morte. A gente que é médico dentro de um hospital  não pode ver e não fazer nada. Não é nada contra a lei", declarou.

O caso
A paciente, que é uma recepcionista de 35 anos, teve o parto realizado na última segunda-feira (29) e antes do parto já estava com a saúde debilitada devido a uma anemia, segundo os médicos. Ela precisou passar por uma cesariana para retirar o bebê e acabou perdendo muito sangue, mas se recusou a receber uma transfusão. No dia seguinte, o quadro dela piorou.

Diante da gravidade da situação, os médicos reuniram laudos e atestados para instruir o pedido judicial e convencer o judiciário a autorizar o procedimento. A maternidade precisou procurar respaldo judicial para ter a chance de fazer o procedimento. A decisão saiu no mesmo dia.

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A Procuradoria Geral da República ajuizou Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF-618) perante o Supremo Tribunal Federal visando assegurar às pessoas que professam a religião Testemunhas de Jeová, desde que sejam maiores e capazes, o direito de não se submeterem a transfusões de sangue, por motivo de convicção pessoal. Os seguidores desta fé não aceitam o referido procedimento médico que irá considerá-los pessoas impuras e indignas do reino de Deus. O fulcro da questão reside no fato da comunidade religiosa aceitar métodos alternativos à transfusão de sangue. Na impossibilidade, a recusa é o demonstrativo inequívoco da convicção religiosa.

A medida judicial visa, desta forma, impedir a obrigação dos médicos de realizarem o procedimento quando encontrarem pela frente a recusa terminativa do paciente. A opção religiosa, nesta formatação, abarca, a um só tempo, os direitos de personalidade proclamados na Constituição Federal. A obrigatoriedade terá lugar, no entanto, quando o paciente for menor e o tratamento for indispensável para salvar a vida da criança, mesmo com a oposição dos responsáveis.

Uma das questões que, reiteradamente, traz à baila um consistente debate jurídico reside na recusa do paciente da crença já referida de se submeter à transfusão de sangue. O debate também chegou à Suprema Corte por meio do RE 1212.272, que já reconheceu repercussão geral do tema, via plenário virtual. Trata-se de um caso em que a paciente, por motivo religioso, apesar de ter assinado o Termo de Consentimento Informado, negou-se a assinar o termo referente à autorização prévia de eventual transfusão sanguínea na cirurgia de substituição de válvula aórtica, realizada em rede pública de saúde, por ser incompatível com a fé processada. Justifica que se trata de uma ofensa à sua dignidade e ao acesso à saúde, contestando a nítida interferência estatal.

O princípio da autonomia da vontade, viga mestra do Código de Ética Médica (resolução 2217/18 do Conselho Federal de Medicina), outorga ao paciente o direito de se manifestar a respeito de eventual tratamento proposto pelo médico, demonstrando, de forma transparente, que sua vontade é de vital importância para se chegar à uniformidade de pensamento. Na realidade, pelo recorte feito no referido código deontológico, a relação médico-paciente deve retratar uma verdadeira sintonia, na medida em que ambos dividem responsabilidades paritárias a respeito do conteúdo terapêutico. A autorização do paciente se faz necessária em razão do ato compartilhado, consistente na prática de propostas de caráter preventivo, diagnóstico ou terapêutico. Seria uma aquiescência ou permissão que o paciente entrega ao médico para que realize o procedimento discutido e ajustado anteriormente.

Tem-se que, por outro lado, a vida humana representa um bem indisponível, com tutela integral da Constituição Federal que a erigiu como o bem maior do homem, distinguindo-a com inúmeros direitos fundamentais. Assim, nesta linha de pensamento, há ativa participação estatal na preservação da vida, conforme se constata pela resolução 1021/80 do Conselho Federal de Medicina no sentido de que, havendo iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis. Assim como, pelos dizeres do art. 146, § 3º, inciso I, do Código Penal, é possível a intervenção médica ou cirúrgica sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida. Tais dispositivos deixam claro que a recusa impeditiva do paciente não impede a transfusão de sangue.

O mesmo Conselho Federal de Medicina, na recente resolução 2232/19, abrandou a norma da resolução 1021/80, e assim dispôs em seu artigo 3º: “Em situações de risco relevante à saúde, o médico não deve aceitar a recusa terapêutica de paciente menor de idade ou de adulto que não esteja no pleno uso de suas faculdades mentais, independentemente de estarem representados ou assistidos por terceiros”. Quer dizer, a contrario sensu, se o paciente for maior e capaz, em caso de risco relevante à saúde, o médico deve aceitar a recusa terapêutica.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, em recente decisão, assim proclamou: “Em que pesem as referidas convicções religiosas da apelante que, não obstante lhe são asseguradas constitucionalmente, a verdade é que a vida deve prevalecer acima de qualquer liberdade de crença religiosa”.

O mesmo Tribunal, em decisão liminar, ainda sem apreciação do colegiado, decidiu: "A priori, vislumbro legitimidade na recusa do agravante de se submeter às transfusões de sangue, visto que tal procedimento, para ele, implicaria em tratamento degradante por afrontar as suas crenças". Não prevalece, sob esse prisma, a medicina de intervenção obrigatória conflitando com o princípio da autonomia da vontade do paciente que recusa os cuidados oferecidos. É de se observar ainda que a autonomia não fica adstrita à recusa em razão de convicção religiosa. Pode ser também por opção pessoal do paciente.

Resta, finalmente, apontados os caminhos a serem trilhados, aguardar a decisão que será proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

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O que acontece se testemunha de Jeová recebe sangue
*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.

