Segundo o carpinteiro, por que a vida vale a pena, mesmo sendo uma vida severina


Poema: Morte e Vida Severina

             João Cabral de Melo Neto

Segundo o carpinteiro, por que a vida vale a pena, mesmo sendo uma vida severina
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— O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria

do finado Zacarias. 

[...] Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas e iguais também porque o sangue, que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade,

e até gente não nascida). 

[...]

João Cabral de Melo Neto. Poesias completas. cit. p. 203-4.

FALAM  AS DUAS CIGANAS QUE HAVIAM APARECIDO COM OS VIZINHOS 


  --  Atenção peço, senhores, para esta breve leitura: somos ciganas do Egito, lemos a sorte  futura. Vou dizer todas as coisas que desde já posso ver na vida desse menino acabado de nascer: aprenderá a engatinhar por aí, com aratus, aprenderá a caminhar na lama, como goiamuns, e a correr o ensinarão o anfíbios caranguejos, pelo que será anfíbio como a gente daqui mesmo. Cedo aprenderá a caçar: primeiro, com as galinhas, que é catando pelo chão tudo o que cheira a comida depois, aprenderá com outras espécies de bichos: com os porcos nos monturos, com os cachorros no lixo. Vejo-o, uns anos mais tarde, na ilha do Maruim, vestido negro de lama, voltar de pescar siris e vejo-o, ainda maior, pelo imenso lamarão fazendo dos dedos iscas para pescar camarão.

--  Atenção peço, senhores,
também para minha leitura:

também venho dos Egitos, vou completar a figura. Outras coisas que estou vendo  é necessário que eu diga: não ficará a pescar de jereré toda a vida. Minha amiga se esqueceu de dizer todas as linhas não pensem que a vida dele há de ser sempre daninha. Enxergo daqui a planura que é a vida do homem de ofício, bem mais sadia que os mangues, tenha embora precipícios. Não o vejo dentro dos mangues, vejo-o dentro de uma fábrica: se está negro não é lama, é graxa de sua máquina, coisa mais limpa que a lama do pescador de maré  que vemos aqui vestido de lama da cara ao pé. E mais: para que não pensem que em sua vida tudo é triste, vejo coisa que o trabalho talvez até lhe conquiste: que é mudar-se destes mangues daqui do Capibaribe para um mocambo melhor

nos mangues do Beberibe.

O Carpina fala com o retirante que esteve
de fora, sem tomar parte em nada.

João Cabral de Melo Neto

(...) -- Severino retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga; é difícil defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, Severina; mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu com sua presença viva. E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida; mesmo quando é uma explosão como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão

de uma vida Severina.

                                          Poesias completas. cit. p. 236-41.

Entendendo o poema:

01 – De acordo com o texto de o significado das palavras abaixo:  

·        Aratu: pequeno caranguejo de cabeça triangular.

·    Goiamum: tipo de crustáceo que vive em lugares lamacentos, em tocas que ele mesmo cava.

·        Monturo: grande quantidade de lixo.

·   Jereré: aparelho feito de madeira e rede usado na pesca de siris, camarões e peixes pequenos.

·        Mucambo: barraco.

·        Carpina: carpinteiro.

02 – Severino é um substantivo próprio, é o nome do retirante, protagonista da história. No entanto, a palavra severino é empregada como adjetivo nas expressões “morte severina” e “vida severina”. Interprete: qual é o sentido da palavra severina nessas situações?

      Em “morte severina”, tem o sentido de uma morte anunciada pelas péssimas condições de vida; e em “vida severina”, de uma vida sofrida, de luta pela sobrevivência.

03 – De origem medieval, os autos são textos teatrais que representam um nascimento, quase sempre o de Cristo, encenado por ocasião das festas do Natal.

No fragmento lido de Morte e vida severina:

a)   A presença de duas personagens confere ambientação mística à cena. Quais são essas personagens?

As duas ciganas.

b)   Elas correspondem a que personagens da cena do nascimento de Cristo?

Correspondem aos três reis magos.

c)   O que há em comum entre o bebê nascido e Cristo?

A origem humilde, o conteúdo de esperança que representa, o destino incerto.

04 – Ambas as ciganas fazem previsões quanto ao futuro bebê.

a)   Em que se diferenciam as previsões?

A primeira cigana prevê que o bebê será um homem ligado ao rio; a segunda, que será um operário.

b)   Em que se assemelham?

Em ambas as profissões, ele será um homem socialmente marginalizado, mais um severino.

05 – Na conversa entre Severino e mestre carpina, o retirante pergunta ao mestre “se não vale mais saltar / fora da ponte e da vida”. De acordo com o texto:

a)   Quem acaba respondendo a Severino?

A vida.

b)   Qual é a resposta dada?

A vida, mesmo quando severina, vale a pena.

06 – Nos últimos versos, mestre capina diz:

        “Mesmo quando é uma explosão
         como a de há pouco, franzina;
         mesmo quando é a explosão
         de uma vida severina.”

        O texto, no conjunto, faz uma forte crítica social. Contudo, pela ótica que ele apresenta, há esperança?

      Sim, pois cada vida que brota, mesmo tendo um destino “severino”, renova as esperanças de uma vida melhor.

07 – A explosão de mais “uma vida severina” parece dar continuidade a essa corrente de severinos. Eles não estão somente no sertão seco do Nordeste; estão em todo o país, severinamente lutando contra a “morte em vida”.

a)   Afinal, quem são os severinos deste país?

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: São os trabalhadores em geral, que, no campo ou na cidade, lutam pela vida, apesar da miséria, da ineficácia dos governantes, da corrupção, etc.

b)   Como se justifica o título da obra: Morte e vida severina?

Morte e vida se equivalem, pois a vida é uma luta constante contra a morte, uma luta para manter-se a vida, mesmo que “severina”, isto é, sofrida.