Por Eduardo Andery

O que acontece se testemunha de Jeová recebe sangue
A questão da negativa de se submeter à transfusão de sangue por motivos religiosos, comumente praticada pelos adeptos da religião Testemunhas de Jeová, é tema que tem gerado acaloradas discussões. Na prática da advocacia junto às instituições de saúde, de um lado observamos a preocupação dos médicos e hospitais, seja por serem formados e votados para salvar vidas, seja por temerem às responsabilidades civis e criminais que possam advir.

De outro, nos deparamos com a indignação do paciente religioso, que se sente impotente diante da não aceitação de sua escolha e crença. E, diante desses impasses, vêm sendo crescente a judicialização deste tema. Neste espaço, por óbvio, não se pretende esgotar o assunto e nem ditar regras. Quanto muito levantar uma reflexão: será que realmente estamos diante de um cenário e uma solução eminentemente jurídicos ou estamos muito mais diante da assunção de valores morais e inerentes ao ser humano?

Conforme pesquisa livre do motivo de as Testemunhas de Jeová não aceitarem transfusão de sangue, facilmente se evidencia que se trata de motivação eminentemente religiosa. Nesse sentido creem que os ensinamentos bíblicos os ordenam a se abster de sangue (Gênesis 9:4; Levítico 17:10; Deuteronômio 12:23; Atos 15:28, 29). Mais do que isso, segundo o texto Sagrado, Deus revela que o sangue é vida e esta dádiva somente a Ele pertence.

Dentro dessa singela reflexão, deveria caber tão somente ao indivíduo escolher entre o tratamento que deseja se submeter e a realização ou não de transfusão de sangue, ainda que corra risco de morte. Neste aspecto em especial, o Estado e o Judiciário não deveriam intervir diante de legítima escolha existencial; o médico e as instituições hospitalares – obviamente após cumprirem o dever de informar e conscientizar sobre os riscos e sobre alternativas existentes ou não – deveriam se limitar a respeitar a vontade do paciente, uma vez que a fé professada é inerente ao ser humano e expressa a sua própria existência, a manifestação de sua personalidade e, consequentemente, de suas escolhas.

Por outro lado, encontrando-se o médico diante de um dilema próprio, quer porque contraia seus ditames de consciência, quer porque, não obstante, não queira desrespeitar a liberdade de crença do paciente, sabe dos riscos, foi formado para salvar vidas e até mesmo porque não se sente confortável ou seguro suficiente para realizar o procedimento sem a segurança da transfusão de sangue, importante consignar que também merece igual respeito. Com efeito, não sendo caso de urgência ou emergência e que não tenha outro facultativo que possa prestar assistência, justo e legítimo que o médico possa apresentar objeção e se recusar a prestar o atendimento ou a realizar o procedimento médico.

Mas, no dia a dia, não obstante o paciente esteja consciente, orientado e em plena condição de decidir, ainda temos a oposição de médicos, de hospitais e até mesmo de decisões judiciais, que determinam a realização da transfusão, contrariando a vontade e a crença do indivíduo. Diante desta realidade, onde não bastam os valores e crenças individuais e cujo respeito seria o suficiente, não resta outra alternativa senão socorrer de fundamentos jurídicos para fazer valer a liberdade de ser e cer. E, no âmbito dos fundamentos jurídicos, como não dizer que oposição a esta escolha existencial do paciente afronta a sua liberdade de crença, sua autonomia de vontade e, consequentemente, a sua forma e ser e sua própria dignidade.

Nesse sentido, sem demérito a tantos outros juristas, merece destaque o posicionamento do ilustre constitucionalista Celso Ribeiro Bastos: “Quando o Estado determina a realização de transfusão de sangue – ocorrência fenomênica que não pode ser revertida – fica claro que violenta a vida privada e a intimidade das pessoas no plano da liberdade individual. Mascara-se, contudo, a intervenção indevida, com o manto da atividade terapêutica benéfica ao cidadão atingido pela decisão. Paradoxalmente, há também o recurso argumentativo aos ‘motivos humanitários’ da prática, quando na realidade mutila-se a liberdade individual de cada ser, sob múltiplos aspectos” ( BASTOS, Celso Ribeiro. Direito de recusa de pacientes, de seus familiares, ou dependentes, às transfusões de sangue, por razões científicas e convicções religiosas, p. 19. Parecer Jurídico, São Paulo, 23 de novembro de 2000; apud Consultor Jurídico.

Daí se extrai que ninguém pode ser constrangido a renunciar sua consciência e seus princípios religiosos. A rigor, nos parece que não estamos propriamente diante de um conflito de direitos constitucionais, sobretudo o Direito Fundamental à vida (CF, art. 1º, III) versus as Garantias Fundamentais, mais especificamente a liberdade de crença (CF, art. 5º, VI). Não obstante o direito fundamental à vida, não se pode perder de vista que não há vida em sua plenitude se o indivíduo não for respeitado em suas liberdades individuais e em sua crença religiosa, haja vista que estas ganham forma e se materializam como expressão do ser e da sua própria dignidade, o que nos remete novamente a necessidade e dever de respeitar os Princípios Constitucionais Fundamentais, sem os quais não podemos nos considerar um Estado de Direito.

Por fim, nos parece pertinente uma ressalva: esta reflexão não se aplica à escolha que pais religiosos querem fazer em nome de seus filhos menores, invocando sua representação legal. E não há incoerência entre o acima exposto e esta assertiva, visto que sempre deve ser respeitada a vontade no que diz respeito à própria vida, , à própria liberdade de crença, e não a do outro, a quem a vida pertence e igualmente merece respeito à liberdade das próprias escolhas.

*Eduardo Andery é advogado, sócio do Granito, Coppi, Boneli e Andery Advogados (GCBA Advogados Associados). Pós-graduado em Direito Médico pela Escola Paulista de Direito (EPD) e em Direito Contratual pelo Centro de Extensão Universitária – CEU Law School.